2024-08-29

A descrença na justiça penal


Parece-me que, em Portugal, estamos muito perto disto.

O nosso sistema jurídico-penal não é para levar a sério e, efectivamente, não o é.

Não tanto por causa de questões como as escutas, a violação do segredo de justiça ou outros que, quem pode, coloca na agenda político-mediática de tempos a tempos, em função das peripécias que vão ocorrendo numa dúzia de processos judiciais mais mediatizados.

Fora dessa bolha, o cidadão comum, que não reside nem trabalha em «zonas protegidas» e tem de se deslocar diariamente em transportes públicos, tem um justificado sentimento de descrença na justiça penal e a não menos justificada convicção de que a severidade da punição fica geralmente muito aquém da gravidade do crime e de que, mesmo quem comete crimes graves, não passará muito tempo na prisão.

Sentimento e convicção estes que, como é sabido, levam a que as vítimas não denunciem a prática de inúmeros crimes. Quanto maior for a descrença na justiça penal, maior será a percentagem de crimes não denunciados, falseando as estatísticas sobre a criminalidade. Isto para gáudio de quem tem governado Portugal ao longo das últimas três/quatro décadas, que, à indisfarçável realidade, sempre opôs números que com esta pouco tinham a ver, assim negando a existência de problemas ao nível da criminalidade, por mais óbvios que estes fossem. É um círculo vicioso: descrença no sistema penal – aumento das cifras negras – maior desfasamento das estatísticas sobre criminalidade em relação à realidade – ausência de medidas de combate à criminalidade – aumento da criminalidade… e voltamos ao princípio. 

Do lado dos criminosos, existe um generalizado sentimento de impunidade, de que aqui falei repetidamente ao longo dos anos e que só tem aumentado. Cada vez há mais criminosos, que fazem o que lhes apetece. Isso vê-se nas ruas, nos bairros, nos transportes públicos. Com frequência, entra-nos casa adentro, literalmente. Já nem o Governo escapa.


2024-08-25

Esfaqueamento no Festival da Diversidade


Foi, há pouco, noticiada a detenção do suspeito de ter sido o autor do esfaqueamento de onze pessoas que assistiam ao «Festival da Diversidade» em Solingen, Alemanha, ocorrido na passada 6.ª Feira, dia 23. Três das vítimas morreram e quatro outras encontram-se em estado crítico.

Contrariamente ao que vem sendo hábito, a notícia veiculada pela imprensa alemã menciona que se trata de um cidadão sírio, muçulmano, com 26 anos de idade, que chegou à Alemanha no final de Dezembro de 2022 e aí requereu asilo.

Não carece de demonstração a essencialidade, para a compreensão do ocorrido, da informação sobre a nacionalidade e a religião do detido e a situação em que este se encontra em território alemão. Muito diferente da habitual referência a «um jovem de 26 anos residente na Alemanha».

Era bom que as notícias voltassem a ser assim, sem censura. O público tem direito a informação completa e rigorosa. Até porque, nesta altura do campeonato, em que cenas destas em território da Europa ocidental são diárias, já não vale a pena tentar tapar o sol com a peneira.


2024-08-22

O que vale um polícia?


Desenvolvendo uma das ideias presentes nesta mensagem: para a manutenção da segurança pública, mais que a simples presença policial em determinado local, importa o regime jurídico em cujo quadro a polícia actua.

A presença de polícia nas ruas é, obviamente, indispensável para a manutenção da segurança pública. Contudo, o valor de cada polícia variará na exacta proporção, por um lado, da credibilidade que merecer o sistema jurídico-penal que ele representa e, por outro, da operacionalidade das normas que regulam a sua actuação. Cada polícia vale, em enorme medida, por aquilo que representa e por aquilo que a lei lhe permite fazer.

Se o sistema jurídico-penal não for credível, se não for levado a sério pela comunidade, outro tanto acontecerá com o polícia, que não será respeitado, mas sim desprezado, gozado, enxovalhado, desafiado e, inclusivamente, ofendido na sua integridade física por membros daquela que sejam menos dados ao cumprimento da lei.

