2024-09-20

O «Manifesto dos 50»

 

Um grupo de 50 cidadãos subscreveu um manifesto com a sua visão sobre o estado do nosso sistema de justiça, finalizando-o com algumas ideias, demasiadamente genéricas para poderem ser consideradas propostas, apelando à «resolução dos estrangulamentos e das disfunções que desde há muito minam a sua eficácia e a sua legitimação pública».

Os temas que o manifesto considera que merecem preocupação e justificam o «sobressalto cívico» que o mesmo encerra são os seguintes:

- Morosidade processual;

- Quebra do segredo de justiça;

- Mediatização de intervenções do Ministério Público contra agentes políticos;

- Colocação cirúrgica de notícias sobre investigações em curso;

- Graves abusos, em sede de investigação criminal, na utilização de medidas fortemente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nomeadamente:

- Proliferação de escutas telefónicas prolongadas;

- Buscas domiciliárias injustificadas;

- «Detenções preventivas» precipitadas e de duvidosa legalidade.

Salta à vista que, com excepção da genérica questão da morosidade processual, esta distinta lista de temas pouco tem a ver com as preocupações do cidadão comum em relação à criminalidade e ao sistema de justiça, mormente da justiça penal. Tem, sim, tudo a ver com factos ocorridos com alguns dos subscritores do manifesto e/ou pessoas que lhes são próximas.

O que, diga-se, nada tem de mal. Cada um queixa-se daquilo que o incomoda, ou que incomoda os seus. Porém, quem se queixa de dores próprias, ou de outrem porque lhe é próximo, deve assumi-lo, em vez de se arvorar em representante ou porta-voz do «Povo» (mencionado, em letra maiúscula, logo no 2.º parágrafo) ou da «sociedade portuguesa» (invocada no ponto 7). O manifesto pouco ou nada tem a ver com o povo, seguramente mais preocupado com temáticas criminais menos sofisticadas, como a de saber se, quando sai de casa, será assaltado ou, quando a ela regressar, a verá assaltada. Ou se os seus filhos serão agredidos ou assaltados na escola ou no caminho entre esta e a sua casa. Ou se o automóvel que anda a pagar em dolorosas prestações é furtado ou vandalizado.

Não surpreende, assim, a omissão de referência à insegurança nas ruas e nos transportes públicos, ou à necessidade de um mais intenso e eficaz combate à criminalidade, cada vez mais violenta e organizada. Enfim, aos problemas relacionados com a criminalidade que, estou certo, são os que preocupam a generalidade da população residente no nosso país, em particular aquela que habita e/ou trabalha em zonas menos selectas.


2024-09-11

A execução de penas segundo Carlos Rato

 

Um efeito colateral da fuga de Vale de Judeus tem sido a passagem, pelos canais de televisão, de pessoas que, mal abrem a boca, revelam a sua ignorância sobre aquilo de que falam. Por vezes, uma arrogante ignorância.

Foi o caso de Carlos Rato, Director da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso, em entrevista à SIC.

Transcrevo um curto excerto:

«Nas prisões, um dos grandes problemas que existem são os juízes de execução de penas. Temos aqui um problema gravíssimo. Temos na execução de penas pessoas que estão lá porque ficaram no final da classificação, são os últimos da lista de juízes. Quem não consegue entrar para mais lado nenhum, vai para juiz de execução de penas. Quando as pessoas que são juízes de execução de penas não estão preparadas ou vocacionadas para fazer isso, claro que depois temos as penas maiores da Europa em execução. Temos as cadeias cheias de gente que não tem carta de condução.»

É notável conseguir-se errar tanto com tão poucas palavras.

1.º - É rotundamente falso que os juízes de execução de penas o sejam por se encontrarem no final da «lista de juízes» (Carlos Rato tem certamente em vista a lista de antiguidade dos magistrados judiciais, que pode ser consultada no site do Conselho Superior da Magistratura). Numa rápida consulta à lista mais recente, respeitante ao ano de 2023, contei 4 juízes de execução de penas entre os 100 primeiros juízes de direito, nomeadamente a minha colega que, segundo tem sido noticiado, proferiu a decisão que terá determinado a transferência de um dos fugitivos do Estabelecimento Prisional de Monsanto para o de Vale de Judeus. Já entre os 100 juízes de direito constantes do final daquela lista, não vi qualquer juiz de execução de penas. Resta esclarecer que constam da lista 1398 juízes de direito.

