2012-11-19

Organização Judiciária - As voltas e reviravoltas de uma reforma (2)


Na minha mensagem anterior formulei duas singelas perguntas:

1.ª - Quanto custaria a reforma da organização judiciária que dizem que se vai fazer;

2.ª - Onde tencionam ir buscar o dinheiro para a pagar.

Mera retórica, claro. Conheço bem a resposta a tais perguntas, que é uma só: Não vai haver dinheiro para a reforma.

Sendo assim, das duas uma: ou se insiste numa reforma de faz de conta e é o caos, ou (mal menor) se desiste da reforma.

A haver desistência da reforma, era bom que isso fosse assumido quanto antes, pelo menos por duas razões:

1.ª - A instabilidade que este folhetim da reforma da organização judiciária está a causar a todos os profissionais da Justiça, desde logo aos advogados com escritório nas sedes das comarcas cujos tribunais primeiro não fechavam, depois parece que já fechavam, afinal parece que ficam entreabertos com o novel estatuto de «extensão», isto, claro, até à próxima versão do «ensaio», ou das «linhas orientadoras», ou do que mais queiram chamar àquele estudo prévio de fraquíssima qualidade (talvez por isso já tenha conhecido várias versões e não haja meio de acertarem) e com o qual se pretende justificar várias soluções injustificáveis.

2.ª - A pendência, há anos, da vontade de proceder a uma «reforma da organização judiciária» que, afinal, não ata nem desata, que já foi de NUTs e agora, pior ainda, é com base nos distritos administrativos, tem servido de pretexto para não se proceder aos ajustamentos que, pela própria evolução da realidade, são indispensáveis na actual organização, desde logo no que toca ao dimensionamento dos quadros dos tribunais existentes. Enquanto, no Ministério da Justiça, se entretêm às voltas com os «ensaios», o guia Michelin e os malfadados VRP, os problemas reais do sistema de justiça permanecem por resolver e, pior que isso, vão-se agudizando.

Organização Judiciária - As voltas e reviravoltas de uma reforma (1)


Proponho um breve olhar sobre as voltas e reviravoltas que vem dando a chamada «reforma do mapa judiciário».

Em primeiro lugar, lembrando que, apesar de estar a ser imaginada apenas a olhar para o mapa (quem parece nada saber de orgânica judiciária nem fazer a mínima ideia do que é um tribunal, é natural que se concentre naquilo que menos interessa, que são distâncias e VRPs calculados a martelo), está em causa bem mais que uma simples reforma de um mapa, ao contrário daquilo que os autores dos sucessivos «ensaios» e «linhas orientadoras» até agora publicados parecem pensar.

Depois, realçando a aparente ligeireza com que esta matéria está a ser tratada. Como se vê, entre outras, por esta notícia, a discussão da reforma da organização judiciária descambou numa espécie de jogo do empurra em vários episódios: sucedem-se reuniões com autarcas, cada um a pedir que o tribunal da sua terra não seja encerrado.

Bom, e o resto? Não se discute?

Desde logo: Quanto dinheiro vai custar esta reforma?

Se se centralizam serviços e uma vez que os tribunais que vão ser encerrados não têm patins para serem deslocados até à nova localização, muitos dos edifícios dos tribunais que se mantêm terão de ser ampliados ou, no mínimo, remodelados. Em alguns casos, serão mesmo necessários novos edifícios. Há consciência disso? Quanto vai custar? Alguém já se deu ao trabalho de calcular?

E - questão fundamental em tempos de penúria, em que, pelo menos nos tribunais, falta dinheiro para as coisas mais insignificantes - onde tencionam ir buscar esse dinheiro?

Era isto que eu gostaria de ver esclarecido.

2012-09-19

Reincidência, essa desconhecida (2)


Li, há tempos, um artigo da jornalista Valentina Marcelino, publicado no Diário de Notícias de 20.06.2012, sobre um problema grave que aqui tenho abordado recorrentemente desde há vários anos: a inexistência de estudos credíveis sobre a criminalidade em Portugal - LINK.

O título é sugestivo: «Estado desconhece número de criminosos reincidentes».

