2011-11-12

O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO ADMINISTRATIVA CONDENATÓRIA EM PROCESSO CONTRA-ORDENACIONAL (2)

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O sumário do artigo que referi na mensagem anterior é o seguinte:
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"A incipiente elaboração doutrinal sobre o Direito Contra-Ordenacional português tem aberto o caminho a alguns equívocos sobre a essência deste ramo do Direito, com indesejáveis repercussões na sua vertente processual.
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Nesta linha, tem vindo a prevalecer, nomeadamente ao nível da jurisprudência dos tribunais de segunda instância, uma orientação que menoriza o Direito Contra-Ordenacional, tanto ao nível substantivo como adjectivo, contemporizando com más práticas de muitas autoridades administrativas na fase administrativa do processo.
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Neste artigo, dirigido à problemática da fundamentação da decisão administrativa condenatória mas que inevitavelmente envolve questões essenciais do Direito Contra-Ordenacional, procura-se identificar os principais argumentos em que assenta aquela linha de pensamento e refutá-los para, no terreno assim desbravado, propor uma interpretação do n.º 1 do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, sustentável à luz das regras da boa hermenêutica jurídica e das exigências decorrentes da própria ideia de Estado de Direito Democrático."
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A doutrina e a jurisprudência referenciadas estão AQUI e AQUI.
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2011-11-01

O DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO ADMINISTRATIVA CONDENATÓRIA EM PROCESSO CONTRA-ORDENACIONAL (1)

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Nos últimos tempos de docência no Centro de Estudos Judiciários dediquei-me a escrever um artigo sobre Direito Contra-Ordenacional, jurisdição que ali leccionei a par da de Direito Penal e Direito Processual Penal e pela qual tinha – como sempre tive durante os anos em que, nos tribunais, trabalhei com aquele ramo de Direito Sancionatório – uma afeição muito especial. Terminei-o no final de 2010, já de volta às minhas funções no Círculo Judicial de Beja. A sua publicação ocorreu recentemente, no n.º 14 da Revista do CEJ.
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O título é “O dever de fundamentação da decisão administrativa condenatória em Processo Contra-Ordenacional”.
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Logo de entrada, digo ao que venho. Assim:
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1. O problema:
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O artigo 58.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO) estabelece os requisitos formais da decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa em processo contra-ordenacional. Apesar da sua aparente clareza, o n.º 1 deste artigo tem sido objecto das interpretações mais díspares por parte da jurisprudência, assim dando, naturalmente, origem a decisões muito diferentes entre si. Com efeito, encontramos, de um lado, jurisprudência que, baseada numa interpretação minimalista daqueles requisitos, considera formalmente válidas decisões administrativas condenatórias que dificilmente alcançam um limiar mínimo de compreensibilidade pelos seus destinatários; no extremo oposto, encontramos jurisprudência que entende os requisitos formais prescritos pelo n.º 1 do artigo 58.º do RGCO de modo rigoroso, daí resultando o reconhecimento, em alguns aspectos, de semelhanças com aqueles que os artigos 374.º e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP) exigem para a sentença penal. 
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Têm sido convocados para esta discussão alguns argumentos que me parece deverem ser afastados. Analisá-los-ei em seguida, não sem antes realçar que alguns deles se sobrepõem parcialmente, vindo, normalmente, invocados em conjunto. Concluída essa tarefa, ficará desbravado o caminho para a interpretação que considero correcta.
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2011-10-22

ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA (5)

