2007-06-24

Liberdade de expressão - 3

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Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24-03-2004 - LINK
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Sumário:
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Devem-se considerar atípicos os juízos de apreciação e valoração vertidos sobre realizações científicas, artísticas e profissionais ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapasse o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores, criadores e protagonistas.
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Factos provados - LINK
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Excertos:
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Em qualquer Estado de direito democrático é constitucionalmente garantido a todo o cidadão o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento por qualquer meio, bem como o direito de informar sem impedimentos nem discriminações, direitos que se traduzem na liberdade de criação, discussão e crítica (a liberdade de expressão, de informação, da imprensa e demais meios de comunicação social encontra-se consagrada nos artigos 37º e 38º, da Constituição da República Portuguesa).
Esta última forma de tradução do direito de expressão e de informação, designadamente quando assume a natureza de crítica objectiva formulada através da imprensa ou de outro meio de comunicação social, tende a provocar situações de conflito potencial com bens jurídicos como a honra, situações em que de acordo com a doutrina mais recente e actualizada, a relevância jurídico-penal está à partida excluída por razões de atipicidade.
Com efeito, Costa Andrade (Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 232/245.), fazendo apelo à doutrina alemã e à jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, defende que se devem considerar atípicos os juízos de apreciação e valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores, criadores protagonistas, posto que não atinjam a honra pessoal do cientista, artista ou desportista, etc., nem atinjam a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica (Como refere em nota de rodapé (página 223), citando A. D. Weber, este na sua obra Über Injurien und Schmähschriften publicada em finais do século XVIII, consignou: “os juízos francos sobre as criações do espírito ou da arte, sobre as particularidades físicas ou sobre os conhecimentos e as capacidades de outrem, pelo simples facto de o atingirem, suscitando nele um sentimento de desagrado e limitando a sua esfera de influência sobre terceiros, e serem, por isso, prejudiciais, não podem de modo algum ser considerados como injúrias”).
Mais defende e entende que a atipicidade da crítica objectiva pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os actos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do Ministério Público, as decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo e o Parlamento (em defesa deste entendimento indica decisão do Tribunal Constitucional Federal, de 5 de Março de 1992, na qual se concluiu que o direito dos cidadãos a criticar os actos dos poderes públicos sem medo de sanções pertence ao núcleo irredutível do direito fundamental de expressão do pensamento).
Por outro lado, entende que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem-fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não se exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.
Defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto (a título exemplificativo alude ao crítico que estigmatiza uma acusação como “persecutória”, o qual a seu ver pode igualmente assumir que o seu agente, isto é, o magistrado do Ministério Público teve, naquele processo, uma conduta “persecutória”).
No entanto, esclarece que a atipicidade já não poderá sustentar-se para os juízos que atingem a honra pessoal e a consideração pessoal, perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou a obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva, nem para os juízos de facto feitos no contexto duma valoração crítica objectiva, a menos que pressuposta a prova da verdade (ibidem, 238/239.), o que significa que só se deverão ter por atípicos os juízos de facto ofensivos em que a verdade do facto ou factos em que os mesmos assentam é evidente ou notória ou se mostra já demonstrada.
Mais esclarece que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos de valor exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão, consignado expressivamente que uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à sua pessoa.
(...) o escrito que subjaz aos presentes autos é atípico. Com efeito, o mesmo mais não traduz, relativamente à pessoa do assistente, que uma crítica objectiva, formulada mediante a utilização de um juízo de valor, através do qual o seu autor opinou sobre o comportamento profissional daquele enquanto advogado da Câmara Municipal, juízo que, muito embora negativo, já que põe em causa o trabalho de advogado do assistente e a sua competência técnica, não atinge ou agride este pessoalmente, não constitui calúnia, nem se pode dizer tenha sido motivado exclusivamente pelo propósito de rebaixar ou de humilhar.
Aliás, há que reconhecer que o escrito em causa, atenta a sua natureza de artigo crítico e o seu específico conteúdo, inequivocamente de interesse público e legítimo (interesse público é não só o que diz respeito a todos, à colectividade, mas também o que diz respeito a uma parte significativa da sociedade, designadamente a uma região ou a uma cidade, sendo legítimo todo o interesse que se conforme com a ordem jurídica – Cf. Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal (1996), 68/69.), características que o colocam na categoria de acto informativo integrante daquele núcleo de actividade em que a comunicação social exerce a sua função pública, (Entende-se que a comunicação social exerce a sua função pública quando o acto informativo aborda questões em matéria social, política, económica e cultural, tendo em vista o esclarecimento ou a formação da opinião pública) encontra-se elaborado e redigido com moderação e contenção, a significar que, independentemente da aceitação e adopção da orientação defendida por Costa Andrade, sempre se deveria ter por justificado o facto, de acordo com as regras gerais do artigo 31º, do Código Penal, concretamente a constante da alínea b), do seu número 2.
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2007-06-21

Sobre a natureza humana

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ONG faz alerta sobre tráfico de órgãos na Ásia - Link
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O crime organizado e o tráfico de órgãos e tecidos - Link
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Furto de órgãos humanos - Link
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Turismo para transplante de órgãos - Link.