2.º - Não são os juízes de execução de penas que condenam os reclusos nas penas que estes cumprem. Os juízes de execução de penas limitam-se a proferir decisões respeitantes à fase de execução das penas de prisão em que outros juízes, colocados noutros tribunais, condenaram os reclusos. Nada têm a ver com a natureza e a medida das penas em que os reclusos foram condenados, nomeadamente com a duração das penas de prisão.

Portanto, Carlos Rato errou em toda a linha. Nem os juízes de execução de penas são «os últimos da lista», nem, ainda que o fossem, isso poderia ter qualquer influência na duração das penas que os reclusos cumprem. Ou seja, tratou-se de mais um episódio de poluição jurídica.

Sobre a alegação de que «temos as penas maiores da Europa em execução» e de que «temos as cadeias cheias de gente que não tem carta de condução», que também ouvi, por estes dias, a Vítor Ilharco, secretário-geral da APAR, escreverei um dia destes.


2024-09-10

Como mascarar os problemas do sistema prisional


Escrevi aqui que, ao longo dos últimos 50 anos, o poder político se tem limitado a «gerir a crise» e a empurrar com a barriga os problemas do nosso sistema prisional, em vez de os resolver. Pior, especializou-se em mascará-los.

O expediente para o efeito mais utilizado tem sido a concessão de amnistias e perdões de penas quando a pressão resultante da sobrelotação das prisões se torna insuportável, colocando-se em liberdade, de um dia para o outro, algumas centenas de reclusos. As visitas papais a Portugal são o pretexto preferido, mas até a Covid-19 serviu para conceder um perdão de penas encapotado.

Noutras ocasiões, a máquina político-mediática é posta em marcha no sentido de espalhar a ideia de que há demasiados presos em Portugal. Uma vez preparado, dessa forma, o terreno, sai uma alteração da legislação penal que tem por efeito a imediata libertação de mais algumas centenas de reclusos. A «Reforma Penal de 2007» foi um flagrante exemplo disso. Embora não assumido (obviamente…), um dos objectivos centrais dessa reforma foi esvaziar prisões, fosse a que preço fosse, como em devido tempo salientei:

- Objectivo: esvaziar prisões (1) – link

- Objectivo: esvaziar prisões (2) – link

- Objectivo: esvaziar prisões (3) – link

A enfrentar os reais problemas do sistema prisional, reformando-o de alto a baixo, é que todos têm fugido. É complicado, é demorado, requer investimentos significativos e, ainda por cima, não dá votos.


2024-09-08

A propósito da fuga de Vale de Judeus

 

Ontem de manhã, evadiram-se do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, classificado como de alta segurança, 5 reclusos, 4 dos quais considerados muito perigosos. Saltaram o muro e foram às vidas deles, sem oposição e sem serem, sequer, detectados por quem os guardava.

A comunicação social não fala de outra coisa desde que a fuga foi conhecida. Subitamente, toda a gente acordou para o facto de as prisões, à semelhança da generalidade dos restantes sectores do Estado Português, se encontrarem numa situação de ruptura. Sobrelotadas, em péssimas condições, com um número insuficiente de guardas prisionais e com graves falhas de segurança.

Os problemas do sistema prisional não são de hoje, nem do último ano, nem sequer dos últimos 10 anos. Nos últimos 50 anos, o sistema prisional tem sido, pura e simplesmente, desprezado pelos sucessivos governos. O país vive de costas voltadas para as suas prisões, fingindo que elas não existem, e só se lembra delas quando ocorre uma evasão mais aparatosa, como a de ontem, ou quando algum cidadão mais ilustre é preso. O mesmo tem feito o poder político, que, em vez de enfrentar os inúmeros problemas existentes, se limita a «gerir a crise», empurrando os problemas com a barriga. É assim há 50 anos, repito.