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Regressemos ao artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, agora munidos com os ensinamentos dos dois Mestres que citei na mensagem anterior.
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Como já referi, esta norma surgiu no contexto de uma discussão que, sem exagero, pode ser considerada das mais acesas dos anos que a precederam em matéria de responsabilidade civil, quer na doutrina, quer na jurisprudência. A mesma norma resolveu expressamente o problema num dos sentidos que eram defendidos. É, pois, “flagrante a tácita referência da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente”, como exige JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO. Ao “fixar uma das interpretações possíveis da LA com que os interessados podiam e deviam contar,” ao “consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado” uma vez que se situa “dentro dos quadros da controvérsia”, a mesma norma “não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas”, como refere J. BAPTISTA MACHADO.
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Por tudo isto, parece-me impor-se a conclusão de que o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 tem natureza interpretativa do Direito anterior. Logo, “integra-se na lei interpretada”, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil.
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O efeito prático deste entendimento é evidente: Ainda que este acidente tivesse ocorrido antes da entrada em vigor da Lei n.º 24/2007, o regime do artigo 12.º desta última ser-lhe-ia aplicável, cabendo, assim, à concessionária o ónus de alegação e prova de factos demonstrativos de que cumpriu as suas obrigações de manutenção da segurança da via.
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Ou seja, é “apenas” a diferença entre a procedência e a improcedência da acção de indemnização movida contra a concessionária, entre conseguir o ressarcimento dos danos sofridos com o acidente e, em vez disso, não receber um cêntimo por mais graves que esses danos sejam, que pode estar em causa…
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Como era de esperar, não há consenso sobre a questão de saber se o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 tem natureza interpretativa. Assim, por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.09.2008 (processo n.º 08P1856) e de 08.02.2011 (processo n.º 8091/03.6TBVFR.P1.S1) e do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.03.2011 (processo n.º 1633/05.4TBALQ.L1-8) decidiram no sentido que acima defendi, mas o Acórdão da Relação do Porto de 28.09.2010 (processo n.º 803/2001.P1) decidiu em sentido oposto (todos estes acórdãos estão disponíveis em http://www.dgsi.pt/).
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A discussão está, pois, lançada, nomeadamente nos tribunais, onde, como muito bem se disse, por exemplo, aqui, aqui ou aqui - e, por outras palavras, ainda aquiaqui, aqui e até mesmo aqui - (peço desculpa ao dono do blog “Patologia Social” por esta devassa, embora seja por uma boa causa - é o que dá ter um blog que merece leituras e releituras atentas), o Direito é a luta pelo Direito (pelo menos em grande medida, permito-me acrescentar). Continuo a acreditar na ideia de sistema, mas, como diria o outro, sistemas há muitos… e nem todos se assemelham a mecanismos de relojoaria. O Direito é tudo menos um sistema como o Positivismo o via, embora ainda seja um sistema. Tal como o estudo do Direito ainda é, apesar de tudo, uma ciência. Nada disto exclui o espaço para a incerteza das soluções jurídicas e, por aí, para o combate quotidiano pelo reconhecimento de uma dada solução como justa. A importância dos interesses em jogo justifica esse combate (não é só no Direito Penal que se travam batalhas juridicamente sangrentas, longe disso!) e a fluidez das soluções jurídicas permite-a.
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Enfim, também aqui, a luta continua.
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2011-10-15

ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA (4)

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Em princípio, a lei só dispõe para o futuro (artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil). Porém, se a norma tiver natureza interpretativa, “integra-se na lei interpretada” (artigo 13.º, n.º 1, do mesmo código), ou seja, aplicar-se-á retroactivamente.
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Quando, como é o caso do artigo 12.º da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, a lei nova não atribui a si própria natureza interpretativa, cabe ao intérprete resolver a dúvida que a esse propósito se suscite. Nessas circunstâncias, a qualificação de uma norma como interpretativa depende da verificação de certos pressupostos.
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Dou a palavra a quem sabe:
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JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 2.ª edição, páginas 198 e 199: 
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“Para termos interpretação autêntica é também necessário que a nova lei tenha por fim interpretar a lei antiga. Não basta pois que em relação a um ponto duvidoso surja uma lei posterior que consagre uma das interpretações possíveis para que se possa dizer que há interpretação autêntica: tal lei pode ser inovadora. 
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Como se sabe então que a lei é interpretativa?
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(…) Se a fonte expressamente nada determinar, o carácter interpretativo pode resultar ainda do texto, quando for flagrante a tácita referência da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente. Não vemos razão para exigir que o carácter interpretativo seja expressamente afirmado, quando a retroactividade não tem de o ser.
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Isto não impede que a fonte não se presuma interpretativa (…). Significa apenas que a presunção no sentido do carácter não interpretativo pode ser afastada quando militarem razões em contrário.”
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J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1.ª edição, páginas 246 e 247:
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“(…) a razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da LA com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas. Poderemos consequentemente dizer que são de sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vêm consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado. Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. Mas, se é este o caso, e se entretanto se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tornou praticamente certo o sentido da norma antiga, então a LN que venha consagrar uma interpretação diferente da mesma norma já não pode ser considerada realmente interpretativa (embora o seja porventura por determinação do legislador), mas inovadora.
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Para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários portanto dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora.”
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2011-10-05

ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA (3)

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Foi no contexto referido na mensagem anterior que surgiu a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, cujo artigo 12.º tomou posição na querela aí descrita, no sentido da atribuição, à concessionária, do ónus da prova do cumprimento das suas obrigações de segurança. 
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É a seguinte a redacção do n.º 1 desse artigo: 
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Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
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a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
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b) Atravessamento de animais;
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c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
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Portanto, numa hipótese como aquela que configurei na mensagem anterior, a alínea b) do n.º 1 deste artigo parece não deixar dúvidas: o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária. Solução esta que me parece ser a mais justa porque, dada a flagrante desigualdade de recursos e, mais especificamente, de capacidade de acesso a informação relevante para o apuramento das circunstâncias do acidente, entre o utente e a concessionária, o primeiro, se ficasse onerado com o ónus da prova de todos os pressupostos da responsabilidade civil, incluindo do incumprimento, pela segunda, das suas obrigações de segurança, teria a seu cargo uma missão quase impossível.
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Poderá discutir-se se a referida tomada de posição do legislador directamente sobre a distribuição do ónus da prova envolve alguma opção sobre a natureza da responsabilidade – contratual ou extracontratual – da concessionária por danos resultantes de acidente de viação ocorrido em auto-estrada concessionada. É questão irrelevante para a resolução da situação enunciada na mensagem anterior. Aquilo que é relevante, ou seja, a distribuição do ónus da prova, é claro. Apesar disso, direi que me parece que o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 optou pela tese da responsabilidade extracontratual, pois só assim se compreende que tenha disposto directamente sobre o regime do ónus da prova nos termos em que o fez. Trata-se de mais um regime excepcional nesta matéria, a par de outros, como os dos artigos 491.º a 493.º do Código Civil. 
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Ficou assim o problema resolvido?
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Claro que não. Voltamos à mesma: o Direito é complexo e resolver um problema é, tantas vezes, abrir a porta a outro. Discute-se agora se o artigo 12.º da Lei n.º 24/2007 tem natureza interpretativa. Lá iremos.
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2011-10-01

ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA (2)

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Vamos então “às auto-estradas”.
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Uma situação infelizmente vulgar:
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Um animal atravessa-se à frente de um veículo que circula numa auto-estrada. O condutor, que não contava com o aparecimento do animal, guina instintivamente para evitar o embate, perde o controlo do veículo e despista-se, seguindo-se o rol de desgraças habitual neste tipo de acidentes.
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Accionada judicialmente, a concessionária alega que fez tudo aquilo que estava ao seu alcance no sentido de evitar a presença de animais na faixa de rodagem.
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A quem cabe o ónus da prova da ilicitude e da culpa da concessionária ou, na formulação oposta, do cumprimento das obrigações de segurança que a esta última incumbem?
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Até à entrada em vigor da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, a discussão sobre a distribuição do ónus da prova dos factos relativos à culpa da concessionária pelos danos decorrentes de acidentes de viação em auto-estradas passava por dois níveis.
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Num primeiro nível, discutia-se se a responsabilidade civil da concessionária era contratual ou extracontratual.
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Para quem entendesse que a responsabilidade era contratual, o problema da distribuição do ónus da prova da culpa ficava resolvido através da aplicação do regime constante do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil: cabia à concessionária, devedora da prestação de proporcionar a circulação na auto-estrada em condições de segurança, provar que uma quebra destas últimas não procedia de culpa sua.
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Já os defensores da tese da responsabilidade extracontratual não encontravam uma solução para o problema da distribuição do ónus da prova sem um segundo nível de discussão, reflexo da existência de regimes diferenciados nos quadros daquela responsabilidade. Enquanto uns defendiam a aplicação do regime geral de distribuição do ónus da prova nesse tipo de responsabilidade, constante do n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil, com a consequente atribuição desse ónus ao lesado, outros enquadravam a situação em normas excepcionais que estabelecem presunções de culpa do lesante, como os artigos 492.º ou 493.º, n.º 1, do mesmo código.
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É abundantíssima a doutrina e a jurisprudência sobre esta problemática. Os argumentos e as soluções que propunham eram muito diversos, o que nada tem de estranho. Como referi na mensagem anterior, o Direito é inevitavelmente complexo, como qualquer jurista digno desse nome sabe.
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2011-09-27