2007-06-19

A Justiça na televisão

Por António Barreto.
Aqui.
(Ler também o texto de Vasco Graça Moura inserido em comentário)

2007-06-17

Liberdade de expressão - 2

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Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.10.2000 (LINK):
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Sumário:
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I - Todo o cidadão tem direito à protecção jurídica da sua honra e consideração, bem como da sua privacidade/intimidade, palavra e imagem.
II - Porém, para as "pessoas da história do seu tempo", ou seja, para aqueles que ocupam a boca de cena no palco da vida política, cultural, desportiva, etc., a tutela dos bens pessoais em questão é mais reduzida e fragmentada do que no caso do cidadão comum.

2007-06-16

Liberdade de expressão - 1

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Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.05.2005 (LINK):.
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Sumário:
Na luta política pode considerar-se legítimo o uso de frases ou expressões que, no âmbito das relações privadas, seriam ofensivas.
Excertos:
- É próprio da vida social a ocorrência de algum grau de conflitualidade entre os membros da comunidade. Fazem parte do seu ontológico as desavenças, diferentes opiniões, choques de interesses incompatíveis que causam grandes animosidades. Estas situações, entre outros meios, expressam-se ao nível da linguagem, por vezes de forma exagerada ou descabida. Onde uns reconhecem firmeza, outros qualificam de gritaria, impropérios, má educação ou indelicadeza. Mas como se escreveu em recentes acórdãos desta Relação e Secção, “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” – ac. de 12.6.02, Recurso 332 /02, de que foi relator o Des. Dr. Manuel Braz.
- Não cabe aos tribunais avaliar se uma afirmação é justa, razoável ou grosseira.
- Apenas há um limite: não pode ser atingida a honra do visado – um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior - Comentário Conimbricence, Tomo I, pág. 607.
- Também esta ideia do Prof. Faria Costa a ter em conta: o facto de a honra ser um bem jurídico pessoalíssimo e imaterial, a que não temos a menor dúvida em continuar a assacar a dignidade penal, mas um bem jurídico, apesar de tudo, de menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais- de limites extraordinariamente baixos- que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica protecção através do direito penal. Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem- tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização colectiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reacção criminal – págs. 104-105,” Direito Penal Especial”, Coimbra Editora, 2004.
- Encontramos a mesma constatação na doutrina e jurisprudência comparados: na luta política, para a consecução dos fins a que esta aspira, historicamente verificou-se uma alteração na linguagem e uma desensibilização da opinião pública sobre o significado de algumas palavras e sobre certas frases usadas por pessoas que na mesma estão envolvidas, de modo que pode considerar-se como legítimo o uso de frases e expressões que em comum, no âmbito das relações privadas, seriam ofensivas – “Diffamazione a mezzo stampa e risarcimento del danno”, Francesco Verri e Vincenzo Cardone, giuffré editore, 2003, pág. 210.
- O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reteve como lícitas, no âmbito da luta política, uma expressão como imbecil,(1.7.1997, DDP, 1997, 10, 1209); lobbista, experiente em urbanizações selvagens, comissário de negócios sujos, são outros exemplos mencionados na ob. cit. , a fls. 213.
- Nas apontadas asserções poderá depara-se com algum tipo de censura, ao nível ético, de deselegância, de injusto possivelmente – mas no fundamental trata-se de debate político corriqueiro e do quotidiano da democracia.
- Diferente seria o caso de se tratar de expressões gratuitamente injuriosas, não correlacionadas com a ideia que se pretende exprimir ou a formulação de juízos de valor que não exprimissem uma polémica tomada de posição contra um particular modo de gerir os assuntos públicos mas apenas uma vontade de agressão gratuita e de confronto com a personagem pública.

