2013-11-09

Reforma da Organização Judiciária: A caminho do abismo, rapidamente e em força!


Ando há vários dias a tentar arranjar paciência para escrever algumas linhas sobre o Anteprojecto de Decreto-Lei relativo ao “Regime de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais”, que o Ministério da Justiça divulgou para cumprimento da enfadonha (do seu ponto de vista), frustrante (do ponto de vista daqueles a quem, mais uma vez, é solicitado parecer que, como os anteriores, será certamente ignorado) e inútil (pois, objectivamente, não vai servir para nada) formalidade da audição das organizações representativas dos profissionais da área da Justiça.

Escrever sobre o Anteprojecto é tudo menos aliciante. É que a coisa não tem mesmo ponta por onde se lhe pegue. Após tantas versões, negociações, discursos, promessas e, sobretudo, tanto tempo desperdiçado, sai um Anteprojecto que é uma aberração de bradar aos céus, aliás na linha da lei que se destina a regulamentar, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que o atabalhoado Anteprojecto identifica, logo na 1.ª linha do seu preâmbulo, como “Lei n.º 62/2013 de 26 agosto”. É, em síntese, um péssimo regulamento de uma péssima lei.

O erro de base do Anteprojecto é fácil de identificar: Insiste num quadro de juízes baseado em VRP (valores de referência processual) sem qualquer credibilidade, calculados de forma inacreditavelmente leviana e primária, como, entre outros, um parecer do Conselho Superior da Magistratura já demonstrou detalhadamente, parecer esse que quem elaborou o dito Anteprojecto pura e simplesmente ignorou, insistindo nos mesmíssimos erros que se verificam desde o primeiro “ensaio para reorganização da estrutura judiciária”, que em devido tempo critiquei AQUI, AQUI e AQUI.

Mas pode ser que, afinal, tudo fique em águas de bacalhau, mais não seja porque, além de não ter pés nem cabeça, a “reforma” (que, na realidade, é a liquidação) do sistema judiciário iria implicar uma significativa despesa pública (chamar-lhe investimento, só se for a título de brincadeira de mau gosto) e, em 2014, o orçamento do Ministério da Justiça sofrerá um corte brutal. É aqui que reside a minha derradeira esperança: a dura realidade que, espero, impeça a concretização de tamanha loucura.

2013-10-06

A geometria variável dos direitos adquiridos


Nos últimos 2 anos e picos, Portugal descobriu, com surpresa, que não há direitos adquiridos, mas apenas, na melhor das hipóteses, direitos cujo conteúdo e extensão podem ser livre e unilateralmente (subentenda-se, sem necessidade, sequer, de intervenção de um terceiro imparcial) alterados pelo sujeito passivo da relação jurídica sempre que este último entenda que tem boas razões para isso.

Creio que este tipo de “narrativa” põe a generalidade dos juristas de cabelos em pé, pois redunda na negação da própria ideia de direito subjectivo. Mas o tempo que vivemos não é um tempo de juristas e, por isso, para quem manda, é assim e acabou-se.

Porém, mesmo para os apóstolos desta doutrina e desta prática, será sempre assim? Apesar de errados, serão eles, ao menos, coerentes no seu erro?

Claro que não são. Para eles, há direitos mais adquiridos que outros. Por outras palavras, a noção de direito adquirido possui geometria variável.

E variável em função de quê? Da necessidade de salvaguardar mínimos de subsistência para os mais pobres ou as legítimas expectativas de quem fez descontos uma vida inteira para ter a sua pensão de reforma ou de quem trabalha e, de um momento para o outro, vê o seu vencimento diminuir arbitrariamente?

Nada disso. É precisamente ao contrário. Os direitos que, para a doutrina de que venho falando, mais que adquiridos, são sagrados, situam-se no polo oposto, económica e socialmente falando.

E porquê? Cá tenho a minha convicção sobre qual seja a razão. Parece-me até bastante óbvia. Mas não vou meter-me por aí. Interessa-me apenas uma abordagem jurídica desta questão e aquela razão, de jurídica, nada tem, muito pelo contrário.

Juridicamente, a referida geometria variável dos direitos adquiridos constitui uma insustentável aberração. Não sou só eu quem o diz. Escreveu sobre o tema, há alguns meses, CELESTE CARDONA, neste artigo.

Não concordo com muito daquilo que nele se diz. Nomeadamente, onde a sua autora vê compreensão e aceitação dos portugueses relativamente à redução dos seus salários ou pensões, eu tenho visto (e partilhado) exactamente o contrário, ou seja, incompreensão e revolta. Certamente porque os portugueses com quem eu me relaciono não são os mesmos com quem a autora do artigo se relaciona.

Todavia, acompanho a questão que é colocada no final e constitui o tema central do artigo. Observa CELESTE CARDONA que não compreende que a regra que legitimou a ruptura – que, de forma optimista, qualifica como temporária – dos contratos celebrados com os cidadãos não seja também apta a legitimar o mesmo procedimento no domínio dos contratos das PPP, na medida em que a rentabilidade financeira assegurada aos mesmos no tempo em que foram celebrados foi fundada em circunstâncias que, de forma evidente, sofreram alteração superveniente.

Não compreende ela, nem compreendo eu.


2013-09-22

Prestação de contas (2)


Dando sequência a esta mensagem, aqui fica mais alguma jurisprudência que me parece útil para uma primeira abordagem ao processo especial de prestação de contas.

Fundamento da obrigação de prestação de contas:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.02.2005 (processo n.º 04B4671):

A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação de quem administra bens alheios, designadamente o cônjuge, cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.
Embora a legitimidade para exigir a prestação de contas apenas surja com a extinção do vínculo conjugal, uma vez que ela ocorra, o cônjuge não administrador dos bens do casal pode exigir prestação de contas ao cônjuge administrador daqueles bens desde a data da propositura da acção, designadamente daquela em foi decretado o divórcio.