ACIDENTE DE VIAÇÃO EM AUTO-ESTRADA (1)

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Esta mensagem é, além do mais, sobre a complexidade do Direito. Dedico-a, bem como aquelas que se lhe seguirão sobre o mesmo tema, a todos os que não compreendem, ou fingem que não compreendem para agradarem àqueles que realmente não compreendem, que dois tribunais, no domínio da mesma lei, possam proferir decisões diferentes sobre situações idênticas.
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Como qualquer estudante de Direito deverá ter aprendido, o mais tardar, até ao Natal do 1.º ano do curso, as divergências de interpretação de uma norma jurídica, por juízes e não só, constituem uma inevitabilidade. Ao nível de cada um dos processos em que tenham sido proferidas as decisões divergentes, o remédio é o recurso. Ao nível “macro” (como agora se diz), se lá se chegar, uma vez que se trata de uma situação indesejável, o próprio Direito deverá reagir à “ferida” no sistema que constitui a jurisprudência contraditória, seja por via legislativa, seja através do funcionamento de mecanismos de uniformização de jurisprudência.
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Portanto, apesar de indesejável, trata-se de uma realidade que nada tem de escandaloso, como por aí às vezes se diz. Escandalosa é a ignorância, ou a falta de honestidade intelectual, ou as duas coisas juntas, de quem, sendo licenciado em Direito, não a compreende, ou finge que não a compreende só para compor mais uma arenga, apresentando-a como exemplo evidente de que o sistema judicial se encontra “em roda livre” (por oposição, provavelmente, a um sistema judicial de “carreto preso”, com que alguns sonham).
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Ia agora abordar a temática que constitui o título da mensagem. Porém, esta última já vai longa. Fica para a próxima.
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2011-09-17

CAOS SANCIONATÓRIO PORTUGUÊS

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Transcrevo um trecho importante do Programa do Governo para a Justiça:
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“Para além da tipificação excessiva de crimes, de leis avulsas e do excessivo número de alterações ao Código Penal de 1982, assinala-se ainda o excesso de contra-ordenações e a falta de proporcionalidade interna. Falta um critério geral e simples de justiça material, facilmente entendido pelo cidadão – designadamente o critério de que a pena pelo ilícito sempre deve ser proporcional à gravidade do acto praticado e ao benefício indevidamente recebido.
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Para além da ausência de critérios de justiça e de proporcionalidade na fixação das penas e das coimas, o excesso de leis penais e contra-ordenacionais tem um resultado perverso na boa organização da vida social.”
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A redacção é algo confusa, mas há aqui 3 aspectos importantes:
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1.º – O simples facto de se ter descrito o estado actual dos nossos Direito Penal e Direito Contra-Ordenacional nestes termos já é muito positivo. Encarar a realidade de frente, sem subterfúgios ou pseudo-fundamentações alegadamente jurídicas para aquilo que não tem fundamentação racional possível, como se o Direito pudesse divorciar-se da vida real e do bom senso continuando a sê-lo, é extremamente meritório, mais não seja porque o realismo caíra em desuso nos últimos anos.
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2.º – Assume-se o objectivo de harmonizar aqueles dois ramos de Direito Sancionatório, internamente e entre si, à luz do princípio da proporcionalidade, em busca do referido “critério geral e simples de justiça material, facilmente entendido pelo cidadão”. Eu diria que, das inúmeras tarefas que se colocam a quem pretenda pôr alguma ordem na nossa Ordem Jurídica, esta deveria constituir uma das prioritárias, precisamente porque contende com aquilo que há de mais importante no Direito: o ideal de Justiça, o tratar de forma igual aquilo que é igual e de forma diferente aquilo que é diferente, na medida da diferença.
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3.º – Assume-se também o objectivo de, por forma que não se explicita, resolver o problema do “excesso de leis penais e contra-ordenacionais”, problema que assume uma dimensão muitíssimo maior no Direito Contra-Ordenacional.
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Trata-se de uma tarefa complicada, disso não haja dúvidas. Pôr alguma ordem no caos em que, diploma após diploma, alteração após alteração, rectificação após rectificação, se tornaram os nossos Direito Penal e Direito Contra-Ordenacional, será tudo menos fácil. Apesar da urgência, oxalá não haja pressa. Quando se trata de legislar, as pressas dão normalmente nisto.
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2011-09-05

