2011-10-22

ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA (5)

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Regressemos ao artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, agora munidos com os ensinamentos dos dois Mestres que citei na mensagem anterior.
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Como já referi, esta norma surgiu no contexto de uma discussão que, sem exagero, pode ser considerada das mais acesas dos anos que a precederam em matéria de responsabilidade civil, quer na doutrina, quer na jurisprudência. A mesma norma resolveu expressamente o problema num dos sentidos que eram defendidos. É, pois, “flagrante a tácita referência da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente”, como exige JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO. Ao “fixar uma das interpretações possíveis da LA com que os interessados podiam e deviam contar,” ao “consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado” uma vez que se situa “dentro dos quadros da controvérsia”, a mesma norma “não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas”, como refere J. BAPTISTA MACHADO.
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Por tudo isto, parece-me impor-se a conclusão de que o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 tem natureza interpretativa do Direito anterior. Logo, “integra-se na lei interpretada”, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil.
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O efeito prático deste entendimento é evidente: Ainda que este acidente tivesse ocorrido antes da entrada em vigor da Lei n.º 24/2007, o regime do artigo 12.º desta última ser-lhe-ia aplicável, cabendo, assim, à concessionária o ónus de alegação e prova de factos demonstrativos de que cumpriu as suas obrigações de manutenção da segurança da via.
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Ou seja, é “apenas” a diferença entre a procedência e a improcedência da acção de indemnização movida contra a concessionária, entre conseguir o ressarcimento dos danos sofridos com o acidente e, em vez disso, não receber um cêntimo por mais graves que esses danos sejam, que pode estar em causa…
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Como era de esperar, não há consenso sobre a questão de saber se o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 tem natureza interpretativa. Assim, por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.09.2008 (processo n.º 08P1856) e de 08.02.2011 (processo n.º 8091/03.6TBVFR.P1.S1) e do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.03.2011 (processo n.º 1633/05.4TBALQ.L1-8) decidiram no sentido que acima defendi, mas o Acórdão da Relação do Porto de 28.09.2010 (processo n.º 803/2001.P1) decidiu em sentido oposto (todos estes acórdãos estão disponíveis em http://www.dgsi.pt/).
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A discussão está, pois, lançada, nomeadamente nos tribunais, onde, como muito bem se disse, por exemplo, aqui, aqui ou aqui - e, por outras palavras, ainda aquiaqui, aqui e até mesmo aqui - (peço desculpa ao dono do blog “Patologia Social” por esta devassa, embora seja por uma boa causa - é o que dá ter um blog que merece leituras e releituras atentas), o Direito é a luta pelo Direito (pelo menos em grande medida, permito-me acrescentar). Continuo a acreditar na ideia de sistema, mas, como diria o outro, sistemas há muitos… e nem todos se assemelham a mecanismos de relojoaria. O Direito é tudo menos um sistema como o Positivismo o via, embora ainda seja um sistema. Tal como o estudo do Direito ainda é, apesar de tudo, uma ciência. Nada disto exclui o espaço para a incerteza das soluções jurídicas e, por aí, para o combate quotidiano pelo reconhecimento de uma dada solução como justa. A importância dos interesses em jogo justifica esse combate (não é só no Direito Penal que se travam batalhas juridicamente sangrentas, longe disso!) e a fluidez das soluções jurídicas permite-a.
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Enfim, também aqui, a luta continua.
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2011-10-15

ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA (4)

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Em princípio, a lei só dispõe para o futuro (artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil). Porém, se a norma tiver natureza interpretativa, “integra-se na lei interpretada” (artigo 13.º, n.º 1, do mesmo código), ou seja, aplicar-se-á retroactivamente.
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Quando, como é o caso do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, a lei nova não atribui a si própria natureza interpretativa, cabe ao intérprete resolver a dúvida que a esse propósito se suscite. Nessas circunstâncias, a qualificação de uma norma como interpretativa depende da verificação de certos pressupostos.
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Dou a palavra a quem sabe:
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JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 2.ª edição, páginas 198 e 199: 
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“Para termos interpretação autêntica é também necessário que a nova lei tenha por fim interpretar a lei antiga. Não basta pois que em relação a um ponto duvidoso surja uma lei posterior que consagre uma das interpretações possíveis para que se possa dizer que há interpretação autêntica: tal lei pode ser inovadora. 
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Como se sabe então que a lei é interpretativa?
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(…) Se a fonte expressamente nada determinar, o carácter interpretativo pode resultar ainda do texto, quando for flagrante a tácita referência da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente. Não vemos razão para exigir que o carácter interpretativo seja expressamente afirmado, quando a retroactividade não tem de o ser.
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Isto não impede que a fonte não se presuma interpretativa (…). Significa apenas que a presunção no sentido do carácter não interpretativo pode ser afastada quando militarem razões em contrário.”
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J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1.ª edição, páginas 246 e 247:
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“(…) a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da LA com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas. Poderemos consequentemente dizer que são de sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vêm consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado. Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. Mas, se é este o caso, e se entretanto se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tornou praticamente certo o sentido da norma antiga, então a LN que venha consagrar uma interpretação diferente da mesma norma já não pode ser considerada realmente interpretativa (embora o seja porventura por determinação do legislador), mas inovadora.
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Para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários portanto dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.”
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2011-10-05

ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA (3)

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Foi no contexto referido na mensagem anterior que surgiu a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, cujo artigo 12.º tomou posição na querela aí descrita, no sentido da atribuição, à concessionária, do ónus da prova do cumprimento das suas obrigações de segurança. 
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É a seguinte a redacção do n.º 1 desse artigo: 
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Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
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a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
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b) Atravessamento de animais;
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c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
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Portanto, numa hipótese como aquela que configurei na mensagem anterior, a alínea b) do n.º 1 deste artigo parece não deixar dúvidas: o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária. Solução esta que me parece ser a mais justa porque, dada a flagrante desigualdade de recursos e, mais especificamente, de capacidade de acesso a informação relevante para o apuramento das circunstâncias do acidente, entre o utente e a concessionária, o primeiro, se ficasse onerado com o ónus da prova de todos os pressupostos da responsabilidade civil, incluindo do incumprimento, pela segunda, das suas obrigações de segurança, teria a seu cargo uma missão quase impossível.
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Poderá discutir-se se a referida tomada de posição do legislador directamente sobre a distribuição do ónus da prova envolve alguma opção sobre a natureza da responsabilidade – contratual ou extracontratual – da concessionária por danos resultantes de acidente de viação ocorrido em auto-estrada concessionada. É questão irrelevante para a resolução da situação enunciada na mensagem anterior. Aquilo que é relevante, ou seja, a distribuição do ónus da prova, é claro. Apesar disso, direi que me parece que o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 optou pela tese da responsabilidade extracontratual, pois só assim se compreende que tenha disposto directamente sobre o regime do ónus da prova nos termos em que o fez. Trata-se de mais um regime excepcional nesta matéria, a par de outros, como os dos artigos 491.º a 493.º do Código Civil. 
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Ficou assim o problema resolvido?
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Claro que não. Voltamos à mesma: o Direito é complexo e resolver um problema é, tantas vezes, abrir a porta a outro. Discute-se agora se o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 tem natureza interpretativa. Lá iremos.
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2011-10-01

ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA (2)

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Vamos então “às auto-estradas”.
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Uma situação infelizmente vulgar:
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Um animal atravessa-se à frente de um veículo que circula numa auto-estrada. O condutor, que não contava com o aparecimento do animal, guina instintivamente para evitar o embate, perde o controlo do veículo e despista-se, seguindo-se o rol de desgraças habitual neste tipo de acidentes.
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Accionada judicialmente, a concessionária alega que fez tudo aquilo que estava ao seu alcance no sentido de evitar a presença de animais na faixa de rodagem.
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A quem cabe o ónus da prova da ilicitude e da culpa da concessionária ou, na formulação oposta, do cumprimento das obrigações de segurança que a esta última incumbem?
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Até à entrada em vigor da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, a discussão sobre a distribuição do ónus da prova dos factos relativos à culpa da concessionária pelos danos decorrentes de acidentes de viação em auto-estradas passava por dois níveis.
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Num primeiro nível, discutia-se se a responsabilidade civil da concessionária era contratual ou extracontratual.
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Para quem entendesse que a responsabilidade era contratual, o problema da distribuição do ónus da prova da culpa ficava resolvido através da aplicação do regime constante do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil: cabia à concessionária, devedora da prestação de proporcionar a circulação na auto-estrada em condições de segurança, provar que uma quebra destas últimas não procedia de culpa sua.
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Já os defensores da tese da responsabilidade extracontratual não encontravam uma solução para o problema da distribuição do ónus da prova sem um segundo nível de discussão, reflexo da existência de regimes diferenciados nos quadros daquela responsabilidade. Enquanto uns defendiam a aplicação do regime geral de distribuição do ónus da prova nesse tipo de responsabilidade, constante do n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil, com a consequente atribuição desse ónus ao lesado, outros enquadravam a situação em normas excepcionais que estabelecem presunções de culpa do lesante, como os artigos 492.º ou 493.º, n.º 1, do mesmo código.
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É abundantíssima a doutrina e a jurisprudência sobre esta problemática. Os argumentos e as soluções que propunham eram muito diversos, o que nada tem de estranho. Como referi na mensagem anterior, o Direito é inevitavelmente complexo, como qualquer jurista digno desse nome sabe.
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