Âmbito da prestação de contas:

Acórdão da Relação do Porto de 16.05.2013 (processo n.º 2877/09.5TBPRD.P3):

Na acção de prestação de contas, as contas a apresentar compreendem apenas as receitas e despesas relativas à relação jurídica que motivou o pedido de prestação de contas, não sendo possível relacionar despesas oriundas de outra relação jurídica nem operar a sua compensação com as verbas da receita.

Fases do processo:

Acórdão da Relação do Porto de 11.05.2004 (processo n.º 0020590):

I - No processo especial de prestação de contas, numa primeira fase apenas e só se decide da obrigação ou não de prestá-las.
II - Passando à 2ª fase e prestadas as contas pelo réu, a falta de impugnação das mesmas pelo autor não tem o efeito cominatório da confissão.
III - Não se aplica aqui o disposto no artigo 490.º do Código de Processo Civil.

Forma de prestação das contas:

Acórdão da Relação do Porto de 28.05.2007 (processo n.º 0752489):

I - Pelo mero facto de o autor não ter apresentado as contas sob a forma de escrituração aconselhada pela lei, ou seja, a conta-corrente, tendo-as apresentado sob uma forma de escrituração contabilística, não é motivo para a rejeição das mesmas.
II - Deve o juiz, em tal caso, verificar se é possível avaliar o saldo final da gestão, colhendo as informações que tiver por conveniente, ou mesmo encarregar pessoa idónea para dar parecer sobre as contas como foram apresentadas.

Acórdão da Relação do Porto de 31.01.2008 (processo n.º 0735715):

I – Nos termos do disposto no art. 1016.º, n.º2, do Código de Processo Civil, a não apresentação das contas sob a forma de conta-corrente pode determinar a sua rejeição, mas não determina obrigatoriamente essa rejeição, uma vez que esta não é imposta pela lei como consequência inevitável e inexorável.
II – Ainda que não apresentadas sob a forma de conta-corrente, as contas deverão ser apreciadas segundo o prudente arbítrio do julgador, apreciação jurisdicional necessariamente “não arbitrária”, efectuada segundo critérios de ponderação e razoabilidade, que oriente os critérios de conveniência e de oportunidade que estão na sua base sempre em função da realização dos fins do processo (a justa composição do litígio com respeito pelos direitos e garantias processuais das partes).

Acórdão da Relação do Porto de 12.04.2010 (processo n.º 1057/09.4TBVFR-A.P1):

I- Na acção de prestação de contas, a inobservância da forma contabilística prevista no art. 1016.º do Código de Processo Civil (conta-corrente) não determina directa e necessariamente a rejeição das contas.
II- O juiz, dentro do seu prudente arbítrio, deve avaliar da correcta apresentação das contas, ponderando os fins do processo e a justa composição do litígio, sem prejuízo do direito de defesa das partes.
III- A falta de documentação em relação a algumas das despesas indicadas na conta corrente e a indicação do mesmo valor das despesas ao longo de 20 anos, não constituem fundamentos para rejeitar as contas apresentadas na forma de conta corrente.

2013-08-24

Tribunais e Democracia


Era bom que aqueles que por aí andam a clamar contra aquilo que designam por "judicialização da política" lessem atentamente este interessantíssimo artigo de Boaventura Sousa Santos - LINK.

2013-08-23

Remunerações, suplementos e outras componentes remuneratórias


Foi hoje publicado no Diário da República um diploma legal que tem de ficar registado aqui no Monte, para memória futura.
É a Lei n.º 59/2013, de 23 de Agosto.
Segue a transcrição das normas mais significativas, por ordem lógica. A parte mais importante vai devidamente realçada.

Lei n.º 59/2013
de 23 de Agosto

Estabelece um regime de prestação de informação sobre remunerações, suplementos e outras componentes remuneratórias dos trabalhadores de entidades públicas, com vista à sua análise, caracterização e determinação de medidas adequadas de política remuneratória.

A Assembleia da República decreta, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:

Artigo 1.º
Objeto

A presente lei determina a prestação de informação sobre remunerações, suplementos e outras componentes remuneratórias dos trabalhadores de entidades públicas, com vista à sua análise, caracterização e determinação de medidas adequadas de política remuneratória (…).

Artigo 3.º
Prestação da informação

1 — No prazo máximo de 30 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, as entidades públicas referidas no artigo anterior, doravante designadas por entidades, devem preencher um formulário eletrónico, disponibilizado no sítio na Internet da Direção -Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), facultando toda a informação e documentação que permita efetuar uma caracterização detalhada das remunerações, suplementos e outras componentes remuneratórias dos seus trabalhadores, nos termos definidos naquele formulário.

Artigo 4.º
Análise da informação

1 — Concluída a fase de prestação da informação a que se refere o artigo anterior, o membro do Governo responsável pelas áreas das finanças e da Administração Pública promove a análise, o tratamento e a compilação da informação constante dos formulários, bem como a apresentação de relatórios, com a caracterização geral dos sistemas remuneratórios identificados, e de propostas de revisão de suplementos remuneratórios, tendo em consideração, nomeadamente, o disposto no artigo 112.º da LVCR.
2 — O relatório a que se refere o número anterior, relativo às entidades a que se referem os n.os 1 e 2 do artigo 2.º, é disponibilizado no sítio na Internet da DGAEP, no prazo máximo de 45 dias após o termo do prazo previsto no n.º 1 do artigo anterior.
3 — O relatório a que se refere o n.º 1, relativo às entidades a que se refere o n.º 3 do artigo 2.º, é disponibilizado no sítio na Internet da Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), no prazo máximo de 45 dias após o termo do prazo previsto no n.º 1 do artigo anterior.