Se as normas que regulam os termos em que o polícia deve praticar os actos próprios da sua função, nomeadamente as relativas ao uso da sua arma de serviço, não se adequarem às necessidades da vida real, o resultado será idêntico, ou ainda pior, pois a própria vida daquele poderá ficar em risco.

Se estas hipóteses se verificarem cumulativamente, cada polícia, por muito competente e empenhado que seja, pouco mais será que um homem ou uma mulher que veste uma farda e carrega uma arma que tem, muito justificadamente, medo de usar, ficando, assim, à mercê de qualquer meliante, que não se sujeita a regras e não limita a sua actuação por qualquer tipo de escrúpulos.

Nestas circunstâncias, nunca haverá polícias suficientes. Se o sistema jurídico-penal que eles representam não merecer credibilidade e o condicionamento legal da sua actuação não for ajustado às necessidades da vida real, nem com um polícia por metro quadrado será possível manter a segurança nas ruas.


2024-08-14

Separação de poderes no Reino Unido


Na sequência do que aqui se descreve e com o objectivo de conter os tumultos que ocorriam em várias cidades do Reino Unido, o primeiro ministro, Keir Starmer, ameaçou, através da comunicação social, que quem naqueles participasse seria prontamente julgado e condenado. «We do have standing arrangements for law enforcement, which means that we can get arrests, charge remanded in custody and convictions done very quickly,», anunciou ele. Sublinho: «we can get (…) convictions done very quickly». Ou seja, as condenações estavam, nas suas palavras, garantidas, e não tardariam.

Mera bravata de um primeiro-ministro em desespero, que não se lembrou de melhor solução para enfrentar a fúria popular resultante do assassinato das três meninas de Southport, que a de procurar intimidar os manifestantes, actuais ou potenciais, pensei eu. Como pode o primeiro-ministro do país que reivindica ter a democracia mais sólida do mundo prometer semelhante coisa? Esqueceu-se do princípio da separação de poderes?

Enganei-me redondamente. Afinal, o primeiro-ministro da tal democracia mais sólida do mundo podia fazer tudo aquilo que prometeu. E fê-lo, efectivamente. Apesar de o sistema judicial britânico já se encontrar sob enorme pressão devido ao excesso de processos, os julgamentos dos manifestantes detidos iniciaram-se de imediato, passando à frente dos restantes. E as condenações, em penas exemplares, também não se fizeram esperar. Tudo com ampla divulgação através dos canais de televisão e dos jornais britânicos, com fotos dos rostos dos condenados, pressurosamente fornecidas pelas autoridades, a fazerem primeiras páginas, num registo, no mínimo, pouco usual. O efeito intimidatório estava assegurado.

Parece, assim, possível, num país democrático, o poder executivo utilizar, às claras, o poder judicial como instrumento para a prossecução de objectivos políticos imediatos. Fica o registo.

 

P.S.: Recordo, a propósito, que as autoridades britânicas ainda não divulgaram qualquer foto actualizada de Axel Rudakubana, o assassino das três meninas, não obstante ele ter atingido, entretanto, a maioridade.

 


2024-08-03

Vácuos informativos


No passado dia 29 de Julho, um indivíduo introduziu-se num centro educativo em Southport, Reino Unido, onde matou, à facada, três meninas, com seis, sete e nove anos, que se encontravam numa aula de dança. Esfaqueou oito outras crianças e, ainda, dois adultos.

A autoridade policial relatou o sucedido, mas, sobre a identidade do agressor, os dados divulgados eram, evidentemente, incompletos: 17 anos de idade, de nacionalidade britânica, nascido em Cardiff e residente numa localidade próxima de Southport. Saltava à vista que ali faltava alguma coisa.

Em contraponto, a autoridade policial apressou-se a declarar que não se tratava de um ataque com motivação terrorista, o que é, em si mesmo, surpreendente, pois a investigação estava apenas no seu início. Dados facilmente averiguáveis não foram divulgados, mas a exclusão de motivação terrorista, que pressupõe investigação, veio logo a público.