ESTATUTOS ESPECIAIS

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Andava eu a rever algumas noções de direitos fundamentais quando encontrei uma referência interessante a um tema que se tem revelado especialmente atreito a episódios de poluição jurídica: o dos direitos e deveres dos cidadãos com estatutos especiais. 
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Porque acredito que a poluição jurídica se combate através daquilo que constitui a sua antítese (e, espero, antídoto), ou seja, a ciência jurídica, aqui fica um bocadinho desta. São excertos do Direito Constitucional de J. J. GOMES CANOTILHO (5.ª edição, páginas 636 a 639; ver também páginas 634 e 635). Decididamente, é tempo de os juristas largarem os jornais e regressarem aos livros.
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Passo a citar:
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“(…) há outras pessoas que se encontram numa situação especial geradora de mais deveres e obrigações do que aqueles que resultam para o cidadão como tal. Referimo-nos às chamadas relações especiais, tradicionalmente designadas por relações especiais de poder (ou até estatutos de sujeição). Como exemplos referem-se as situações dos funcionários públicos, dos militares, dos presos, etc.
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(…) as relações especiais de poder serão susceptíveis de originar problemas de ordenação entre direitos fundamentais e outros valores constitucionais. Eles deverão ser resolvidos à luz dos direitos fundamentais mediante uma tarefa de concordância prática e de ponderação possibilitadora da garantia dos direitos sem tornar impraticáveis os estatutos especiais.
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(…) os cidadãos regidos por estatutos especiais não renunciam a direitos fundamentais (irrenunciabilidade dos direitos fundamentais) nem se vinculam voluntariamente a qualquer estatuto de sujeição produtor de uma capitis diminutio. Trata-se tão-somente de relações da vida disciplinadas por um estatuto específico. Este estatuto, porém, não se situa fora da esfera constitucional, não é uma ordem extraconstitucional. É um estatuto heteronomamente vinculado, devendo encontrar o seu fundamento na Constituição (ou estar pelo menos pressuposto). As restrições de direitos fundamentais justificadas com base numa relação especial de poder, mas sem fundamento na Constituição, serão, consequentemente, inconstitucionais.”
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2011-08-31

A imagem como meio de prova (3)