Artigo 8.º
Disposições finais

1 — No prazo de 90 dias a contar da data do termo do prazo a que se refere o n.º 2 do artigo 4.º, o Governo apresenta uma proposta de lei que proceda à revisão dos suplementos remuneratórios aplicáveis nas entidades a que se referem os n.os 1 e 2 do artigo 2.º, designadamente nos termos do artigo 112.º da LVCR.
2 — No prazo previsto no número anterior, o Governo promove a adoção das medidas adequadas de política retributiva relativa às entidades a que se refere o n.º 3 do artigo 2.º, tendo em conta, designadamente, o imperativo de cumprimento dos compromissos internacionais do Estado Português em termos de equilíbrio das contas públicas.
3 — Até à entrada em vigor da lei e das medidas a que se referem os n.os 1 e 2, as entidades ficam impedidas de criar ou alterar remunerações, suplementos remuneratórios ou outras componentes remuneratórias, sem prejuízo da possibilidade de continuação dos processos de revisão já iniciados em articulação com o Ministério das Finanças.

Artigo 2.º
Âmbito de aplicação objetivo

1 — O disposto na presente lei aplica-se aos órgãos e serviços abrangidos pelo âmbito de aplicação objetivo estabelecido no artigo 3.º da LVCR, COM EXCEÇÃO DOS ÓRGÃOS DE SOBERANIA DE CARÁTER ELETIVO, bem como aos gabinetes de apoio, quer dos membros do Governo, quer dos titulares dos órgãos referidos nos n.os 2 e 3 daquela disposição que não sejam órgãos de soberania de caráter eletivo.

2013-08-19

As incompatibilidades eleitorais e a judicialização da política


A propósito dos problemas gerados pela deficiente formulação da lei das incompatibilidades eleitorais, aqui fica o registo de mais um artigo de José Mouraz Lopes, Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, sobre o tema da judicialização da política – LINK.

Sobre o mesmo tema:

2013-08-15

A ignorância é atrevida (e previsível)


Foi notícia de jornal, por estes dias, que juízes jubilados e diplomatas não seriam abrangidos pelos cortes de 10% nas pensões do Estado. Logo veio a conversa estafada dos privilégios dos juízes, vinda dos do costume.

Bem sei que o tempo dos jornalistas, no activo ou noutros voos, não convida à ponderação daquilo que se diz ou escreve. Em terminologia futebolística, é rematar para onde se está virado.

Acerca do não corte das pensões dos juízes jubilados, foi uma pena que os ditos jornalistas não tenham feito o trabalho de casa. Nem sequer era complicado, como se vê através da leitura deste esclarecimento do Ministério das Finanças

A razão do não corte das pensões dos juízes jubilados resume-se assim: Não foram cortadas agora porque, ao contrário das pensões agora cortadas, já o tinham sido anteriormente. O que não constitui privilégio algum, muito pelo contrário.

2013-08-10

Os números é que contam


Pelo meio de tanto disparate que por aí aparece publicado sobre o estado da Justiça, a crise da Justiça, a reforma da Justiça, um novo paradigma para a Justiça e mais não sei o quê da Justiça, provindo de políticos, comentadores e opinadores que não fazem a mínima ideia do que falam, aparece alguém que, numa frase, resume um dos verdadeiros problemas da nossa Justiça.

Foi Joana Salinas, desembargadora no Tribunal da Relação do Porto, em entrevista ao Correio da Manhã: Atualmente os juízes e procuradores estão sobrecarregados de processos e o objetivo de quem nos avalia não é ver se fizemos bem ou mal, o que contam são os números.” (LINK)

Aqui fica o registo.

2013-08-06

Não é judicialização da política, é mesmo incompetência do legislador…


… como AQUI explica o desembargador Sousa Pinto, vice-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.

2013-07-16

Prestação de contas (1)


Uma das funções de um blogue jurídico deve ser a de proporcionar, a um leigo ou a um iniciante nas lides do Direito, informação básica sobre temas jurídicos. A partir daí, poderá aquele que procura informação prosseguir a sua pesquisa a um nível mais profundo, se o desejar.

Procuro proporcionar a referida informação básica neste blogue, também como forma de retribuir a informação preciosa que obtenho através da consulta de blogues pertencentes a detentores de outros saberes quando, ao procurar colmatar a minha ignorância, aí sou conduzido pelos motores de busca. Estamos, porventura, no domínio mais nobre da internet, o da troca de ideias, saberes, experiências.

Vem toda esta conversa a propósito da acção de prestação de contas, processo especial que irá manter-se no “novo” Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que entrará em vigor no próximo dia 1 de Setembro. Escrevi “novo” entre aspas porque chamar tal coisa àquele Código de Processo Civil só poderá ser a título de alcunha. Na substância, não passa de mais uma alteração do código, que apenas tem a particularidade, aliás escusada e incómoda do ponto de vista do utilizador, de alterar também a numeração dos artigos. Um eloquente exemplo daquilo que acabo de afirmar é precisamente o regime do processo especial de prestação de contas. Basta comparar os actuais artigos 1014.º a 1019.º com os futuros artigos 941.º a 947.º.

A acção de prestação de contas possui uma configuração bastante singular, que não é facilmente apreensível numa primeira leitura daqueles preceitos legais. Por isso, deixo aqui algumas referências jurisprudenciais que me parecem úteis para se adquirir uma primeira noção do que é aquele processo especial.

Tais referências não coincidem exactamente com os sumários dos acórdãos seleccionados. Ora aproveitei excertos dos textos destes últimos, ora seleccionei as partes dos sumários que me pareceram mais interessantes, tendo sempre em vista a referida finalidade.