O artigo mistura repetidamente dois problemas distintos: o da ausência de estudos sobre criminalidade, indispensáveis para uma definição racional da política criminal e da actividade legislativa, por um lado, e o do conhecimento, em cada processo, dos antecedentes criminais do(s) arguido(s), por outro. Uma coisa nada tem a ver com a outra. São problemas diferentes, a sua resolução depende de instrumentos diferentes, as finalidades da informação obtida são diferentes, tal como são diferentes os destinatários dessa mesma informação.

Quase no final do artigo, Laborinho Lúcio, respondendo à pergunta sobre a importância de conhecer a reincidência criminal, distingue claramente os dois problemas, assim: «É indispensável em dois planos. O primeiro, no que toca à definição das políticas criminais. Por um lado, é o conhecimento daquela taxa que permite avaliar o resultado das medidas de política entretanto adotadas para combater o crime e a sua repetição pelo mesmo agente; por outro lado, é a partir desse conhecimento que é possível definir estratégias e objetivos concretos em sede de intervenção, seja no plano legislativo seja no das práticas ligadas à execução das penas. O segundo plano é aquele que toca já a intervenção judicial, nomeadamente em matéria de condenação criminal.»

Neste momento, interessa-me apenas o primeiro problema: a falta de estudos sobre criminalidade. Destaco as partes que, nesta perspectiva, considero mais interessantes:

«Numa altura em que o Governo quer mudar as leis penais, peritos alertam para o desconhecimento por parte do Estado das taxas de reincidência criminal, que medem a eficácia das medidas.»

«O Estado português não sabe quantos criminosos voltaram a reincidir, nem porquê, nem o seu perfil. (…) Não há estudos nem contas sobre os custos da reincidência. Especialistas alertam para esta falha, quando o Governo quer alterar as leis penais. Conhecer a reincidência é fundamental para saber se as penas aplicadas produziram o objetivo principal: evitar que condenados voltem a cometer crimes.»

«Numa altura em que estão em cima da mesa novas propostas de alteração ao Código Penal e ao Código de Processo Penal, por parte do Governo, estas decisões são tomadas sem base científica e no meio da total ignorância quanto à eficácia das medidas tomadas.»

“Que criminosos mais reincidem e que tipo de penas são mais eficazes? A pulseira eletrónica evita mais ou menos a reincidência que a prisão? Que resultados em concreto têm os programas de prevenção e reinserção social? De que prisões são os reclusos com maior taxa de reincidência e porquê? E quanto custa ao Estado a reincidência? Não há resposta a estas perguntas. Foi gasto dinheiro público na prisão (cada recluso custa, em média, 14 600 euros por ano), mas quando volta a reincidir, não só o dinheiro foi desbaratado, como a segurança não melhorou.»

«O Ministério da Justiça admitiu ao DN que "a informação sobre reincidência criminal resulta de um trabalho específico e pontual de estudo e de avaliação é datada e parcial, destinando-se a avaliações internas, uma vez que não se procede ao registo, em base de dados, desta variável". E, acrescenta, "as taxas de reincidência apresentam, por norma, valores estáveis e de longa duração". O último destes estudos, genérico, já tem cinco anos e fixou a taxa em 29%. Mas não é conhecido o perfil das reincidências. Em 2003, a Provedoria de Justiça fez uma avaliação profunda das prisões e apresentou uma taxa de reincidência de 51%.»

Acrescento eu: Apesar de estar tudo, ou quase tudo, por fazer a este nível, a reforma do Código Penal e do Código de Processo Penal segue dentro de momentos. Mais uma e de novo às cegas, à semelhança da de 2007, de muito má memória.

2012-09-08

Diabruras de crianças de 15 anos


A propósito desta notícia: Como se vê, do estabelecimento do início da imputabilidade penal em idade inferior a 16 anos (creio que, na Holanda, é aos 12 anos) não resulta qualquer catástrofe civilizacional. Ao contrário, tal opção até viabiliza decisões judiciais mais adequadas e credíveis que aquelas que a lei portuguesa permite.

2012-03-31

Verdade, transparência e rendas

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Já que andamos numa de verdade e transparência, seria interessante divulgar, no site do Ministério da Justiça, os montantes de todas as rendas pagas por edifícios onde estão instalados tribunais, com indicação da data da celebração de cada contrato e da identidade de cada senhorio.

Quantos Palácios da Justiça podiam ter sido construídos com o dinheiro gasto em rendas milionárias ao longo dos anos?

Havia de ser uma leitura instrutiva, havia…

2012-03-30

Renda mensal de € 36.000 durante 18 anos?