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Pelas razões que referi nesta mensagem, tenho, por princípio, as maiores reservas relativamente a artigos de jornal sobre questões jurídicas. Mais, numa matéria tão complexa como esta, impossível de resumir em duas ou três frases como os jornalistas gostam, talvez o melhor fosse os entrevistados invocarem o direito ao silêncio e, no caso de MANUEL DA COSTA ANDRADE, de longe o nosso maior especialista na mesma (humilde opinião deste bloguista de trazer pela província), remeter para os escritos que dedicou ao tema, de entre os quais sobressai o clássico “SOBRE AS PROIBIÇÕES DE PROVA EM PROCESSO PENAL”, ainda hoje, quase duas décadas volvidas sobre a sua 1.ª edição, uma obra – ou melhor, A OBRA – de referência sobre o mesmo tema, sem esquecer as suas preciosas anotações aos artigos 192.º e 199.º do Código Penal incluídas no “COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL”.
Com estas reservas, vou tentar sintetizar as teses dos entrevistados e os respectivos argumentos.
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Começo pela opinião de GERMANO MARQUES DA SILVA, professor catedrático de Direito Penal, que é, em síntese, a seguinte: 
- Os vídeos particulares feitos sem consentimento dos participantes são prova proibida;
- O registo de imagens só pode ser feito com autorização prévia de um juiz ou com o consentimento dos visados;
- O filme só pode ser utilizado como prova do crime de gravações e fotografias ilícitas, não do crime que foi filmado;
- Nem sequer como ponto de partida para uma investigação criminal o filme pode servir, pois não se pode partir de uma prova proibida para buscar outros meios de prova.
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Argumentos:
- Demorámos décadas a conquistar determinados direitos, como o direito à imagem e à privacidade; admitir a gravação de imagens e conversas ou fotografias sem autorização dos próprios é recuar ao tempo de Salazar;
- Embora, em algumas situações, a exclusão deste tipo de prova seja chocante, trata-se de um custo da democracia; ou queremos uma sociedade regida por valores fundamentais da democracia, ou queremos uma sociedade securitária e policial;
- As provas proibidas surgiram devido, em parte, aos excessos da polícia; as garantias que existem são gerais e abstractas, com o objectivo de proteger as pessoas; admite que, por vezes, aplicadas a casos concretos, "arrepiam".
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MANUEL DA COSTA ANDRADE, professor catedrático de Direito Penal, embora com argumentação diferente da de GERMANO MARQUES DA SILVA, não diverge significativamente deste último no que toca às soluções que propõe, excepto quanto à utilizabilidade do filme como meio de investigação:
- Ninguém pode fotografar ou filmar ninguém sem o seu consentimento; a lei diz que as gravações obtidas sem consentimento são ilícitas;
- Existe um conflito de direitos, mas não entre o direito à imagem e o direito que terá sido violado pelos actos que foram fotografados ou filmados (por exemplo, o direito à integridade física), violação essa que já se consumou; o verdadeiro conflito verifica-se, sim, entre o direito à imagem e a perseguição criminal;
- Ora, nestes casos, por expressa determinação da lei, o direito à imagem prevalece;
- Os vídeos podem ser utilizados como notícia de um crime, podendo as autoridades depois procurar outras provas.
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Opinião diametralmente oposta tem MARIA JOSÉ MORGADO, directora do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa:
- Os vídeos particulares podem ser utilizados como prova quando interesses de valor superior estão em causa;
- Quando há direitos em colisão, a Constituição consagra que prevalece o mais importante; ora, os direitos à vida e à integridade física sobrepõem-se ao direito à imagem;
- Por exemplo, se tivéssemos a imagem de um homicídio e não a pudéssemos utilizar, seria um absurdo.
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Também admite a utilização de imagens captadas por particulares MAIA COSTA, juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça:
- Não há obstáculo à utilização de vídeos particulares como meio de prova se os mesmos forem gravados no espaço público, circunstância que exclui qualquer intromissão na vida privada;
- O princípio geral é o de que todas as provas são permitidas a não ser que sejam prova proibida e os vídeos feitos por particulares no espaço público não fazem parte desse grupo;
- Tratando-se de um normal meio de prova, o vídeo vai ser livremente avaliado pelo juiz do caso, em conjunto com a restante prova.
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Ou seja, a seguir-se as opiniões daqueles dois professores catedráticos, o nosso bem intencionado cidadão apenas teria arranjado sarilhos para si próprio e o seu precioso filme não poderia ser utilizado como meio de prova da prática do assalto, fosse este um furto ou um roubo.
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Apesar de as opiniões dos quatro entrevistados se encontrarem expressas na meia dúzia de palavras que o formato de um artigo de jornal generalista exige, temos aqui um conjunto interessante de tópicos, que vale a pena analisar. É o que irei fazendo à medida que o tempo mo permitir.  
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2011-08-23

A imagem como meio de prova (2)

 
 
Um caso prático:

Um cidadão vê um grupo de indivíduos a assaltar uma loja. Não lhe sendo possível chamar a polícia em tempo útil para evitar o assalto, pega no seu telemóvel e filma este último. Como pessoa de bem que é, preocupada com a crescente e cada vez mais violenta e descarada criminalidade no seu bairro, corre à esquadra da PSP mais próxima e conta o sucedido, disponibilizando o filme que tão oportunamente conseguiu fazer, que permite identificar os larápios.