Eis os 3 primeiros acórdãos que seleccionei, segundo a ordem que me parece mais lógica:

Acórdão da Relação de Lisboa de 16.11.1995 (Colectânea de Jurisprudência, 1995, tomo 5, página 108):
A acção de prestação de contas não é uma acção declarativa de simples apreciação ou constitutiva, mas sim uma acção declarativa de condenação, em que se visa apurar quem deve e aquilo que deve. A prestação de contas tem em mira a definição de um quantitativo como saldo.
O saldo proveniente de determinada gestão tem de ser apurado em acção de prestação de contas, na qual se condenará o devedor a pagar a quantia que resultou do julgamento das contas.
A sentença que fixar o saldo tem, pois, natureza condenatória e funciona como título executivo, podendo, imediatamente e por apenso, instaurar-se execução para cobrança do saldo encontrado.
O pedido de prestação de contas, envolvendo necessariamente um pedido de condenação no pagamento de um saldo positivo, não abarca o de condenação também no pagamento de juros incidentes sobre esse saldo.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.12.1993 (Colectânea de Jurisprudência-STJ, 1993, tomo 3, página 166):
Apesar de o requerente em acção de prestação de contas pedir apenas, na petição, a prestação de contas, deve ser proferida decisão a condenar o requerido no saldo que apresentar a favor do autor, já que essa decisão não é, por natureza, de simples apreciação, mas necessariamente de condenação.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.05.1995 (Colectânea de Jurisprudência-STJ, 1995, tomo 2, página 106):
A finalidade do processo de prestação de contas é o apuramento do saldo das contas.
Para tal apuramento, se necessário, deve o julgador recorrer ao prudente arbítrio e à sua experiência e isto quer o autor conteste as contas, quer não.
O que não deixa espaço a que não seja possível fixar o quantitativo do débito em termos exactos.
Daí que não seja possível relegar-se o montante do saldo para execução de sentença.

2013-06-08

O tribunal e a amiga


O Direito Contra-Ordenacional português, substantivo e processual, põe à prova a paciência de qualquer jurista que nele pretenda encontrar alguma coerência interna, que meta ombros à tarefa de nele procurar algo que possa assemelhar-se a um sistema, ainda que incipiente.
A relativa juventude deste ramo do Direito em Portugal não constitui justificação para o estado, não digo caótico, mas a caminhar para lá em passo acelerado, a que o mesmo chegou. A fonte do problema não é tanto a escassez de elaboração doutrinária (embora, indirectamente, também passe por aí), mas a profusão de legislação com normas pouco pensadas e mal formuladas, com lacunas indesejáveis e, pior que tudo, sem qualquer preocupação de harmonização sistemática.
Em si mesmo, o Regime Geral das Contra-Ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10) contém um sem-número de exemplos de tudo aquilo que acabo de referir. Quando cotejamos as suas normas com as suas homólogas constantes das numerosas leis-quadro sectoriais que à sua roda têm nascido como cogumelos, nem se fala.
Não é, assim, de estranhar que, a cada passo, nos deparemos com dificuldades e, consequentemente, com doutrina (pouca) e jurisprudência para todos os gostos.
Uma questão fundamental – nomeadamente porque pode ter implicações processuais importantes – que tem sido pouco abordada entre nós é a do estatuto da autoridade administrativa na fase judicial do processo contra-ordenacional.
Uma das teorias propostas é a de que a autoridade administrativa é, naquela fase, uma “amiga do tribunal” (amicus curiae ou, em versão britânica, friend of the court).
Não tenho qualquer preconceito em relação às autoridades administrativas em processo contra-ordenacional. São aquilo que são, como tudo na vida. Na sua maioria, são dependentes (em medida variável) do poder executivo estadual, logo acabam por ser aquilo que este determina que elas sejam em cada momento. Muitas delas são autarquias locais, logo também actuando segundo critérios que, de jurídico, podem ter pouco.
Tenho é as minhas dúvidas sobre se os tribunais devem ter amigas destas. Tendo como certo que os tribunais devem evitar más companhias e, pior ainda, amigas da onça, parece-me que aquela "tese da amizade" tem de ser posta à prova. Considerando, por um lado, o quadro normativo relevante e, por outro, aquilo que é, na realidade, a actuação das autoridades administrativas em Portugal, fará algum sentido a “tese da amizade”, em qualquer das suas formulações?
Vou repensar o assunto e trazer aqui para o meu Monte aquilo que, com interesse, conseguir (re)encontrar.


2013-03-28

Interesses corporativos (2)


PAULO MORAIS:

"A legislação mais importante, a de maior relevância económica, já não é elaborada no Parlamento, como deveria, mas sim nas grandes sociedades de advogados.

Estas têm sido contratadas pelos sucessivos governos para produzir leis nas áreas do urbanismo e do ordenamento do território, da construção, ou até de toda a contratação.

Por norma, estas poderosas firmas produzem maus diplomas, que sempre padecem de três falhas. Têm inúmeras regras, para que ninguém as perceba, muitas excepções para beneficiar os amigos; e, ainda por cima, atribuem um enorme poder discricionário a quem as aplica, o que evidentemente convida à corrupção.

De seguida, estas sociedades ainda emitem pareceres para as mais diversas entidades, a explicar as omissões de que eles próprios são os responsáveis. E voltam a ganhar milhões.

E, finalmente, ainda podem ir aos grupos privados vender os métodos de ultrapassar a Lei, através dos alçapões que eles próprios introduziram na legislação.

Ganham assim em três carrinhos. Mas o povo, esse, perde em toda a linha."

Ao ler este artigo de opinião, que AQUI guardei, lembrei-me das graves acusações (que ficaram sem resposta, tanto quanto me apercebi) que MENDES BOTAdeputado do PSD e presidente da comissão de ética da Assembleia da República, fez há tempos, acusações essas que AQUI transcrevi e agora vou, de novo, reproduzir: 

- Mais de metade dos deputados acumulam funções no sector privado, como consultores ou advogados de grandes escritórios;

- Há situações de conflito de interesses;

- Os referidos deputados transformaram o Parlamento num palco de jogos privados;

- Os deputados advogados "assaltaram" os lugares-chave da Assembleia da República.

Tudo isto é sabido e não é de hoje. Basta visitar os sites das grandes sociedades de advogados. É esta gente que ainda tem o descaramento de acusar outros de prosseguirem interesses corporativos. Ao menos, tenham vergonha.

