2011-08-31

A imagem como meio de prova (3)

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Pelas razões que referi nesta mensagem, tenho, por princípio, as maiores reservas relativamente a artigos de jornal sobre questões jurídicas. Mais, numa matéria tão complexa como esta, impossível de resumir em duas ou três frases como os jornalistas gostam, talvez o melhor fosse os entrevistados invocarem o direito ao silêncio e, no caso de MANUEL DA COSTA ANDRADE, de longe o nosso maior especialista na mesma (humilde opinião deste bloguista de trazer pela província), remeter para os escritos que dedicou ao tema, de entre os quais sobressai o clássico “SOBRE AS PROIBIÇÕES DE PROVA EM PROCESSO PENAL”, ainda hoje, quase duas décadas volvidas sobre a sua 1.ª edição, uma obra – ou melhor, A OBRA – de referência sobre o mesmo tema, sem esquecer as suas preciosas anotações aos artigos 192.º e 199.º do Código Penal incluídas no “COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL”.
Com estas reservas, vou tentar sintetizar as teses dos entrevistados e os respectivos argumentos.
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Começo pela opinião de GERMANO MARQUES DA SILVA, professor catedrático de Direito Penal, que é, em síntese, a seguinte: 
- Os vídeos particulares feitos sem consentimento dos participantes são prova proibida;
- O registo de imagens só pode ser feito com autorização prévia de um juiz ou com o consentimento dos visados;
- O filme só pode ser utilizado como prova do crime de gravações e fotografias ilícitas, não do crime que foi filmado;
- Nem sequer como ponto de partida para uma investigação criminal o filme pode servir, pois não se pode partir de uma prova proibida para buscar outros meios de prova.
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Argumentos:
- Demorámos décadas a conquistar determinados direitos, como o direito à imagem e à privacidade; admitir a gravação de imagens e conversas ou fotografias sem autorização dos próprios é recuar ao tempo de Salazar;
- Embora, em algumas situações, a exclusão deste tipo de prova seja chocante, trata-se de um custo da democracia; ou queremos uma sociedade regida por valores fundamentais da democracia, ou queremos uma sociedade securitária e policial;
- As provas proibidas surgiram devido, em parte, aos excessos da polícia; as garantias que existem são gerais e abstractas, com o objectivo de proteger as pessoas; admite que, por vezes, aplicadas a casos concretos, "arrepiam".
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MANUEL DA COSTA ANDRADE, professor catedrático de Direito Penal, embora com argumentação diferente da de GERMANO MARQUES DA SILVA, não diverge significativamente deste último no que toca às soluções que propõe, excepto quanto à utilizabilidade do filme como meio de investigação:
- Ninguém pode fotografar ou filmar ninguém sem o seu consentimento; a lei diz que as gravações obtidas sem consentimento são ilícitas;
- Existe um conflito de direitos, mas não entre o direito à imagem e o direito que terá sido violado pelos actos que foram fotografados ou filmados (por exemplo, o direito à integridade física), violação essa que já se consumou; o verdadeiro conflito verifica-se, sim, entre o direito à imagem e a perseguição criminal;
- Ora, nestes casos, por expressa determinação da lei, o direito à imagem prevalece;
- Os vídeos podem ser utilizados como notícia de um crime, podendo as autoridades depois procurar outras provas.
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Opinião diametralmente oposta tem MARIA JOSÉ MORGADO, directora do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa:
- Os vídeos particulares podem ser utilizados como prova quando interesses de valor superior estão em causa;
- Quando há direitos em colisão, a Constituição consagra que prevalece o mais importante; ora, os direitos à vida e à integridade física sobrepõem-se ao direito à imagem;
- Por exemplo, se tivéssemos a imagem de um homicídio e não a pudéssemos utilizar, seria um absurdo.
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Também admite a utilização de imagens captadas por particulares MAIA COSTA, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça:
- Não há obstáculo à utilização de vídeos particulares como meio de prova se os mesmos forem gravados no espaço público, circunstância que exclui qualquer intromissão na vida privada;
- O princípio geral é o de que todas as provas são permitidas a não ser que sejam prova proibida e os vídeos feitos por particulares no espaço público não fazem parte desse grupo;
- Tratando-se de um normal meio de prova, o vídeo vai ser livremente avaliado pelo juiz do caso, em conjunto com a restante prova.
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Ou seja, a seguir-se as opiniões daqueles dois professores catedráticos, o nosso bem intencionado cidadão apenas teria arranjado sarilhos para si próprio e o seu precioso filme não poderia ser utilizado como meio de prova da prática do assalto, fosse este um furto ou um roubo.
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Apesar de as opiniões dos quatro entrevistados se encontrarem expressas na meia dúzia de palavras que o formato de um artigo de jornal generalista exige, temos aqui um conjunto interessante de tópicos, que vale a pena analisar. É o que irei fazendo à medida que o tempo mo permitir.  
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2011-08-23

A imagem como meio de prova (2)

 
 
Um caso prático:

Um cidadão vê um grupo de indivíduos a assaltar uma loja. Não lhe sendo possível chamar a polícia em tempo útil para evitar o assalto, pega no seu telemóvel e filma este último. Como pessoa de bem que é, preocupada com a crescente e cada vez mais violenta e descarada criminalidade no seu bairro, corre à esquadra da PSP mais próxima e conta o sucedido, disponibilizando o filme que tão oportunamente conseguiu fazer, que permite identificar os larápios.

