Vamos lá desenvolver um pouco mais a ideia, aqui deixada, de que um ponto de referência útil para a fixação da indemnização pelo dano morte é o montante das coimas estabelecidas pelo Direito Contra-Ordenacional. Mais não seja, poderá este ponto de referência ajudar a quebrar as barreiras psicológicas que parecem subsistir quando se trata de quantificar a indemnização pelo dano morte, bem como, aliás, por outros danos não patrimoniais.
Atentemos, por exemplo, no disposto no n.º 4 do artigo 22.º da Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, aprovada pela Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto:
4 – Às contra-ordenações muito graves correspondem as seguintes coimas:
a) Se praticadas por pessoas singulares, de € 20.000 a € 30.000 em caso de negligência e de € 30.000 a € 37.500 em caso de dolo;
b) Se praticadas por pessoas colectivas, de € 38.500 a € 70.000 em caso de negligência e de € 200.000 a € 2.500.000 em caso de dolo.
Sublinho: pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave, uma pessoa colectiva pode ser condenada numa coima cujo máximo é de € 2.500.000, ou seja, mais de 31 vezes o valor mais «generoso» que a jurisprudência vem atribuindo pelo dano morte.
Ao percorrer a cada vez mais vasta legislação que estabelece coimas, os exemplos de montantes elevados, normalmente da ordem, pelo menos, das dezenas de milhares de euros, multiplicam-se. Veja-se, desde logo, a título de exemplo, o artigo 17.º da Lei-Quadro das Contra-Ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).
Analisemos, agora, o problema do ponto de vista do agente/responsável. Imaginemos uma sociedade comercial que desenvolve uma actividade sujeita a normas cuja infracção constitua contra-ordenação e que, concomitantemente, envolva riscos para a vida de pessoas, sejam seus trabalhadores ou terceiros.
Fará, à partida, algum sentido que a indemnização a pagar pela morte de uma pessoa se traduza numa quantia insignificante em relação aos montantes das coimas a que a entidade em causa pode estar sujeita? Do ponto de vista preventivo (finalidade que não é estranha também à responsabilidade civil), fará sentido tal disparidade? Fará sentido que alguém (entenda-se, um gestor da nova vaga, para quem o bem e o mal, o melhor e o pior, sejam mera função da respectiva expressão pecuniária) pense que poderá sair muitíssimo mais barato à referida sociedade que um seu trabalhador sofra um acidente de trabalho mortal que ser «apanhada» num processo contra-ordenacional? Poderá, no fundo, dizer-se que há alguma justiça se isso acontecer?
Agora do ponto de vista de quem julga: poderá um juiz, após confirmar uma decisão administrativa que tenha condenado numa coima de € 2.500.000 o autor de uma contra-ordenação ambiental, atribuir uma indemnização de € 50.000, € 60.000, € 70.000, € 80.000 pelo dano morte sem que, em algum momento, ponha em causa aquilo que anda a fazer?
Se isso acontecer – e acontece efectivamente – numa ordem jurídica em que o valor da vida humana suplanta, em muito, o mero interesse geral de punir comportamentos violadores de normas de Direito Contra-Ordenacional, algo estará, parece-me, profundamente errado.
É claro que sempre se poderá encontrar aconchego intelectual em meia dúzia de doutíssimos manuais de Direito e em duas dúzias de citações dos autores alemães que têm aliviado alguns dos nossos da ingrata tarefa de pensarem pelas suas próprias cabeças, correndo os inerentes riscos, e de terem em conta a realidade portuguesa, que provavelmente nem sequer conhecem. Fraco consolo, porém. Por muitos argumentos de natureza formal que ali se encontrem, a questão substancial permanecerá.
Por tudo isto e concluindo, parece-me haver alguma incoerência em se considerar que um montante de € 80.000 é equitativo (já nem falo do de € 50.000…) quando se trata de indemnizar o dano morte. Parece-me haver boas razões para quebrar essa barreira, como outras o foram anteriormente.