2013-03-26

Ainda sobre a alegada "judicialização da política"


O artigo de opinião de José Mouraz Lopes ontem publicado (LINK) sobre a alegada "judicialização da política" põe o dedo na ferida. As seguintes frases são lapidares (o realce é da minha autoria):

"Os "acusadores" são, sobretudo, os que exercem poderes de facto do alto de uma aparente intocabilidade mediática e que, com a insinuação de que os tribunais estão a ir para caminhos que não são os seus, pretendem apenas inibir a actuação judicial sobre aqueles que sempre se viram como intocáveis."

"Diz-se, por isso, em regra, "à justiça o que é da justiça, à política o que é da política"! O discurso da judicialização da política é, assim, um discurso manipulado e que serve apenas aqueles que deles se queixam, porque por eles são ou podem ser afectados."

Pois, era tão bom, para essa gente, um espaço livre do Direito onde pudessem fazer tudo aquilo que quisessem (entenda-se, ainda mais que aquilo que já fazem) sem limites jurídicos e livres do incómodo que é a actuação do sistema judicial...

Era bom, mas não pode ser, ao menos enquanto houver Estado de Direito.

Porém, como não pode ser, toca a agitar o papão da "judicialização da política", que, como é bom de ver, não passa de mais um chavão sem qualquer sentido e, por isso, facilmente se desmonta, como ontem fez José Mouraz Lopes.

A essa tarefa também se dedicou, há alguns meses, João Lemos Esteves, em artigo de opinião que guardei no meu Casão (LINK). O resultado foi o esperado: a alegada "judicialização da política" não passa de um rematado disparate que se desfaz através de uma abordagem jurídica simples, em meia dúzia de parágrafos. Não passa, no fundo, de um castelo de cartas que se desmorona com um simples sopro. Realço a parte final desse artigo:

"(...) a estruturação do sistema fiscal português não é uma questão apenas política: comporta uma dimensão jurídica bastante relevante.

Posto isto, cumpre assinalar que, de facto, nos parece que o Governo terá muitas dificuldades para nos convencer que as medidas de redução dos escalões do IRS não violam o princípio segundo o qual os impostos sobre o rendimento têm de ser progressivos e atender aos rendimentos auferidos pelos portugueses. Ora, quer o princípio da progressividade, quer o princípio da capacidade contributiva são princípios constitucionais e, logo, jurídicos: o Tribunal Constitucional poderá fiscalizar o seu respeito pelo legislador. O que os Tribunais - nunca! - poderão fazer é formular juízos de mérito: esta medida não deveria ser adoptada porque há outra melhor. Neste último caso, e só neste, estaríamos perante uma violação do princípio da separação de poderes."

Óbvio!

Entretanto, também guardei, num canto esconso do meu Casão, três exemplos da dificuldade que algumas pessoas (respectivamente, um economista, um banqueiro e um jornalista) sentem em perceber uma coisa tão simples:

Deliberação do Tribunal Constitucional sobre os subsídios vai penalizar Portugal aos olhos internacionais - LINK

Veto do Tribunal Constitucional é perigosíssimo para o futuro de Portugal - LINK

É de doidos os juízes terem tanto poder - LINK

Moral da história: Ninguém caia no erro de pensar que o Estado de Direito Democrático é um dado adquirido. A cada passo nos surge gente aparentemente insuspeita que, afinal, convive mal com esse modelo, parecendo preferir outros, de pendor autoritário.


2013-03-25

A judicialização da política


Gostava de ter escrito isto:

Artigo de opinião de José Mouraz LopesPresidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, publicado hoje, 25 de Março, no jornal Público:

"É recorrente a acusação pública sobre o fenómeno da judicialização da política onde, em regra, estão no banco dos réus as magistraturas. Falamos, naturalmente, de questões tão diversificadas como a investigação criminal que envolve titulares de cargos políticos, a legítima iniciativa de cidadãos que nos tribunais administrativos contestam por via cautelar decisões políticas ou mesmo a intervenção do Tribunal Constitucional no exercício dos seus poderes de fiscalização da constitucionalidade, sobretudo na dimensão preventiva de leis controversas à luz do Estado de direito.

Os "acusadores" são, sobretudo, os que exercem poderes de facto do alto de uma aparente intocabilidade mediática e que, com a insinuação de que os tribunais estão a ir para caminhos que não são os seus, pretendem apenas inibir a actuação judicial sobre aqueles que sempre se viram como intocáveis.

Diz-se, por isso, em regra, "à justiça o que é da justiça, à política o que é da política"! O discurso da judicialização da política é, assim, um discurso manipulado e que serve apenas aqueles que deles se queixam, porque por eles são ou podem ser afectados.

Para o cidadão, em regra, sobra sempre o juízo crítico sobre os tribunais e o consequente desgaste da imagem pública da justiça. O episódio da lei das incompatibilidades eleitorais é, claramente, mais uma pedra na construção do desgaste sobre a actuação dos tribunais nos sistemas democráticos.

Os autarcas "ex-presidentes" e futuros candidatos a municípios diversos daqueles em que exerceram já funções e os seus adversários políticos, certamente que verão nas decisões dos tribunais relativas à sua elegibilidade ou inelegibilidade eleitoral um excelente motivo para verberar a "incompetência", a "falta de cuidado" ou, quiçá, a "juventude" dos juízes que decidiram da exclusão ou da não exclusão de determinados candidatos das listas eleitorais.

Deixando, propositadamente, aos tribunais, o ónus de interpretar uma lei que o legislador não quis clarificar e que a doutrina também não reflectiu devidamente, remete-se para a justiça uma decisão que terá sempre um reflexo político-partidário imediato. Os juízes, aplicando a lei, decidirão sempre de forma livre e independente, ainda que de forma diversa, segundo a sua consciência.

Num tempo onde a justiça deve ser objecto de outras preocupações, os tribunais não podem ser empurrados para um jogo partidário que não lhes pertence. Apenas cumprirão as leis e a Constituição".

2013-03-03

Encerramento do Tribunal de Mértola


Com permissão da sua autora, a Advogada e minha amiga Maria José Henrique, transcrevo uma mensagem por ela hoje deixada na sua página do Facebook sobre o projectado encerramento de um dos tribunais que conheço com melhores condições de trabalho, o Tribunal de Mértola. Tomei a liberdade de realçar algumas partes.