Enfim, pode ser que seja desta que o país acorde para a gravíssima situação das nossas prisões. Plagiando o «Manifesto dos 50», que obviamente se concentra em questões mais selectas que a do sistema prisional, pode ser que se verifique um «sobressalto cívico» que leve o Estado Português a, 50 anos depois, voltar a cuidar das suas prisões.


2024-09-06

O regresso da censura (1)

 

Vivemos tempos sombrios em matéria de liberdade de expressão, de liberdade de informar e de direito a ser informado. Pé ante pé e sempre com piedosos pretextos, vão-se criando e expandindo limitações de toda a ordem. Não se pode dizer isto porque é racismo, não se pode dizer aquilo porque é homofobia, transfobia ou outra qualquer fobia desse espectro, não se pode dizer aqueloutro porque é xenofobia ou discurso de ódio, e assim por diante.

Este tipo de rotulagem da opinião divergente tem feito as vezes do antigo lápis azul na perfeição. Por via dela, a referida opinião passa de meramente divergente a proibida. Proibição essa a que tem vindo a ser conferida tutela penal e contraordenacional. Discordar passa, cada vez mais facilmente, a constituir um ilícito criminal ou contraordenacional.

Entretanto, o princípio da intervenção mínima do Direito Penal parece ter sido mandado às urtigas. A construção da «sociedade do bem» (mais uma...) não pode prescindir da utilização, pelo Estado, do seu mais contundente meio coercivo, que é a tutela penal de toda uma panóplia de novos bens jurídicos.

A extensão de termos como «racismo», «homofobia», «xenofobia», «discurso de ódio» e outros ao serviço da mesma causa tem vindo a ser ampliada a tal ponto que, para os sensíveis ouvidos dos novos polícias da palavra, já lá cabem realidades que, racionalmente, nada têm a ver com as etiquetas que estes lhes colam.

A partir do momento em que se conseguiu a criminalização de comportamentos através da inclusão, em tipos penais, de conceitos tão vagos como os de «racismo», «ódio», «xenofobia» ou «homofobia», o esforço dos prosélitos do wokismo passou a ser o de os hipertrofiar, neles incluindo, em toda a medida que caiba nas suas férteis imaginações, o que divergir das suas bizarras teorias. Se, no limite, conseguirem proibir toda a opinião divergente, ficarão dispensados de contra-argumentar.

Não obstante, nada sacia essa gente, que permanentemente inventa novas modalidades de «discriminação», de «ofensa», de «incitamento ao ódio», com a inerente proliferação de limitações à liberdade de expressão. Quantos mais grupos de «vítimas» de discriminações e ofensas várias e de imaginados discursos de ódio forem inventados, maior será o rebanho e, em consequência, o poder dos seus pastores, protectores e guias espirituais.

Do lado do cidadão comum, o efeito é precisamente o pretendido. Como a generalidade das pessoas já tem problemas que cheguem e não quer arranjar mais, surge, em todo o seu esplendor, a auto-censura. Na dúvida, é melhor não dizer o que se pensa sobre os novos «temas proibidos», não utilizar «palavras proibidas», não opinar contra a «ditadura do bem». O «está calado, que isso não se pode dizer», do tempo do Estado Novo, regressou em força, embora sob bandeira diversa. Pela mão dos «activistas», «progressistas», «anti-fascistas» e outras designações simpáticas que eles a si próprios atribuem. E, lamentavelmente, com a cobarde complacência dos que, embora não o sendo, a eles se vergam.

Perante isto, o mínimo que cada um tem o dever de fazer em defesa da liberdade de expressão é exercê-la plenamente.


2024-09-04

As notícias omitidas


Aquilo que se vê nos «noticiários» da SIC, SIC-N, TVI, CNN e RTP é, cada vez menos, informação e, cada vez mais, propaganda pura e dura.

Desde logo, na escolha do que se transmite e do que se omite.

O espectador é bombardeado diariamente, a cada hora, com doses maciças de Israel/Gaza, Rússia/Ucrânia, Venezuela e campanha eleitoral para a presidência dos EUA. 

Sobre o clima de pré-guerra civil que se vive no Reino Unido, com o primeiro-ministro trabalhista numa insana deriva autoritária que está a fazer dele o mais odiado em décadas, nada.