Pergunta-se:

1 – Poderá este filme ser utilizado num processo criminal contra os autores do assalto?

2 – Sofrerá o referido cidadão a frustração de ver rejeitada a sua bem intencionada colaboração com a Justiça com o pretexto de que o seu filme é prova inadmissível?

3 – Ou, pior ainda, arriscar-se-á o mesmo cidadão a ser alvo de um processo criminal e a ser condenado numa pena de prisão até 1 ano ou multa até 240 dias por ter cometido um crime de “gravações e fotografias ilícitas” previsto e punido pelo artigo 199.º do Código Penal? Ele, coitado, que em momento algum sonhou que os larápios tivessem, no momento do crime, um direito à imagem e que, ao fazer o seu precioso filme, estivesse a violar esse mesmo direito…

Esta problemática suscitou-se recentemente a propósito de três casos ocorridos entre nós. Interessou-se por ela o jornal “Público”, através da jornalista MARIANA OLIVEIRA. Na edição de 08.06.2011, foi publicado o artigo com o resultado da investigação a que ela procedeu, que contém as opiniões de dois professores catedráticos de Direito Penal (GERMANO MARQUES DA SILVA e MANUEL DA COSTA ANDRADE), uma magistrada do Ministério Público (MARIA JOSÉ MORGADO) e um juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça (MAIA COSTA).

Dedicarei algumas mensagens a esse artigo, que reproduzo AQUI.

2011-08-16

A imagem como meio de prova (1)


Os recentes motins em várias cidades inglesas suscitam questões interessantes sobre a possibilidade de utilizar, em processo penal, imagens de pessoas, captadas em locais públicos, sem o seu consentimento. Dada a profusão de dispositivos de captação de imagem nas mãos de autoridades públicas e de particulares, trata-se de questão que surge cada vez com maior frequência.

Por aquilo que se tem visto, nesta e noutras ocasiões, os ingleses não fazem cerimónia em utilizar tais imagens. Nomeadamente, não encontram obstáculo à utilização, quer de imagens captadas pelas inúmeras câmaras de vigilância instaladas pelas autoridades, quer daquelas que o foram por particulares; e utilizam essas mesmas imagens, quer para a identificação dos autores dos actos de vandalismo por parte da polícia, quer como meio de prova em tribunal.

Em Portugal, a questão da admissibilidade da imagem – fotografia ou filme – como meio de prova em processo penal suscita inúmeras perplexidades, à semelhança, aliás, de várias outras matérias do nosso direito probatório. O emaranhado normativo é de tal forma complexo que o seu estudo se transformou quase numa ciência oculta.

Proponho-me ir trazendo para aqui alguns elementos que me pareçam úteis para reflectir sobre esta incontornável problemática. 


2011-08-01

Avaliação da eficácia das leis – 2


Apesar do cepticismo que aqui expressei, deixo uma sugestão: comecem por avaliar o actual Código Penal.
O critério decisivo para avaliar se uma lei é boa ou má, eficaz ou ineficaz, só pode ser o da sua adequação à realidade social que visa regular. Tratando-se de uma lei penal, as vertentes fundamentais por que passa aquele juízo são duas: manutenção de níveis de criminalidade baixos com respeito pelos direitos fundamentais. O equilíbrio entre estas duas vertentes constitui o ideal de qualquer sistema penal de um Estado de Direito Democrático. De forma muito simplificada, descurar a primeira é cair no laxismo; descurar a segunda equivale a enveredar pelo securitarismo.
A esta luz, um bom ponto de partida para a avaliação do actual Código Penal seria comparar os níveis de criminalidade de 1982 com os dos anos ulteriores, até à actualidade.
Depois, seria só avaliar coisas básicas como, por exemplo:
- O efeito inibidor da reincidência (em sentido amplo) de cada uma das diversas espécies de penas que aquele código estabelece (sobre este assunto, já aqui escrevi);
- Se o regime cada vez mais generoso (para o condenado, claro está) da liberdade condicional produz algum efeito ressocializador ou, em vez disso, serve apenas para ir aliviando a pressão sobre um sistema prisional com um permanente problema de sobrelotação;
- Se o também generoso (mais uma vez para o condenado) regime do cúmulo jurídico de penas produz o efeito ressocializador que os seus defensores lhe atribuem, ou não passa, afinal, de mais um expediente para reduzir o tempo de prisão;
- Enfim, se a crença aparentemente ilimitada na possibilidade de ressocialização do delinquente (entenda-se, de todos os delinquentes, sem excepção), que está na base de opções legislativas em matérias fundamentais, tem correspondência na realidade da vida ou, ao contrário, não passa de uma falácia em que alguns ingenuamente acreditam e outros fingem acreditar com objectivos bem prosaicos mas politicamente difíceis de assumir.
Os resultados de uma tal avaliação, se esta fosse digna desse nome, seriam certamente interessantes. Lá teriam de ir mais algumas bibliotecas para o lixo, provavelmente.
  