Perante um crime tão brutal, o público queria, naturalmente, saber mais acerca do agressor. Mas não podia ser, disse a autoridade policial, pois, tendo o agressor menos de 18 anos, a lei proibia a divulgação do seu nome.

Muito bem, não poderia ser divulgado o nome, mas continuavam em falta outros dados, relativos à identidade do agressor, que a comunidade queria e tem o direito de conhecer. Qual a sua origem, o que fazia na vida, o que o teria levado a praticar aqueles actos. E, evidentemente, eventuais motivações religiosas, dada a associação, justa ou injusta, que geralmente é feita entre ataques à facada e indivíduos muçulmanos. O público tinha o direito de saber, nomeadamente, se se tratava de um crime de ódio.

Não obstante, nem mais um dado sobre o agressor veio a público, até que, dias depois, o juiz a quem aquele foi apresentado autorizou a divulgação do seu nome. Só então o público ficou a saber, além do nome do agressor (Axel Rudakubana), que este é filho de imigrantes ruandeses. Foram, ainda, divulgadas fotos antigas do indivíduo.

O fundamento invocado pelo juiz para autorizar a divulgação da identidade do agressor demonstra a sua sensatez: «Continuar a impedir a comunicação completa tem a desvantagem de permitir que outros espalhem desinformação, no vazio».

Com esta frase lapidar, o meu colega britânico tocou mesmo no centro da ferida. Uma comunicação patentemente incompleta não satisfaz o interesse do público em obter informação e, ao contrário do que os novos censores gostariam que acontecesse, não reduz a dimensão daquele interesse por forma a fazê-la coincidir com a da vontade de informar. Daí que, sempre que deixa de ser transmitida informação que o público pretende, legitimamente, conhecer, se crie uma espécie de vácuo informativo.

As consequências desta prática, que insidiosamente se instalou nas democracias ocidentais, estão à vista: o espaço não coberto pela notícia constitui o ambiente ideal para a proliferação de boatos, agora redenominados como «fake news».

No caso de Axel Rudakubana, as «fake news» foram imediatas. Era migrante, era requerente de asilo, era muçulmano. As suas consequências também o foram: vandalismo em Londres e em Southport, que incluiu um ataque à mesquita local, e dezenas de polícias feridos.

Dir-se-á: tendo sido imediatamente divulgado que o agressor tem nacionalidade britânica e nasceu em Cardiff e que a hipótese de ataque terrorista se encontrava descartada, o público ficou informado de que não se tratava de um migrante, de um requerente de asilo ou de um terrorista, pelo que não foi um vazio informativo que abriu o caminho à propagação de «fake news».

Não é assim. Uma notícia incompleta acaba por ser uma notícia falsa, na medida em que transmite apenas uma parte da realidade relevante, assim a distorcendo. Por isso, quem fornece notícias incompletas, seja sob que pretexto for, passa facilmente por mentiroso, o que, na realidade, é. Transmite apenas aquilo que pensa ser vantajoso para os fins, eventualmente nobres, que sobrepõe ao valor da verdade, na suposição de que os destinatários não passam de um rebanho de simplórios. Porém, como boa parte das pessoas já percebeu que a censura está de volta, ainda que com o rótulo de democrática e humanista (a pejorativamente denominada «censura do bem»), a táctica não pega. O público melhor informado já aprendeu que o melhor é desconfiar.

Portanto, perante uma notícia patentemente incompleta, é natural que o público nem sequer nos dados divulgados acredite. Sendo certa a incompletude da notícia e, consequentemente, a falta de credibilidade de quem a dá, a prudência aconselha a duvidar de tudo.

Concluindo, parece-me haver boas razões para estabelecer a descrita conexão entre notícias incompletas e «fake news».

Dito de outra forma: Querem realmente combater as «fake news»? Contar toda a verdade poderá ser um bom começo.