Sobre a brusca inversão de marcha da Suécia em matéria de política de imigração e as razões que a tanto levaram, nada.

Sobre o facto de a Alemanha estar a iniciar idêntica manobra nessa mesma matéria desde o atentado de Solingen, nada.

Sobre o caos que se instalou nas nossas vizinhas Canárias devido à alteração dos fluxos migratórios da rota mediterrânica para a rota atlântica, nada.

Sobre as crescentes tensões sociais que se verificam nos países da Europa ocidental mais castigados por fluxos migratórios descontrolados (França, Irlanda, Bélgica), nada.

Isto é tudo menos informar.


2024-08-29

A descrença na justiça penal


Parece-me que, em Portugal, estamos muito perto disto.

O nosso sistema jurídico-penal não é para levar a sério e, efectivamente, não o é.

Não tanto por causa de questões como as escutas, a violação do segredo de justiça ou outros que, quem pode, coloca na agenda político-mediática de tempos a tempos, em função das peripécias que vão ocorrendo numa dúzia de processos judiciais mais mediatizados.

Fora dessa bolha, o cidadão comum, que não reside nem trabalha em «zonas protegidas» e tem de se deslocar diariamente em transportes públicos, tem um justificado sentimento de descrença na justiça penal e a não menos justificada convicção de que a severidade da punição fica geralmente muito aquém da gravidade do crime e de que, mesmo quem comete crimes graves, não passará muito tempo na prisão.

Sentimento e convicção estes que, como é sabido, levam a que as vítimas não denunciem a prática de inúmeros crimes. Quanto maior for a descrença na justiça penal, maior será a percentagem de crimes não denunciados, falseando as estatísticas sobre a criminalidade. Isto para gáudio de quem tem governado Portugal ao longo das últimas três/quatro décadas, que, à indisfarçável realidade, sempre opôs números que com esta pouco tinham a ver, assim negando a existência de problemas ao nível da criminalidade, por mais óbvios que estes fossem. É um círculo vicioso: descrença no sistema penal – aumento das cifras negras – maior desfasamento das estatísticas sobre criminalidade em relação à realidade – ausência de medidas de combate à criminalidade – aumento da criminalidade… e voltamos ao princípio. 

Do lado dos criminosos, existe um generalizado sentimento de impunidade, de que aqui falei repetidamente ao longo dos anos e que só tem aumentado. Cada vez há mais criminosos, que fazem o que lhes apetece. Isso vê-se nas ruas, nos bairros, nos transportes públicos. Com frequência, entra-nos casa adentro, literalmente. Já nem o Governo escapa.


2024-08-25

Esfaqueamento no Festival da Diversidade


Foi, há pouco, noticiada a detenção do suspeito de ter sido o autor do esfaqueamento de onze pessoas que assistiam ao «Festival da Diversidade» em Solingen, Alemanha, ocorrido na passada 6.ª Feira, dia 23. Três das vítimas morreram e quatro outras encontram-se em estado crítico.

Contrariamente ao que vem sendo hábito, a notícia veiculada pela imprensa alemã menciona que se trata de um cidadão sírio, muçulmano, com 26 anos de idade, que chegou à Alemanha no final de Dezembro de 2022 e aí requereu asilo.

Não carece de demonstração a essencialidade, para a compreensão do ocorrido, da informação sobre a nacionalidade e a religião do detido e a situação em que este se encontra em território alemão. Muito diferente da habitual referência a «um jovem de 26 anos residente na Alemanha».

Era bom que as notícias voltassem a ser assim, sem censura. O público tem direito a informação completa e rigorosa. Até porque, nesta altura do campeonato, em que cenas destas em território da Europa ocidental são diárias, já não vale a pena tentar tapar o sol com a peneira.


2024-08-22

O que vale um polícia?


Desenvolvendo uma das ideias presentes nesta mensagem: para a manutenção da segurança pública, mais que a simples presença policial em determinado local, importa o regime jurídico em cujo quadro a polícia actua.

