Mais complexo, porque mais subtil, é o problema a que somos conduzidos pela anatematização do interlocutor.
O fenómeno tem início no quadro político e inscreve-se no quadro do crescimento dos movimentos radicais de esquerda. Conforme explica Alexandre Franco de Sá, se o inimigo político de que falava Schmitt era um hostis e não um inimicus, não precisando de ser “moralmente mau, nem esteticamente feio” (…), para o populismo de esquerda conceptualizado por Mouffe, a única posição moralmente aceitável é uma posição de esquerda, podendo a direita existir na medida em que seja uma “direita de esquerda, no sentido de uma direita legitimada, tolerada e reconhecida pela esquerda nos termos da própria esquerda” (…). Pressupõe-se uma superioridade moral e intelectual da esquerda que, no fundo, dita os requisitos de legitimação para se participar no debate público, condenando todos os outros, que não aceitem aqueles termos, à indigência, pela demonização e a anatematização. Ora, o jornalismo, fruto da hegemonia cultural a que se assiste, na senda da proposta gramsciana, acaba por ser veículo privilegiado desta estratégia, caricaturando os oponentes e silenciando-os, pelo não cumprimento das regras do contraditório.
Este fenómeno, que começou nos media mainstream, acabou por extravasá-lo, contaminando o mundo digital e determinando uma política de cancelamento, em nome de um politicamente correto que hegemonicamente se cultiva.
A anatematização a que se alude pode, na verdade, configurar-se como um comportamento ilícito. Dependendo dos termos da diabolização, poderemos deparar-nos com a violação do direito à honra; noutras situações, pelo esvaziamento conceptual dos termos utilizados, tal lesão não se verificará, restando uma eventual lesão do direito à liberdade de expressão e de participação cívica. Em casos mais extremos, que, ultrapassando o domínio jornalístico ou das redes sociais, fazem com que o sujeito se confronte com comportamentos discriminatórios ou seja vítima da chamada cultura do cancelamento (v.g., as hipóteses em que um sujeito é afastado do exercício da sua atividade profissional porque, com base em dados fundados, profere uma opinião legítima, embora contrária ao pensamento hegemónico), podemos aventar a eventual violação de outros direitos, como o direito à igualdade ou inclusivamente o direito à liberdade académica ou o direito à liberdade de exercício de uma atividade profissional.
Consoante as especificidades do caso, esta ilicitude pode alicerçar uma pretensão indemnizatória (para o que será necessário verificar-se culpa, provarem-se os danos e resolver-se o problema da imputação objetiva), do mesmo modo que pode justificar que se lance mão de determinadas providências tendentes a atenuar ou a evitar a lesão.
Do ponto de vista coletivo, gera, como consequência, a radicalização do discurso e a impossibilidade de um verdadeiro diálogo, constituindo um perigo para a própria sociedade democrática, sem que, contudo, tal seja suficiente para agir no plano do direito privado.
Refira-se, in fine, que a estratégia de demonização, de antagonismo silenciador e anatematizante extrapola o contexto político, contaminando-se a outros domínios da vida societária, de tal sorte que se pode já diagnosticar uma grave patologia no mundo hodierno.
MAFALDA MIRANDA BARBOSA, A Ilicitude do Anátema, Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 4 – 2022, páginas 47-48.