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Em primeiro lugar, aquilo que é oficial:

O Decreto-Lei n.º 67/2012, de 20 de Março, instituiu o Tribunal da Propriedade Intelectual e o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.

A Portaria n.º 84/2012, de 29 de Março, declarou os primeiros juízos desses novos tribunais instalados, com efeitos a partir de hoje.

Agora, aquilo que li num jornal digital: «a Câmara (de Santarém) continua a ter um documento assinado com o Ministério da Justiça onde se compromete a suportar os trabalhos de remodelação do espaço, em troca de uma renda mensal de 36 mil euros durante 18 anos». A notícia está transcrita AQUI.

Salvo honrosas excepções, o jornalismo que se faz em Portugal tem uma relação muito problemática com a verdade. Por isso, quando leio uma notícia, parto do princípio de que é mentira. Se por acaso for verdade, tanto melhor.

Assim, deixo aqui a minha dúvida: uma renda mensal de € 36.000, durante 18 anos, por umas instalações para um tribunal… em Santarém?!

Quero acreditar que é mentira. Desta vez, oxalá seja mesmo mentira. Caso contrário, não vale a pena andarem com conversa DESTA, DESTA ou DESTA.

2012-02-22

Até sobram peças!

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São tantos os aspectos negativos do auto-denominado «Ensaio para reorganização da estrutura judiciária», que é difícil arranjar uma ponta por onde se lhe pegue. Bem podia ter-se-lhe chamado «Ensaio para a liquidação da estrutura judiciária», pois, a ser implementado na prática, será esse o seu efeito.

Vou referir-me a uma das suas conclusões mais absurdas, que, não obstante, foi imediata e lamentavelmente aproveitada para fins de propaganda política: a de que – milagre dos milagres! –, o dito «Ensaio» tinha feito a prodigiosa descoberta de que afinal, considerando apenas aquilo que é o movimento normal dos tribunais portugueses, há 300 juízes a mais. Trezentos!

Isto daria para rir se o assunto não fosse tão sério.

Perante um resultado tão inesperado, tão absurdo, não terá passado pela cabeça de alguém que as contas deviam estar mal feitas? Que, em vez de correrem para televisões e jornais exultando com a grande descoberta que tinham acabado de fazer, seria mais prudente reverem os pressupostos do «Ensaio» e, se continuassem a obter o mesmo resultado, falarem com quem lhes poderia dar uma ajuda a refazer as contas e assim evitarem o triste espectáculo de propaganda sem sentido a que se assistiu?

Este episódio faz-me lembrar a historieta do relojoeiro que era tão bom, tão bom, tão bom, que desmontava um relógio avariado, reparava-o e ainda lhe sobravam peças. Quem fez o «Ensaio» deve ter achado que possui artes semelhantes às do dito relojoeiro.

A reforma da organização judiciária começa, pois, muito mal. Por este andar, arrisca-se a ir engrossar esta lista.

2012-02-19

Ensaio nulo

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Quanto mais leio o «Ensaio para reorganização da estrutura judiciária», mais decepcionado fico.

É evidente a necessidade de se fazer uma reforma da organização judiciária que passe pela racionalização de meios humanos e materiais, que nunca são suficientes e ainda mais escassos serão daqui em diante devido à situação económica e financeira crítica a que o nosso país foi conduzido e aos sacrifícios que todos teremos de fazer se queremos, um dia, sair dela. De modo algum alinho com aqueles que, ainda que sem o assumirem claramente, apenas querem que tudo fique na mesma. No estado em que Portugal se encontra, nada pode ficar na mesma.

Não menos evidente é, para mim, que qualquer reforma da organização judiciária terá de passar pela eliminação de alguns tribunais e pela especialização, que são duas das linhas fundamentais da reforma que se pretende fazer. Escrevi-o aqui e aqui, já lá vão mais de seis anos, e não retiro uma linha.

Contudo, a qualidade técnica do «Ensaio» é de tal forma fraca, a todos os níveis, que, se a reforma da organização judiciária que se pretende fazer se basear nele, vai ser um fracasso. E vai ser um fracasso, não só por não alcançar os seus objectivos, mas, sobretudo, porque vai piorar aquilo que está, à semelhança daquilo que aconteceu com a acção executiva, há alguns anos alvo de uma reforma tão optimista quanto desastrada, cujo preço a economia portuguesa está e continuará a pagar bem caro.

