Uma das consequências mais temíveis da gravíssima crise financeira a que fomos conduzidos é o desespero.
Não estou a falar do desespero das famílias que já nem para dar de comer aos seus filhos têm dinheiro, ou que estão em contagem decrescente para ficarem sem a sua casa porque deixaram de poder pagar a prestação do empréstimo bancário, ou sequer dos desgraçados que já nem casa e família têm. Esse está instalado e ainda agora vai no adro a procissão dos sacrifícios que o povo terá de suportar por anos e anos de má gestão dos recursos públicos.
Estou a falar do desespero do Estado e demais entidades públicas.
Sem dinheiro nem crédito nos mercados financeiros e com as receitas dos impostos em trajectória descendente e uma despesa que não pára de aumentar por mais «engenharia financeira» (dantes, chamava-se-lhe, simplesmente, aldrabice) que se faça para ir mascarando o descalabro, parece ir valendo tudo para o Estado e restantes entidades públicas sugarem o que resta dos recursos dos agentes económicos e das famílias.
Neste cenário, agrava-se o risco de o Direito Contra-Ordenacional ser usado, não com a finalidade sancionatória que lhe é própria, mas como meio de obtenção de receitas públicas.
O fenómeno não é novo. Já em 1997, MANUEL FERREIRA ANTUNES, em Reflexões sobre o Direito Contra-Ordenacional, SPB Editores, página 22, chamava a atenção para a «ressonância económica» do ilícito contra-ordenacional.
Mais recentemente, voltou a chamar a atenção para o problema RAUL SOARES DA VEIGA, em Legalidade e Oportunidade no Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras, artigo inserido na obra Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras, páginas 139 e seguintes.
Em tempo de crise financeira como há décadas Portugal não via, este problema ganha particular acuidade.
A proliferação, quer de novos tipos contra-ordenacionais, quer de novos deveres cuja violação preenche tipos já existentes, bem como o permanente aumento das molduras das coimas, que frequentemente atingem valores que violam qualquer ideia de proporcionalidade, confirmam o risco de subversão da finalidade daquele ramo de Direito Sancionatório.
As implicações do fenómeno são várias. A primeira e mais perigosa delas é a de as autoridades administrativas decidirem e os seus agentes actuarem cada vez mais, não em função de critérios de objectividade e justiça, mas movidos exclusivamente pela sofreguidão de obter receitas. Aqui e ali, vão-se ouvindo queixas de que isso já está a acontecer.
A confirmar-se esta tendência, é a própria subsistência do Direito Contra-Ordenacional que terá de ser posta em causa. Então, a Administração Pública terá deixado de merecer a confiança em que assentou a transferência de poderes sancionatórios operada pela introdução daquele ramo do Direito em Portugal e acabará por ter de ser dada razão àqueles que, em devido tempo, em relação a ele manifestaram cepticismo.