2006-11-28

Fornecimento de seringas nas prisões e reinserção social

O programa de "troca" de seringas nas prisões suscita-me, entre outras (1) (2), a questão da sua compatibilidade com a finalidade de reinserção social do cidadão autor de um crime que qualquer pena deve prosseguir.
Sendo certo que o Estado, desde logo por força do disposto no art. 40.º, n.º 1, do Código Penal, que o "projecto de reforma" apresentado pela UMRP não altera, não pode abdicar desse objectivo relativamente a toda e qualquer pena que aplique.
Suponhamos que um toxicodependente comete um ou mais crimes contra o património com o intuito de obter meios para comprar estupefacientes e é condenado numa pena de prisão efectiva – é esta a história pessoal de grande parte dos reclusos em Portugal.
Parece-me evidente que a reinserção social deste cidadão terá de começar pelo tratamento da sua toxicodependência, o qual pressupõe o seu afastamento do consumo dos produtos estupefacientes em que está viciado, mais não seja através de um programa de substituição.
Porém, em vez disso, o Estado, já que não consegue – segundo afirma – garantir a não entrada de produtos estupefacientes no meio prisional, vai passar a fornecer seringas (o termo "troca" não passa de um eufemismo) a esse cidadão, para que ele, já que continua a consumir drogas, o faça de forma "segura".
Esse cidadão lá se vai injectando (ainda que, porventura, antes de ser preso, a forma de consumo do estupefaciente fosse outra, menos nociva) com o produto estupefaciente que compra no interior da prisão ou que as pessoas que o visitam lhe levam e – aspecto fundamental na perspectiva em que coloco o problema – a colaboração do Estado, que lhe fornece as seringas.
Pergunto:
Findo o cumprimento da pena, que cidadão sai para o exterior?
Em que é que o cidadão que é libertado difere, no tocante às razões que o levaram a cometer o ou os crimes por que foi condenado, daquele que foi preso?
Que irá este cidadão, que, com a colaboração do Estado, é tão toxicodependente à saída como o era à entrada no sistema prisional (ou ainda mais), fazer em liberdade?
Onde ficou a reinserção social desse cidadão?
O que é que o Estado fez com vista a essa reinserção quando, durante o período de cumprimento da pena, se limitou a fornecer-lhe seringas e um local para se injectar tranquilamente?
Pergunto, com a humildade que deve assumir perante questões desta natureza quem, como eu, é um mero prático do Direito e não tem todo o tempo que gostaria de ter para aprofundar os seus conhecimentos teóricos: não irá a implementação do programa de "troca" de seringas nas prisões pôr em causa a primazia do objectivo de reinserção social do delinquente, sacrificando-o ao de, simplesmente, reduzir danos (o qual, em si mesmo, me parece inidóneo para constituir o fim de qualquer pena)?
Se assim for, talvez seja necessário rever alguns conceitos fundamentais em matéria de fins das penas, de forma a reconhecer que, em muitos casos, o Estado assume que a finalidade destas últimas deixou de ser a reinserção social do delinquente, sob pena de esta última se tornar – ou continuar a tornar-se – uma mera figura de estilo.
Nesses casos, qual passa a ser o fim da pena?

2006-11-24

Art. 42.º da Lei n.º 5/2006 (Lei das armas) – Parte II

Ainda quanto ao estipulado no art. 42.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, assaltou-me a dúvida que consiste no caso de ser entendido que o art. 21.º da Constituição da República, na parte em que refere “Todos têm o direito…de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.” não confere estatuto constitucional à legítima defesa, se poderá equacionar a seguinte questão:
Imaginemos que se encontram presentes todos os pressupostos a que respeita o n.º 1, al. a), do citado artigo; simplesmente existe a diferença do instrumento empregue, ou seja, num caso o ofendido, ou em vias disso, está munido de uma arma de fogo, e no outro o ofendido tem um instrumento que não uma arma de fogo como, por exemplo, um pau, uma faca, uma sachola, etc.
Estando situados o Código Penal e a actual legislação das armas no mesmo nível de hierarquia, poderemos ser levados a entender que o art. 42.º da Lei n.º 5/2006, porque posterior, veio revogar tacitamente o art. 32.º daquele Código no caso de a arma utilizada ser de fogo, continuando a vigorar este preceito do Código Penal quando arma utilizada não for de fogo.
Será lícita esta discriminação?
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Luís Lança (Procurador da República)

Um fiasco chamado videoconferência - 5

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Onde é que eu já vi ISTO?
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Sobre o tema:
Link 1
Link 2
Link 3
Link 4
Link 5
Link 6

2006-11-18

2006-11-09

Tribunal de Grande Instance de Bordeaux

(Fotografia de J. Gomes de Sousa)

2006-11-07

Troca de seringas em meio prisional

Os dois post anteriores foram citados aqui e aqui.
Os meus agradecimentos ao "Anónimo" e ao "Sexo dos Anjos".