A presença de polícia nas ruas é, obviamente, indispensável para a manutenção da segurança pública. Contudo, o valor de cada polícia variará na exacta proporção, por um lado, da credibilidade que merecer o sistema jurídico-penal que ele representa e, por outro, da operacionalidade das normas que regulam a sua actuação. Cada polícia vale, em enorme medida, por aquilo que representa e por aquilo que a lei lhe permite fazer.

Se o sistema jurídico-penal não for credível, se não for levado a sério pela comunidade, outro tanto acontecerá com o polícia, que não será respeitado, mas sim desprezado, gozado, enxovalhado, desafiado e, inclusivamente, ofendido na sua integridade física por membros daquela que sejam menos dados ao cumprimento da lei.

Se as normas que regulam os termos em que o polícia deve praticar os actos próprios da sua função, nomeadamente as relativas ao uso da sua arma de serviço, não se adequarem às necessidades da vida real, o resultado será idêntico, ou ainda pior, pois a própria vida daquele poderá ficar em risco.

Se estas hipóteses se verificarem cumulativamente, cada polícia, por muito competente e empenhado que seja, pouco mais será que um homem ou uma mulher que veste uma farda e carrega uma arma que tem, muito justificadamente, medo de usar, ficando, assim, à mercê de qualquer meliante, que não se sujeita a regras e não limita a sua actuação por qualquer tipo de escrúpulos.

Nestas circunstâncias, nunca haverá polícias suficientes. Se o sistema jurídico-penal que eles representam não merecer credibilidade e o condicionamento legal da sua actuação não for ajustado às necessidades da vida real, nem com um polícia por metro quadrado será possível manter a segurança nas ruas.


2024-08-14

Separação de poderes no Reino Unido


Na sequência do que aqui se descreve e com o objectivo de conter os tumultos que ocorriam em várias cidades do Reino Unido, o primeiro ministro, Keir Starmer, ameaçou, através da comunicação social, que quem naqueles participasse seria prontamente julgado e condenado. «We do have standing arrangements for law enforcement, which means that we can get arrests, charge remanded in custody and convictions done very quickly,», anunciou ele. Sublinho: «we can get (…) convictions done very quickly». Ou seja, as condenações estavam, nas suas palavras, garantidas, e não tardariam.

Mera bravata de um primeiro-ministro em desespero, que não se lembrou de melhor solução para enfrentar a fúria popular resultante do assassinato das três meninas de Southport, que a de procurar intimidar os manifestantes, actuais ou potenciais, pensei eu. Como pode o primeiro-ministro do país que reivindica ter a democracia mais sólida do mundo prometer semelhante coisa? Esqueceu-se do princípio da separação de poderes?

Enganei-me redondamente. Afinal, o primeiro-ministro da tal democracia mais sólida do mundo podia fazer tudo aquilo que prometeu. E fê-lo, efectivamente. Apesar de o sistema judicial britânico já se encontrar sob enorme pressão devido ao excesso de processos, os julgamentos dos manifestantes detidos iniciaram-se de imediato, passando à frente dos restantes. E as condenações, em penas exemplares, também não se fizeram esperar. Tudo com ampla divulgação através dos canais de televisão e dos jornais britânicos, com fotos dos rostos dos condenados, pressurosamente fornecidas pelas autoridades, a fazerem primeiras páginas, num registo, no mínimo, pouco usual. O efeito intimidatório estava assegurado.

Parece, assim, possível, num país democrático, o poder executivo utilizar, às claras, o poder judicial como instrumento para a prossecução de objectivos políticos imediatos. Fica o registo.

 

P.S.: Recordo, a propósito, que as autoridades britânicas ainda não divulgaram qualquer foto actualizada de Axel Rudakubana, o assassino das três meninas, não obstante ele ter atingido, entretanto, a maioridade.

 


2024-08-03

Vácuos informativos


No passado dia 29 de Julho, um indivíduo introduziu-se num centro educativo em Southport, Reino Unido, onde matou, à facada, três meninas, com seis, sete e nove anos, que se encontravam numa aula de dança. Esfaqueou oito outras crianças e, ainda, dois adultos.