2007-06-15

Reforma do Código Penal - debate parlamentar

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Uma vez preparado o terreno nos posts anteriores, vamos então recordar um facto ocorrido há cerca de 4 meses – o debate parlamentar na generalidade sobre o projecto de reforma do Código Penal.
Aquilo que a generalidade das pessoas vai conhecendo da actividade parlamentar resume-se aos curtos excertos das intervenções de alguns deputados que são passados nas televisões, tantas vezes só compreensíveis se enquadradas no contexto em que têm lugar e, pior ainda, seleccionadas segundo o critério da sua espectacularidade (televisão é essencialmente espectáculo, sem o qual não há audiências, e sem audiências não há dinheiro da publicidade, como se sabe) e não do seu mérito – o que os deputados sabem e alguns deles exploram com um saber de experiência feito.
Por isso, a leitura do Diário da Assembleia da República (LINK) é indispensável para quem queira conhecer o que realmente se passa nas sessões plenárias desse órgão de soberania.
O debate parlamentar acima aludido teve lugar no dia 21 de Fevereiro de 2007 e está documentado no Diário da Assembleia da República do dia seguinte (LINK).
Aí foram produzidas declarações extremamente optimistas sobre as virtualidades de medidas alegadamente inovadoras (embora a maior parte destas sejam mais do mesmo, só que em doses diferentes) contidas no projecto de revisão.
Convém não esquecer tais declarações.
Por um lado, o futuro dirá se o referido optimismo se justifica ou se a razão está, antes, do lado de quem, no próprio debate parlamentar, suscitou reservas – que me parecem justas – em relação a algumas das soluções propostas.
Por outro, já hoje a vida se encarrega de demonstrar que muito do "discurso oficial" sobre a criminalidade passa completamente ao lado da realidade, como resulta da leitura de inúmeras decisões judiciais.
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Sobre a forma como aqui se escreve e na sequência do post anterior

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O MEU MONTE tem um problema adicional.
Logo de entrada, revelei a minha profissão.
Dada a temática do blog, entendi que não podia deixar de o fazer, desde logo para que os improváveis leitores pudessem enquadrar aquilo que escrevo e, sendo caso disso, "dar o devido desconto" – assim, conhecem a fonte e daí retirarão as ilações que entenderem.
É claro que isto só me traz inconvenientes.
Um deles é o risco de alguns leitores esperarem um tom invariavelmente sério na escrita e reprovarem qualquer desvio a esse padrão (é o caso do post anterior).
Porém, se isso acontecer… paciência.
Cada um tem a sua visão do mundo e da vida.
De acordo com a minha, há momentos para tudo.
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Blog desactualizado

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Quem um dia se lança na aventura de fazer um blog assume um compromisso básico, mais não seja consigo próprio – actualizá-lo.

Num duplo sentido:

1 - Inserir posts com uma frequência suficiente para mostrar que o blog está activo – vertente "prova de vida";

2 - Actualizar (já agora…) com "actualidades" – vertente "estar em cima do acontecimento".

Num primeiro momento – falo por mim – senti este compromisso.

Depois, adquire-se experiência, perde-se a vergonha e passa-se a administrar o blog em função do nosso sentir em cada momento. No fundo, vai-se sedimentando o sentimento de que o blog é nosso e fazemos dele aquilo que muito bem queremos e não aquilo que pensamos que outros esperam que ele seja.

É, aliás, interessante fugir ao hábito de ler apenas os posts mais recentes de cada um dos blogs por onde se costuma vaguear e, em vez disso, ler estes últimos desde o seu início, para ver a evolução de muitos deles ao longo da sua vida (como AQUI muito bem se sugere). Confrontar a habitual "declaração de intenções" inicial com os posts mais recentes, momentos de actividade intensa com outros de letargia, alguma atitude defensiva inicial com um maior à vontade que normalmente só o tempo permite.

Olhando para O MEU MONTE, parece-me patente a progressiva libertação da preocupação de actualização frequente. Para "postar" a contragosto, mais vale estar quieto.

Chegou o momento de dar o passo seguinte: desactualizar deliberadamente. Escrever sobre aquilo que já passou. Fugir à notícia do dia, ir buscar aquilo que corre o risco de já ter sido esquecido ou nunca ter sido devidamente lembrado. No fundo, reagir "ao retardador", coisa que, a um blog alentejano, não pode ser levada a mal.
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2007-06-01

Para lá dos processos mediáticos

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Nem só de "processos mediáticos" se ocupam os tribunais.
Milhares e milhares de outros nunca chegam ao conhecimento da generalidade das pessoas.
Alguns deles talvez merecessem.
É o caso da situação julgada por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.03.2007 (LINK).
Um entre inúmeros exemplos de uma realidade brutal pouco conhecida de quem dela não é vítima.
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Sumário:
(…)
Adequa-se a pena única conjunta de 17 anos, dentro de uma moldura de 7 anos a 46 anos e 7 meses de prisão (com o limite de 25 anos) se um agente de 24 anos que, tendo antecedentes criminais pelos mesmos crimes e cumprindo pena por eles, aproveita as saídas precárias para cometer 3 crimes de rapto, 3 crimes de roubo, 2 crimes de burla informática, 2 crimes de violação, 1 crime de ameaça, 1 crime de coacção grave, 1 crime de extorsão, 1 crime de furto e 3 crimes de condução de veículo automóvel sem habilitação legal e está desinserido social laboral e familiarmente, mas cuja personalidade é muito fruto de vivências traumáticas e de abandono, cuja construção da individualização foi realizada sem referências culturais, foi punido como reincidente, não revela consciência crítica do desvalor da sua conduta delituosa e apresenta um modo de vida sem noção dos limites sociais ou convencionais.
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Sumário completo e matéria de facto provada AQUI.
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