2006-11-05

Troca de seringas e segurança das prisões

Objectar-se-á ao que aqui afirmei:
Sim senhor, isso está tudo muito bem (ou até nem está mal de todo, ou é tudo uma rematada asneira – para o efeito, tanto faz), mas há um problema prático de saúde dos reclusos que urge resolver e, atendendo à gravidade da situação, se, para se resolver esse problema, tiver de se sacrificar alguns princípios, paciência.
Sou, em geral, sensível a este tipo de argumentação.
Também entendo que, quando fortes razões de ordem prática impõem uma determinada solução, para mais quando está em causa a saúde e a vida de pessoas, alguns dogmas devem ser postos de lado na medida do estritamente necessário.
Porém, pergunto se o Estado está a fazer tudo, mas mesmo tudo, aquilo que está ao seu alcance no sentido de impedir a entrada de produtos estupefacientes nas prisões e a sua circulação no interior destas.
Diz-me a minha experiência no julgamento de crimes de tráfico de estupefacientes em prisões que não está.
Antes de avançar com o programa da troca de seringas, talvez o Estado devesse repensar todo o sistema de segurança das prisões, não no aspecto tradicional da sua capacidade para impedir fugas, mas no inverso, ou seja, da sua capacidade para controlar aquilo que vem do exterior.

2006-11-04

Seringas nas prisões e autoridade do Estado

Estou radicalmente contra o programa de troca de seringas nas prisões que se pretende implementar.
Não ponho em causa a nobreza das intenções de alguns dos seus defensores e partilho as suas preocupações.
Todavia, parece-me inevitável a conclusão de que a implementação de tal programa constitui uma desonrosa capitulação do Estado perante o tráfico de estupefacientes dentro das prisões e um grave incumprimento do seu dever de manter o meio prisional livre do tráfico e consumo de produtos dessa natureza.
E se há um campo em que me aflige ver o Estado capitular é o do combate à criminalidade.
Se nem sequer dentro de um meio que é suposto ser fechado e controlado como nenhum outro, como é o meio prisional, o Estado é capaz de manter a ordem, nomeadamente em matéria de tráfico e consumo de estupefacientes, quem pode levar a sério a capacidade desse mesmo Estado para combater o crime "cá fora", tarefa que, convenhamos, é bastante mais complicada?
A imagem que o Estado dá de si próprio se for para a frente com esta medida é, pois, extremamente negativa.
E isso tem custos elevadíssimos ao nível da sua credibilidade aos olhos dos cidadãos.

2006-11-03

"Ecole Nationale de la Magistrature" (Bordéus)

Mão amiga fez-me chegar esta fotografia, bem como outras que publicarei ulteriormente.
O meu agradecimento ao seu autor.
(Fotografia - Dr. J. Gomes de Sousa)

2006-11-01

Art. 42.º da Lei n.º 5/2006 (Lei das armas) – O politicamente correcto?

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Estipula o art. 42.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006:
“1 - Considera-se uso excepcional de arma de fogo a sua utilização efectiva nas seguintes circunstâncias:
a) Como último meio de defesa, para fazer cessar ou repelir uma agressão actual e ilícita dirigida contra o próprio ou terceiros, quando exista perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física e quando essa defesa não possa ser garantida por agentes de autoridade do Estado, devendo o disparo ser precedido de advertências e em caso algum podendo visar zona letal do corpo humano” (sublinhado nosso).
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Ou seja, um cidadão está em poder de uma arma de fogo devidamente legalizada, encontra-se em perigo de vida ou de ofensa física grave, não pode socorrer-se de agentes de autoridade, avisa o agressor que está armado e mesmo assim, perante a iminência de ser morto ou ferido gravemente, porque o agressor está armado (se calhar com arma de fogo de calibre muito superior à sua, pois adquiriu-a no mercado negro), tem que efectuar disparo para as unhas das mãos ou dos pés (passe o exagero).
Será que o legislador desconhece o instituto da legítima defesa, consagrado no art. 32.º do Código Penal? Ou não o desconhece e, mesmo assim, num afã de se tornar politicamente correcto, passou por cima dele?
E, já agora, será que os GOE e outras forças de elite treinam para atingirem os alvos em “zonas não letais do corpo humano”?
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Luís Lança (procurador da República)
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