2013-02-10

Dano morte (6)


Ainda a propósito do dano morte, deixo uma última observação, esta sobre o argumento da “cautela”, da “prudência” ou da “moderação” na fixação da indemnização, frequentemente invocado em sede de fixação da indemnização por danos não patrimoniais.

Historicamente, este argumento apenas constituiu um perverso travão à atribuição de indemnizações justas aos lesados. Basta revisitar algumas decisões judiciais de há 30 anos atrás, daquelas que fixavam indemnizações por danos não patrimoniais em valores que hoje, mesmo com a correcção monetária, nos parecem ridículos. Lá encontramos, de vez em quando, o amparo na tal “cautela”, “prudência”, “moderação".

Porém, neste contexto, os termos “cautela”, “prudência” ou “moderação” são enganadores e, logo, inapropriados. Se uma indemnização é excessivamente modesta, não se trata de cautela, prudência, moderação ou ideia aparentada, mas, pura e simplesmente, de beneficiar o lesante, ou quem responde no lugar deste, em prejuízo do lesado. É disto que se trata no domínio da responsabilidade civil. Funciona aqui a ideia dos vasos comunicantes: dar menos a uma parte é enriquecer injustamente a outra. Nesta equação, a tradição tem sido beneficiar o infractor em detrimento da vítima, por razões que não consigo descortinar. Há que mudar rapidamente e sem hesitações, é a minha opinião.

2013-02-03

Dano morte (5)


Vamos lá desenvolver um pouco mais a ideia, AQUI DEIXADA, de que um ponto de referência útil para a fixação da indemnização pelo dano morte é o montante das coimas estabelecidas pelo Direito Contra-Ordenacional. Mais não seja, poderá este ponto de referência ajudar a quebrar as barreiras psicológicas que parecem subsistir quando se trata de quantificar a indemnização pelo dano morte, bem como, aliás, por outros danos não patrimoniais.

Atentemos, por exemplo, no disposto no n.º 4 do artigo 22.º da Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, aprovada pela Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto:

4 – Às contra-ordenações muito graves correspondem as seguintes coimas:

a) Se praticadas por pessoas singulares, de € 20.000 a € 30.000 em caso de negligência e de € 30.000 a € 37.500 em caso de dolo;

b) Se praticadas por pessoas colectivas, de € 38.500 a € 70.000 em caso de negligência e de € 200.000 a € 2.500.000 em caso de dolo.

Sublinho: pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave, uma pessoa colectiva pode ser condenada numa coima cujo máximo é de € 2.500.000, ou seja, mais de 31 vezes o valor mais “generoso” que a jurisprudência vem atribuindo pelo dano morte.

Ao percorrer a cada vez mais vasta legislação que estabelece coimas, os exemplos de montantes elevados, normalmente da ordem, pelo menos, das dezenas de milhares de euros, multiplicam-se. Veja-se, desde logo, a título de exemplo, o artigo 17.º da Lei-Quadro das Contra-Ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).

Analisemos, agora, o problema do ponto de vista do agente/responsável. Imaginemos uma sociedade comercial que desenvolve uma actividade sujeita a normas cuja infracção constitua contra-ordenação e que, concomitantemente, envolva riscos para a vida de pessoas, sejam seus trabalhadores ou terceiros.

Fará, à partida, algum sentido que a indemnização a pagar pela morte de uma pessoa se traduza numa quantia insignificante em relação aos montantes das coimas a que a entidade em causa pode estar sujeita? Do ponto de vista preventivo (finalidade que não é estranha também à responsabilidade civil), fará sentido tal disparidade? Fará sentido que alguém (entenda-se, um gestor da nova vaga, para quem o bem e o mal, o melhor e o pior, sejam mera função da respectiva expressão pecuniária) pense que poderá sair muitíssimo mais barato à referida sociedade que um seu trabalhador sofra um acidente de trabalho mortal que ser “apanhada” num processo contra-ordenacional? Poderá, no fundo, dizer-se que há alguma justiça se isso acontecer?

Agora do ponto de vista de quem julga: poderá um juiz, após confirmar uma decisão administrativa que tenha condenado numa coima de € 2.500.000 o autor de uma contra-ordenação ambiental, atribuir uma indemnização de € 50.000, € 60.000, € 70.000, € 80.000 pelo dano morte sem que, em algum momento, ponha em causa aquilo que anda a fazer?

Se isso acontecer – e acontece efectivamente – numa Ordem Jurídica em que o valor da vida humana suplanta, em muito, o mero interesse geral de punir comportamentos violadores de normas de Direito Contra-Ordenacional, algo estará, parece-me, profundamente errado.

É claro que sempre se poderá encontrar aconchego intelectual em meia dúzia de doutíssimos manuais de Direito e em duas dúzias de citações dos autores alemães que têm aliviado alguns dos nossos da ingrata tarefa de pensarem pelas suas próprias cabeças, correndo os inerentes riscos, e de terem em conta a realidade portuguesa, que provavelmente nem sequer conhecem. Fraco consolo, porém. Por muitos argumentos de natureza formal que ali se encontrem, a questão substancial permanecerá.

Por tudo isto e concluindo, parece-me haver alguma incoerência em se considerar que um montante de € 80.000 é equitativo (já nem falo do de € 50.000…) quando se trata de indemnizar o dano morte. Parece-me haver boas razões para quebrar essa barreira, como outras o foram anteriormente.