Se estivéssemos numa prova de atletismo, seria claramente ensaio nulo. Tentem outra vez, que esta não valeu.


2012-02-03

VRP0123456789


Pensei em vários títulos possíveis para esta primeira mensagem sobre o «Ensaio para reorganização da estrutura judiciária», mas nenhum me pareceu suficientemente adequado quando está em causa um documento que revela, da parte de quem o elaborou, uma absoluta falta de visão de tudo aquilo que não seja números. Acabei por escrever aquela coisa sem sentido que está lá em cima, que reflecte a essência do «Ensaio»: números e VRPs, não passando tudo o mais de meros pormenores alegadamente tidos em conta na medida do possível.

Mas, já que é assim, se os números é que interessam, então vamos a eles. Não aos irrealistas VRPs, mas a números bem reais e, talvez por isso, ignorados pelo «Ensaio». Como é meu hábito, nomeadamente quando escrevo sobre organização judiciária, falarei apenas daquilo que conheço bem, seguramente muito melhor que os autores do «Ensaio»: Beja.

Os números:

Área do distrito de Beja: 10.223 km2 (é o maior distrito português em área).

Algumas distâncias que o «Ensaio» parece ter ignorado, bem como o tempo e o custo aproximados das viagens, tudo segundo o Mapa Michelin, a que aquele documento recorreu:

Beja – Odemira: 107 km, 1 hora e 35 minutos, € 11,10;
Santiago do Cacém – Odemira: 56 km, 1 hora e 4 minutos, € 7,07;
Beja – Vila Nova de Milfontes: 123 km, 1 hora e 51 minutos, € 12,54;
Moura – Odemira: 165 km, 2 horas e 28 minutos, € 17,41.

Actualmente, o Círculo Judicial de Beja, que já é o mais extenso de Portugal, não inclui a comarca de Odemira. Esta faz parte da NUT do Alentejo Litoral, de cuja sede, Santiago do Cacém, se encontra a uma distância que é cerca de metade daquela a que se encontra de Beja. A comarca de Odemira tem tudo em comum com as restantes comarcas da NUT de que faz parte (Alentejo Litoral): todas elas comarcas costeiras, geograficamente próximas, com vias de comunicação entre si muito melhores que aquelas que as ligam a Beja e cujos fluxos populacionais se desenvolvem ao longo da costa e não para o interior.

O «Ensaio», incapaz de se desviar da referência do distrito administrativo mesmo quando os resultados são absurdos, extingue a NUT do Alentejo Litoral e inclui Odemira na nova comarca de Beja. Fica muito longe? Demora muito tempo? As pessoas gastam um dinheirão em transportes? Não há transportes públicos em horários compatíveis com os dos tribunais? Paciência, parece ter sido a resposta dos autores do «Ensaio». Desenrasquem-se.

Para um ensaio de reforma da organização judiciária feito em nome de uma alegada simplificação e racionalização e em que se diz ter havido a preocupação de «privilegiar a proximidade ao cidadão, sempre que possível», dificilmente se podia ter feito pior.
 

2012-01-08

Dever de investigar

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Um acórdão interessante publicado na Colectânea de Jurisprudência, 2011, 2, 57:

Acórdão da Relação de Coimbra de 16.03.2011:

I – O inquérito tem como finalidade investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação.

II – Se os factos que são participados por si só não constituem crime, colocar a máquina judicial a funcionar para, de seguida, determinar o arquivamento é uma inutilidade a todos os níveis (humanos e económicos).

III – Se, porém, estamos perante factos que nos oferecem dúvidas pela sua complexidade, pelos valores em causa, pelos contornos da situação que não são tão simples como se desenham na denúncia e pela abundante prova que há a investigar, significa que estão reunidos todos os pressupostos do dever de investigar, a começar pelo interrogatório do arguido.

IV – Em tal caso, se o MP profere despacho de arquivamento sem proceder a qualquer diligência, comete-se a nulidade insanável da falta de inquérito prevista no art. 119.º, al. d), do CPP.


A reter: Se o Ministério Público estiver perante factos cuja relevância criminal ofereça dúvida, nomeadamente pela sua complexidade e/ou pela abundante prova a obter e analisar, tem o dever de os investigar. Dúvida a reverter em benefício do arguido é bem lá mais para a frente, processualmente falando.