As suas palavras correspondem também àquilo que eu sinto relativamente a este problema.

"Caros amigos e amigas:

Fez ontem uma semana que alterei as minhas fotos de perfil e de capa, agradeço os muitos "gostos" e os comentários elogiosos. Obrigada a todos.

Como muitos suspeitarão esta alteração teve uma razão de ser, como todos, certamente, repararam estou, totalmente vestida de negro. Estas fotos foram tiradas no Tribunal Judicial de Mértola, no "meu" Tribunal, no Tribunal de muitos de vós, meus amigos. É um Tribunal que foi inaugurado no ano 2000, oferece todas as condições de utilização a funcionários, magistrados, advogados, arguidos, testemunhas, enfim a todos os que a ele tiverem que recorrer. Digo isto, porque muitos não saberão que muitas são as capitais de distrito que não possuem umas instalações como estas. É propriedade do Ministério da Justiça, o que significa que não há lugar ao pagamento de renda. Foi construido num terreno cedido pelo municipio que, diga-se, também ofereceu o projecto. A Comarca de Mértola corresponde exactamente ao território do concelho, ou seja, 1.240 Km2. Somos o segundo maior concelho do país, em pleno interior alentejano, com muitas povoações e muito dispersas. Somos um concelho que, como muitos outros, padece da desertificação, realidade que, inevitavelmente se agravará com o encerramento de serviços. Em razão de sermos um concelho enorme e pobre temos más vias de comunição, os transportes públicos são uma miragem. A população é extremamente envelhecida e de parcos rendimentos. Temos um número de processos acima do estipulado pelo próprio ministério. Contudo, e apesar de tudo isto a Srª Ministra da Justiça insiste na ideia de que o tribunal de Mértola deve deixar de ser um Tribunal e passar a ser uma "Secção de próximidade" que é como quem diz um gabinete de atendimento. Ignorando a realidade que é a que, resumidamente, aqui descrevo, Esquecendo-se que se se concretizar a sua intenção de nos agregar a Beja, há pessoas no nosso concelho que para lá se deslocarem têm que fazer cerca de 200 Km. Se não tiverem transporte próprio, terão que ir de véspera para Beja porque não há transportes públicos

O que tem isto a ver com as minhas fotos? Tudo. Desde que, há alguns meses, foi tornada pública a nova proposta de reorganização do mapa judiciário, só faço julgamentos, no nosso tribunal, totalmente vestida de negro. Para além do meu traje profissional ser negro, as minhas vestes também o são. Reflectem a cor da minha alma e a minha progunda tristeza. É um protesto simbólico. Estas fotos foram tiradas antes de mais um julgamento e tal como em todos os que lá farei, até que a Srª Ministra retroceda, estava totalmente vestida de negro. E assim como só o deixarei de fazer se esta ideia absurda não vingar, também só a partir do dia em que for tomada uma decisão final estas fotos serão substiuidas. Como já aqui vos transmiti noutra ocasião, já fiz o que estava ao meu alcance enquanto cidadã, advogada, deputada municipal para tentar evitar tamanha injustiça. Tudo o que ainda for possivel fazer, farei. Mas não se esqueçam, meus amigos, este é um problema de todos os mertolenses, por isso temos que estar todos juntos para o resolver, a colaboração de todos é muito importante. Temos que nos unir todos em torno desta causa. Porque se ficarmos quietos tiram-nos um dos direitos mais preciosos que a democracia nos trouxe, que é o direito à justiça. Sim, porque encerrar o Tribunal de Mértola é pura denegação da justiça para a larga maioria da população. Não deixem que isso aconteça."


Boa sorte, Maria José!



2013-02-10

Dano morte (6)


Ainda a propósito do dano morte, deixo uma última observação, esta sobre o argumento da “cautela”, da “prudência” ou da “moderação” na fixação da indemnização, frequentemente invocado em sede de fixação da indemnização por danos não patrimoniais.

Historicamente, este argumento apenas constituiu um perverso travão à atribuição de indemnizações justas aos lesados. Basta revisitar algumas decisões judiciais de há 30 anos atrás, daquelas que fixavam indemnizações por danos não patrimoniais em valores que hoje, mesmo com a correcção monetária, nos parecem ridículos. Lá encontramos, de vez em quando, o amparo na tal “cautela”, “prudência”, “moderação".

Porém, neste contexto, os termos “cautela”, “prudência” ou “moderação” são enganadores e, logo, inapropriados. Se uma indemnização é excessivamente modesta, não se trata de cautela, prudência, moderação ou ideia aparentada, mas, pura e simplesmente, de beneficiar o lesante, ou quem responde no lugar deste, em prejuízo do lesado. É disto que se trata no domínio da responsabilidade civil. Funciona aqui a ideia dos vasos comunicantes: dar menos a uma parte é enriquecer injustamente a outra. Nesta equação, a tradição tem sido beneficiar o infractor em detrimento da vítima, por razões que não consigo descortinar. Há que mudar rapidamente e sem hesitações, é a minha opinião.

2013-02-03

Dano morte (5)


Vamos lá desenvolver um pouco mais a ideia, AQUI DEIXADA, de que um ponto de referência útil para a fixação da indemnização pelo dano morte é o montante das coimas estabelecidas pelo Direito Contra-Ordenacional. Mais não seja, poderá este ponto de referência ajudar a quebrar as barreiras psicológicas que parecem subsistir quando se trata de quantificar a indemnização pelo dano morte, bem como, aliás, por outros danos não patrimoniais.

Atentemos, por exemplo, no disposto no n.º 4 do artigo 22.º da Lei-Quadro das Contra-Ordenações Ambientais, aprovada pela Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 89/2009, de 31 de Agosto:

4 – Às contra-ordenações muito graves correspondem as seguintes coimas:

a) Se praticadas por pessoas singulares, de € 20.000 a € 30.000 em caso de negligência e de € 30.000 a € 37.500 em caso de dolo;

b) Se praticadas por pessoas colectivas, de € 38.500 a € 70.000 em caso de negligência e de € 200.000 a € 2.500.000 em caso de dolo.