Pergunta-se:

1 – Poderá este filme ser utilizado num processo criminal contra os autores do assalto?

2 – Sofrerá o referido cidadão a frustração de ver rejeitada a sua bem intencionada colaboração com a Justiça com o pretexto de que o seu filme é prova inadmissível?

3 – Ou, pior ainda, arriscar-se-á o mesmo cidadão a ser alvo de um processo criminal e a ser condenado numa pena de prisão até 1 ano ou multa até 240 dias por ter cometido um crime de “gravações e fotografias ilícitas” previsto e punido pelo artigo 199.º do Código Penal? Ele, coitado, que em momento algum sonhou que os larápios tivessem, no momento do crime, um direito à imagem e que, ao fazer o seu precioso filme, estivesse a violar esse mesmo direito…

Esta problemática suscitou-se recentemente a propósito de três casos ocorridos entre nós. Interessou-se por ela o jornal “Público”, através da jornalista MARIANA OLIVEIRA. Na edição de 08.06.2011, foi publicado o artigo com o resultado da investigação a que ela procedeu, que contém as opiniões de dois professores catedráticos de Direito Penal (GERMANO MARQUES DA SILVA e MANUEL DA COSTA ANDRADE), uma magistrada do Ministério Público (MARIA JOSÉ MORGADO) e um juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça (MAIA COSTA).

Dedicarei algumas mensagens a esse artigo, que reproduzo AQUI.

2011-08-16

A imagem como meio de prova (1)


Os recentes motins em várias cidades inglesas suscitam questões interessantes sobre a possibilidade de utilizar, em processo penal, imagens de pessoas, captadas em locais públicos, sem o seu consentimento. Dada a profusão de dispositivos de captação de imagem nas mãos de autoridades públicas e de particulares, trata-se de questão que surge cada vez com maior frequência.

Por aquilo que se tem visto, nesta e noutras ocasiões, os ingleses não fazem cerimónia em utilizar tais imagens. Nomeadamente, não encontram obstáculo à utilização, quer de imagens captadas pelas inúmeras câmaras de vigilância instaladas pelas autoridades, quer daquelas que o foram por particulares; e utilizam essas mesmas imagens, quer para a identificação dos autores dos actos de vandalismo por parte da polícia, quer como meio de prova em tribunal.

Em Portugal, a questão da admissibilidade da imagem – fotografia ou filme – como meio de prova em processo penal suscita inúmeras perplexidades, à semelhança, aliás, de várias outras matérias do nosso direito probatório. O emaranhado normativo é de tal forma complexo que o seu estudo se transformou quase numa ciência oculta.

Proponho-me ir trazendo para aqui alguns elementos que me pareçam úteis para reflectir sobre esta incontornável problemática. 


2011-08-01

Avaliação da eficácia das leis – 2


Apesar do cepticismo que aqui expressei, deixo uma sugestão: comecem por avaliar o actual Código Penal.
O critério decisivo para avaliar se uma lei é boa ou má, eficaz ou ineficaz, só pode ser o da sua adequação à realidade social que visa regular. Tratando-se de uma lei penal, as vertentes fundamentais por que passa aquele juízo são duas: manutenção de níveis de criminalidade baixos com respeito pelos direitos fundamentais. O equilíbrio entre estas duas vertentes constitui o ideal de qualquer sistema penal de um Estado de Direito Democrático. De forma muito simplificada, descurar a primeira é cair no laxismo; descurar a segunda equivale a enveredar pelo securitarismo.
A esta luz, um bom ponto de partida para a avaliação do actual Código Penal seria comparar os níveis de criminalidade de 1982 com os dos anos ulteriores, até à actualidade.
Depois, seria só avaliar coisas básicas como, por exemplo:
- O efeito inibidor da reincidência (em sentido amplo) de cada uma das diversas espécies de penas que aquele código estabelece (sobre este assunto, já aqui escrevi);
- Se o regime cada vez mais generoso (para o condenado, claro está) da liberdade condicional produz algum efeito ressocializador ou, em vez disso, serve apenas para ir aliviando a pressão sobre um sistema prisional com um permanente problema de sobrelotação;
- Se o também generoso (mais uma vez para o condenado) regime do cúmulo jurídico de penas produz o efeito ressocializador que os seus defensores lhe atribuem, ou não passa, afinal, de mais um expediente para reduzir o tempo de prisão;
- Enfim, se a crença aparentemente ilimitada na possibilidade de ressocialização do delinquente (entenda-se, de todos os delinquentes, sem excepção), que está na base de opções legislativas em matérias fundamentais, tem correspondência na realidade da vida ou, ao contrário, não passa de uma falácia em que alguns ingenuamente acreditam e outros fingem acreditar com objectivos bem prosaicos mas politicamente difíceis de assumir.
Os resultados de uma tal avaliação, se esta fosse digna desse nome, seriam certamente interessantes. Lá teriam de ir mais algumas bibliotecas para o lixo, provavelmente.