A autoridade policial relatou o sucedido, mas, sobre a identidade do agressor, os dados divulgados eram, evidentemente, incompletos: 17 anos de idade, de nacionalidade britânica, nascido em Cardiff e residente numa localidade próxima de Southport. Saltava à vista que ali faltava alguma coisa.

Em contraponto, a autoridade policial apressou-se a declarar que não se tratava de um ataque com motivação terrorista, o que é, em si mesmo, surpreendente, pois a investigação estava apenas no seu início. Dados facilmente averiguáveis não foram divulgados, mas a exclusão de motivação terrorista, que pressupõe investigação, veio logo a público.

Perante um crime tão brutal, o público queria, naturalmente, saber mais acerca do agressor. Mas não podia ser, disse a autoridade policial, pois, tendo o agressor menos de 18 anos, a lei proibia a divulgação do seu nome.

Muito bem, não poderia ser divulgado o nome, mas continuavam em falta outros dados, relativos à identidade do agressor, que a comunidade queria e tem o direito de conhecer. Qual a sua origem, o que fazia na vida, o que o teria levado a praticar aqueles actos. E, evidentemente, eventuais motivações religiosas, dada a associação, justa ou injusta, que geralmente é feita entre ataques à facada e indivíduos muçulmanos. O público tinha o direito de saber, nomeadamente, se se tratava de um crime de ódio.

Não obstante, nem mais um dado sobre o agressor veio a público, até que, dias depois, o juiz a quem aquele foi apresentado autorizou a divulgação do seu nome. Só então o público ficou a saber, além do nome do agressor (Axel Rudakubana), que este é filho de imigrantes ruandeses. Foram, ainda, divulgadas fotos antigas do indivíduo.

O fundamento invocado pelo juiz para autorizar a divulgação da identidade do agressor demonstra a sua sensatez: «Continuar a impedir a comunicação completa tem a desvantagem de permitir que outros espalhem desinformação, no vazio».

Com esta frase lapidar, o meu colega britânico tocou mesmo no centro da ferida. Uma comunicação patentemente incompleta não satisfaz o interesse do público em obter informação e, ao contrário do que os novos censores gostariam que acontecesse, não reduz a dimensão daquele interesse por forma a fazê-la coincidir com a da vontade de informar. Daí que, sempre que deixa de ser transmitida informação que o público pretende, legitimamente, conhecer, se crie uma espécie de vácuo informativo.

As consequências desta prática, que insidiosamente se instalou nas democracias ocidentais, estão à vista: o espaço não coberto pela notícia constitui o ambiente ideal para a proliferação de boatos, agora redenominados como «fake news».

No caso de Axel Rudakubana, as «fake news» foram imediatas. Era migrante, era requerente de asilo, era muçulmano. As suas consequências também o foram: vandalismo em Londres e em Southport, que incluiu um ataque à mesquita local, e dezenas de polícias feridos.

Dir-se-á: tendo sido imediatamente divulgado que o agressor tem nacionalidade britânica e nasceu em Cardiff e que a hipótese de ataque terrorista se encontrava descartada, o público ficou informado de que não se tratava de um migrante, de um requerente de asilo ou de um terrorista, pelo que não foi um vazio informativo que abriu o caminho à propagação de «fake news».

Não é assim. Uma notícia incompleta acaba por ser uma notícia falsa, na medida em que transmite apenas uma parte da realidade relevante, assim a distorcendo. Por isso, quem fornece notícias incompletas, seja sob que pretexto for, passa facilmente por mentiroso, o que, na realidade, é. Transmite apenas aquilo que pensa ser vantajoso para os fins, eventualmente nobres, que sobrepõe ao valor da verdade, na suposição de que os destinatários não passam de um rebanho de simplórios. Porém, como boa parte das pessoas já percebeu que a censura está de volta, ainda que com o rótulo de democrática e humanista (a pejorativamente denominada «censura do bem»), a táctica não pega. O público melhor informado já aprendeu que o melhor é desconfiar.

Portanto, perante uma notícia patentemente incompleta, é natural que o público nem sequer nos dados divulgados acredite. Sendo certa a incompletude da notícia e, consequentemente, a falta de credibilidade de quem a dá, a prudência aconselha a duvidar de tudo.