Sublinho: pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave, uma pessoa colectiva pode ser condenada numa coima cujo máximo é de € 2.500.000, ou seja, mais de 31 vezes o valor mais “generoso” que a jurisprudência vem atribuindo pelo dano morte.

Ao percorrer a cada vez mais vasta legislação que estabelece coimas, os exemplos de montantes elevados, normalmente da ordem, pelo menos, das dezenas de milhares de euros, multiplicam-se. Veja-se, desde logo, a título de exemplo, o artigo 17.º da Lei-Quadro das Contra-Ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).

Analisemos, agora, o problema do ponto de vista do agente/responsável. Imaginemos uma sociedade comercial que desenvolve uma actividade sujeita a normas cuja infracção constitua contra-ordenação e que, concomitantemente, envolva riscos para a vida de pessoas, sejam seus trabalhadores ou terceiros.

Fará, à partida, algum sentido que a indemnização a pagar pela morte de uma pessoa se traduza numa quantia insignificante em relação aos montantes das coimas a que a entidade em causa pode estar sujeita? Do ponto de vista preventivo (finalidade que não é estranha também à responsabilidade civil), fará sentido tal disparidade? Fará sentido que alguém (entenda-se, um gestor da nova vaga, para quem o bem e o mal, o melhor e o pior, sejam mera função da respectiva expressão pecuniária) pense que poderá sair muitíssimo mais barato à referida sociedade que um seu trabalhador sofra um acidente de trabalho mortal que ser “apanhada” num processo contra-ordenacional? Poderá, no fundo, dizer-se que há alguma justiça se isso acontecer?

Agora do ponto de vista de quem julga: poderá um juiz, após confirmar uma decisão administrativa que tenha condenado numa coima de € 2.500.000 o autor de uma contra-ordenação ambiental, atribuir uma indemnização de € 50.000, € 60.000, € 70.000, € 80.000 pelo dano morte sem que, em algum momento, ponha em causa aquilo que anda a fazer?

Se isso acontecer – e acontece efectivamente – numa Ordem Jurídica em que o valor da vida humana suplanta, em muito, o mero interesse geral de punir comportamentos violadores de normas de Direito Contra-Ordenacional, algo estará, parece-me, profundamente errado.

É claro que sempre se poderá encontrar aconchego intelectual em meia dúzia de doutíssimos manuais de Direito e em duas dúzias de citações dos autores alemães que têm aliviado alguns dos nossos da ingrata tarefa de pensarem pelas suas próprias cabeças, correndo os inerentes riscos, e de terem em conta a realidade portuguesa, que provavelmente nem sequer conhecem. Fraco consolo, porém. Por muitos argumentos de natureza formal que ali se encontrem, a questão substancial permanecerá.

Por tudo isto e concluindo, parece-me haver alguma incoerência em se considerar que um montante de € 80.000 é equitativo (já nem falo do de € 50.000…) quando se trata de indemnizar o dano morte. Parece-me haver boas razões para quebrar essa barreira, como outras o foram anteriormente.

2013-01-22

Interesses corporativos (1)


Em entrevista à RTP, Mendes Bota, deputado do PSD e presidente da comissão de ética, produziu afirmações que merecem registo:

- Mais de metade dos deputados acumulam funções no sector privado, como consultores ou advogados de grandes escritórios;

- Há situações de conflito de interesses;

- Os referidos deputados transformaram o Parlamento num palco de jogos privados;

- Os deputados advogados "assaltaram" os lugares-chave da Assembleia da República.

Fico aguardar as reacções, certamente muito indignadas, dos visados, alguns deles, aliás, sempre prontos para acusarem outros de prosseguirem interesses corporativos.

A notícia está reproduzida AQUI.

2013-01-16

Dano morte (4)


Não obstante a já apontada evolução jurisprudencial no sentido do aumento do valor da indemnização pelo dano morte, acredito que ainda não se chegou ao fim desse caminho, isto é, que o valor de € 80 000 ainda poderá ser excessivamente modesto quando está em causa a perda de uma vida humana. Numa Ordem Jurídica que coloca a vida humana como bem jurídico supremo, avaliar esse bem, em sede de cálculo da indemnização, em apenas € 80.000, ainda poderá ser pouco.

Dir-se-á, em contrário, que, não tendo a vida humana preço, a continuarmos a trilhar este caminho, não mais pararemos, pois o mesmo não tem fim.

Não é assim.

Neste domínio, como noutros em que a busca da solução jurídica do caso concreto assente num juízo de equidade (artigo 496.º, n.º 3, do Código Civil), não podemos deixar de procurar pontos de referência normativos que possam ser considerados aceitáveis. Só a consideração desses pontos de referência, caso existam, permitirá transcender o puro subjectivismo de cada juiz, ainda que balizado pela prática jurisprudencial, e encontrar uma solução que se harmonize com opções do próprio legislador noutros domínios, ainda que aparentemente distantes do instituto da responsabilidade civil extra-obrigacional.

Um ponto de referência que me parece útil é o montante das sanções em quantia (e não em dias, como acontece, no Direito Penal, com a pena de multa) que a lei estabelece no domínio do Direito Contra-Ordenacional. Aí transparece o critério da própria lei no que toca ao valor do dinheiro em função de outros bens jurídicos.

Não ignoro que o instituto da responsabilidade civil tem uma finalidade fundamentalmente (embora não exclusivamente, saliento) de ressarcimento do prejuízo sofrido pelo lesado, ao passo que o Direito Contra-Ordenacional possui uma finalidade sancionatória. Ainda assim, invocar esta diferença para afastar liminarmente o recurso àquele critério para o restrito fim que agora tenho em vista poderá ser um argumento tentadoramente fácil, mas improcedente. Ao apelar ao Direito Contra-Ordenacional, procuro fundamentalmente indagar o que é “muito dinheiro”, “pouco dinheiro”, ou “a quantia justa” para o legislador. Ou, se quisermos, o valor que este último dá a cada euro, se bem que noutro ponto da Ordem Jurídica. O que, parece-me, faz sentido e abrirá caminho para decisões mais justas, que é aquilo que se pretende no Direito.

