2011-09-27

ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA (1)

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Esta mensagem é, além do mais, sobre a complexidade do Direito. Dedico-a, bem como aquelas que se lhe seguirão sobre o mesmo tema, a todos os que não compreendem, ou fingem que não compreendem para agradarem àqueles que realmente não compreendem, que dois tribunais, no domínio da mesma lei, possam proferir decisões diferentes sobre situações idênticas.
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Como qualquer estudante de Direito deverá ter aprendido, o mais tardar, até ao Natal do 1.º ano do curso, as divergências de interpretação de uma norma jurídica, por juízes e não só, constituem uma inevitabilidade. Ao nível de cada um dos processos em que tenham sido proferidas as decisões divergentes, o remédio é o recurso. Ao nível “macro” (como agora se diz), se lá se chegar, uma vez que se trata de uma situação indesejável, o próprio Direito deverá reagir à “ferida” no sistema que constitui a jurisprudência contraditória, seja por via legislativa, seja através do funcionamento de mecanismos de uniformização de jurisprudência.
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Portanto, apesar de indesejável, trata-se de uma realidade que nada tem de escandaloso, como por aí às vezes se diz. Escandalosa é a ignorância, ou a falta de honestidade intelectual, ou as duas coisas juntas, de quem, sendo licenciado em Direito, não a compreende, ou finge que não a compreende só para compor mais uma arenga, apresentando-a como exemplo evidente de que o sistema judicial se encontra “em roda livre” (por oposição, provavelmente, a um sistema judicial de “carreto preso”, com que alguns sonham).
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Ia agora abordar a temática que constitui o título da mensagem. Porém, esta última já vai longa. Fica para a próxima.
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2011-09-17

CAOS SANCIONATÓRIO PORTUGUÊS

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Transcrevo um trecho importante do Programa do Governo para a Justiça:
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“Para além da tipificação excessiva de crimes, de leis avulsas e do excessivo número de alterações ao Código Penal de 1982, assinala-se ainda o excesso de contra-ordenações e a falta de proporcionalidade interna. Falta um critério geral e simples de justiça material, facilmente entendido pelo cidadão – designadamente o critério de que a pena pelo ilícito sempre deve ser proporcional à gravidade do acto praticado e ao benefício indevidamente recebido.
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Para além da ausência de critérios de justiça e de proporcionalidade na fixação das penas e das coimas, o excesso de leis penais e contra-ordenacionais tem um resultado perverso na boa organização da vida social.”
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A redacção é algo confusa, mas há aqui 3 aspectos importantes:
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1.º – O simples facto de se ter descrito o estado actual dos nossos Direito Penal e Direito Contra-Ordenacional nestes termos já é muito positivo. Encarar a realidade de frente, sem subterfúgios ou pseudo-fundamentações alegadamente jurídicas para aquilo que não tem fundamentação racional possível, como se o Direito pudesse divorciar-se da vida real e do bom senso continuando a sê-lo, é extremamente meritório, mais não seja porque o realismo caíra em desuso nos últimos anos.
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2.º – Assume-se o objectivo de harmonizar aqueles dois ramos de Direito Sancionatório, internamente e entre si, à luz do princípio da proporcionalidade, em busca do referido “critério geral e simples de justiça material, facilmente entendido pelo cidadão”. Eu diria que, das inúmeras tarefas que se colocam a quem pretenda pôr alguma ordem na nossa Ordem Jurídica, esta deveria constituir uma das prioritárias, precisamente porque contende com aquilo que há de mais importante no Direito: o ideal de Justiça, o tratar de forma igual aquilo que é igual e de forma diferente aquilo que é diferente, na medida da diferença.
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3.º – Assume-se também o objectivo de, por forma que não se explicita, resolver o problema do “excesso de leis penais e contra-ordenacionais”, problema que assume uma dimensão muitíssimo maior no Direito Contra-Ordenacional.
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Trata-se de uma tarefa complicada, disso não haja dúvidas. Pôr alguma ordem no caos em que, diploma após diploma, alteração após alteração, rectificação após rectificação, se tornaram os nossos Direito Penal e Direito Contra-Ordenacional, será tudo menos fácil. Apesar da urgência, oxalá não haja pressa. Quando se trata de legislar, as pressas dão normalmente nisto.
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2011-09-05

ESTATUTOS ESPECIAIS

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Andava eu a rever algumas noções de direitos fundamentais quando encontrei uma referência interessante a um tema que se tem revelado especialmente atreito a episódios de poluição jurídica: o dos direitos e deveres dos cidadãos com estatutos especiais. 
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Porque acredito que a poluição jurídica se combate através daquilo que constitui a sua antítese (e, espero, antídoto), ou seja, a ciência jurídica, aqui fica um bocadinho desta. São excertos do Direito Constitucional de J. J. GOMES CANOTILHO (5.ª edição, páginas 636 a 639; ver também páginas 634 e 635). Decididamente, é tempo de os juristas largarem os jornais e regressarem aos livros.
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Passo a citar:
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“(…) há outras pessoas que se encontram numa situação especial geradora de mais deveres e obrigações do que aqueles que resultam para o cidadão como tal. Referimo-nos às chamadas relações especiais, tradicionalmente designadas por relações especiais de poder (ou até estatutos de sujeição). Como exemplos referem-se as situações dos funcionários públicos, dos militares, dos presos, etc.
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(…) as relações especiais de poder serão susceptíveis de originar problemas de ordenação entre direitos fundamentais e outros valores constitucionais. Eles deverão ser resolvidos à luz dos direitos fundamentais mediante uma tarefa de concordância prática e de ponderação possibilitadora da garantia dos direitos sem tornar impraticáveis os estatutos especiais.
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(…) os cidadãos regidos por estatutos especiais não renunciam a direitos fundamentais (irrenunciabilidade dos direitos fundamentais) nem se vinculam voluntariamente a qualquer estatuto de sujeição produtor de uma capitis diminutio. Trata-se tão-somente de relações da vida disciplinadas por um estatuto específico. Este estatuto, porém, não se situa fora da esfera constitucional, não é uma ordem extraconstitucional. É um estatuto heteronomamente vinculado, devendo encontrar o seu fundamento na Constituição (ou estar pelo menos pressuposto). As restrições de direitos fundamentais justificadas com base numa relação especial de poder, mas sem fundamento na Constituição, serão, consequentemente, inconstitucionais.”
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