Concluindo, parece-me haver boas razões para estabelecer a descrita conexão entre notícias incompletas e «fake news».

Dito de outra forma: Querem realmente combater as «fake news»? Contar toda a verdade poderá ser um bom começo.


2024-07-30

Aumentar o policiamento: o penso rápido.


A criminalidade aumenta? O cidadão pacato e cumpridor sente-se inseguro quando sai à rua, quando está numa superfície comercial, até mesmo quando está em casa? A reivindicação dos autarcas é sempre a mesma: mais policiamento. À qual o/a ministro/a da administração interna que estiver em funções poderá reagir de várias formas:

1 – Reconhecer que o problema existe e aumentar o policiamento nos locais onde a crise se verifica;

2 – Reconhecer que o problema existe, prometer aquele aumento, mas nunca o concretizar, com a esperança de que o problema desapareça espontaneamente ou de que o cidadão pacato e cumpridor se habitue à sua nova forma de vida (não sair de casa sem antes ir à janela ver como está o ambiente na rua, sair sem ostentar objectos que possam despertar a cobiça alheia, olhar permanentemente em redor e voltar para casa o mais depressa possível, preferencialmente antes de escurecer) e deixe de reclamar;

3 – Negar a existência do problema, sendo optativo aproveitar a ocasião para dissertar – ou mandar alguém fazê-lo – acerca da distinção entre insegurança e sentimento de insegurança (escrevi sobre isto em 2008 – link);

4 – Ignorar olimpicamente o pedido de mais policiamento.

Na melhor das hipóteses, a opção será, obviamente, a primeira. Contudo, importa ter em mente que o reforço do policiamento em determinado local não passa de uma medida pontual e necessariamente transitória, que não resolve verdadeiramente o problema da insegurança. Trata-se de uma espécie de penso rápido: protege a ferida, mas, nem dispensa o tratamento desta, nem pode lá ficar para sempre.

Perante o aumento do policiamento em determinado local, aquilo que acontecerá, na melhor das hipóteses, será a deslocação dos elementos causadores de insegurança para outro. Aí, reinicia-se o ciclo descrito, com outra localização. Como, ao contrário dos pensos rápidos, as forças de segurança são escassas, o reforço do policiamento na nova localização implicará, inevitavelmente, a diminuição deste na anterior, ou numa das anteriores. Daí a apontada similitude com o penso rápido também no que toca à provisoriedade, embora por razões diferentes.

E nada mais poderá fazer o/a ministro/a da administração interna. Ou seja, na realidade, pouco pode fazer.

O problema da insegurança em Portugal é muito mais profundo e, no que à lei diz respeito, tem as suas raízes na década de 80 do século XX, quando se fez um Código Penal que se quis em linha com o que de mais vanguardista existia à época («à la pointe même du progrès», como se ufanava o legislador no respectivo prefácio), mas que se mostrou absolutamente inadequado às especificidades e às necessidades do nosso país. A isso, acresce a desactualização do ideário jurídico-penal em que assenta, face a um país (e a uma Europa, e a um mundo) em vertiginosa mudança, seguramente para pior em matéria de insegurança. As sucessivas e, por vezes, erráticas alterações a que tem sido sujeito, não resolveram os problemas referidos. Em algumas matérias, agravaram-nos.

É claro que o problema da insegurança tem múltiplos factores na sua origem. Não se resolve com mudanças legislativas, longe disso. Não obstante, a lei tem de cumprir a sua parte. A lei penal (na sua globalidade) de um país tem de se adequar às especificidades e corresponder às necessidades deste em cada momento. É isto que o Código Penal de 1982 nunca conseguiu (escrevi sobre isto em 2011 – link).

O essencial do problema da insegurança não pode, pois, ser resolvido pelo Ministério da Administração Interna. No que à legislação respeita, é assunto para a Assembleia da República. Agora, que tanto se fala novamente na necessidade de uma reforma da justiça, aproveitem para fazer uma reforma penal a sério, em vez de se limitarem a fazer a habitual meia dúzia de remendos legislativos, que hão-de resolver tanto quanto os anteriores, ou seja, nada.