2013-01-13

Dano morte (3)


Dois advogados meus amigos reagiram de forma pronta e certeira à segunda parte DESTA MENSAGEM, onde observo que a advocacia terá de cumprir o seu papel no sentido de levar os tribunais a fixarem a indemnização pelo dano morte em valores dignos, ou seja, mais elevados que aqueles que habitualmente são atribuídos, e que apenas o fará se não se coibir de reclamar indemnizações justas em vez de se conformar, por exemplo, com uma indemnização de apenas € 50.000 pela perda do direito à vida de uma criança de 6 anos, cingindo o pedido a tal valor.

A resposta, como dizia, veio pronta e curta: O facto de os advogados não pedirem valores acima da média fixada pelos tribunais tem uma explicação muito simples: as custas judiciais. Se não se litigar com apoio judiciário e o cliente não for rico, é melhor não arriscar, pois o custo da sucumbência pode consumir o valor indemnizatório.

Nada que eu não merecesse ouvir e de que não estivesse à espera…

Lá respondi reconhecendo que eles têm toda a razão, atendendo aos valores proibitivos que atingiram as custas judiciais. Aliás, eu estava a escrever a mensagem em causa e a pensar que qualquer advogado que a lesse pensaria imediatamente algo como: se você pagasse custas, ou tivesse que dizer ao cliente quanto ele vai ter de pagar de custas e visse a cara incrédula dele... Tive plena consciência disso, apenas não quis desviar-me do tema. Aproveito o reparo que me foi feito e trato agora da questão em mensagem autónoma.

Acredito que o legislador também tenha consciência de que o valor astronómico das custas judiciais limita em medida intolerável o acesso aos tribunais e o pleno exercício dos direitos, só que dá prevalência aos números em detrimento da substância, à estatística em detrimento daquilo que realmente interessa, que é a realização da Justiça e, desde logo, o acesso à mesma por todos aqueles que dela necessitam. Não só aqui, mas também aqui. Com efeito, do ponto de vista estatístico, não há dúvida de que, quando mais se dificultar o acesso à Justiça, menor tenderá a ser o número de processos entrados nos tribunais e, a prazo, o número de processos pendentes. O que, politicamente, constitui um trunfo.

Politicamente, cada vez mais apenas a estatística é valorizada. É a tal gestão por objectivos ultimamente muito em voga. Objectivos exclusivamente quantitativos, entenda-se. Interessa é “matar” processos ou, melhor ainda, evitar que eles “nasçam”, fixando as custas judiciais em níveis incomportáveis. Os mais pobres poderão beneficiar de apoio judiciário e os mais ricos podem pagar esse bem de luxo em que o acesso aos tribunais se transformou. Os mais prejudicados são os do costume: a classe média, se é que isso ainda existe.

2013-01-12

Organização Judiciária - As voltas e reviravoltas de uma reforma (3)


Ontem e anteontem aconteceram-me duas coisas que me trouxeram à memória aquilo que escrevi AQUI e AQUI.

Na passada 5.ª Feira, no decurso de uma audiência de julgamento, determinei uma inspecção judicial a um local a meia dúzia de quilómetros do tribunal. Má ideia: informou o senhor secretário que não havia dinheiro para pagar o táxi. Nem o táxi, nem nada, aliás. Não havia dinheiro, ponto final.

Ontem, num outro tribunal, quando decorria a inquirição de uma testemunha numa audiência de julgamento, falhou a electricidade durante uma fracção de segundo. Alto, que tem de parar tudo! O sistema de gravação foi-se abaixo. Lá tiveram os funcionários do tribunal de arrancar com aquilo novamente, o que ainda demorou um bom bocado. Entretanto, toda a gente, incluindo um juiz e quatro advogados, na expectativa de saber se a coisa tinha arranjo, a testemunha com um ar incrédulo, provavelmente a pensar que no seu estaleiro de madeiras as coisas funcionam melhor, senão já estaria na falência. Vá lá, nem tudo foi mau, salvou-se a gravação, senão teríamos de voltar ao princípio da sessão, cerca de duas horas antes, repetindo os depoimentos até então prestados.

Um funcionário lá me explicou a causa do fenómeno, que é a segunda vez que acontece durante um julgamento meu naquele tribunal (e só fui colocado no Círculo de Évora no passado mês de Setembro…). O tribunal em causa não tem actualmente uma UPS (uninterruptible power supply). Por isso, cada vez que existe uma quebra de energia eléctrica (o que, pelos vistos, é ali frequente, certamente mais um custo da interioridade), perdem-se os trabalhos que no momento se estão a realizar, diligências processuais, gravação, videoconferência e outras coisas que os tribunais fazem através do computador. A UPS que o tribunal tinha “pifou”, após mais de 10 anos de ininterrupto e dedicado serviço à justiça, sendo que o prazo razoável de duração da maquineta é de aproximadamente 5 anos. Desde então, não há € 1.000 para comprar uma UPS nova.

Ah, já agora, no mesmo tribunal, como nos restantes de que tenho notícia, o orçamento está a zero. Não dinheiro nem sequer para papel, envelopes e outros luxos.

Lá me vieram, pois, à ideia as perguntas que AQUI fiz:

1.ª - Quanto vai custar a reforma da organização judiciária em torno da qual vejo tanto entusiasmo no Ministério da Justiça?

2.ª - Onde tencionam ir buscar o dinheiro para a pagar?

É que o país judiciário real é aquele que descrevi, bem diferente daquele que parecem imaginar os autores DESTE ou DESTE artigo. Não há dinheiro, meus senhores! Ainda não se tinham apercebido disso?