2011-07-31

Avaliação da eficácia das leis – 1


O discurso da Ministra da Justiça contém uma ideia interessante, aliás reiterada em entrevista posteriormente concedida: “todas as leis do Estado necessitam de avaliação da sua eficácia”. O contexto desta afirmação consta da mensagem anterior.
Não posso estar mais de acordo, desde que o Estado encarregue dessa avaliação pessoas credíveis. Tal credibilidade dependerá, nomeadamente, de essas pessoas possuírem, além de conhecimentos profundos sobre a área em questão, abertura de espírito para chegarem a conclusões rigorosas, sejam elas quais forem e ainda que ponham em causa algumas verdades indiscutíveis com pés de barro que povoam o actual Direito Português. Ou seja, têm de ser pessoas intelectualmente honestas e politicamente descomprometidas, que não sucumbam à tentação de “vetar” conclusões que, à luz dos seus dogmas, sejam inaceitáveis, e/ou de, através de caminhos sinuosos e contra todas as evidências, erigir como correctas conclusões impostas por esses mesmos dogmas. Disso, já temos que chegue.
É claro que não acredito que isto venha a acontecer. Por muito boas que sejam as intenções de quem pense em solicitar as referidas avaliações, há peças que há muito ocuparam casas estratégicas do tabuleiro onde estas coisas se jogam e que tudo farão no sentido de obstar a qualquer veleidade de avaliação rigorosa da eficácia da legislação portuguesa contemporânea. Gostaria de estar enganado, mas tenho a certeza de que não estou.

2011-07-22

O discurso da Ministra da Justiça - 2

Outro trecho importante do discurso da Ministra da Justiça por ocasião da discussão do programa do Governo (o realce é da minha autoria):

“Estado de Direito não se confunde com Estado de leis. A constante alteração das leis está a minar o fundamento do Estado de Direito. Deve seguir-se como orientação o princípio, inclusivamente adoptado como norma na Constituição Federal Suíça, segundo o qual todas as leis do Estado necessitam de avaliação da sua eficácia.
No campo da Justiça são muitos os exemplos de reformas legislativas precipitadas:
- A reforma da legislação penal e processual penal
- A reforma da acção executiva
- As constantes alterações da legislação da insolvência
- O regime de inventário.”

Afirmar-se que a reforma da legislação penal e processual penal de 2007 (é obviamente essa que a Ministra da Justiça tem em vista) foi precipitada, nada tem de especial. Muitos o têm feito ao longo dos quase 4 anos que desde então decorreram. É o mínimo que dela se pode dizer. Há quem vá mais longe e afirme, sem rodeios, que aquela reforma enfermou do pecado original de visar um processo concreto – o “processo Casa Pia” –, que é o pecado mais grave que um acto legislativo pode praticar. Dediquei inúmeras mensagens ao tema, que podem ser encontradas através da lista temática à direita.
Já uma Ministra da Justiça dizer com toda a clareza, no primeiro discurso que nessa qualidade proferiu na Assembleia da República, que a reforma da legislação penal e processual penal de 2007 foi precipitada, assume uma relevância transcendente.
Por isso, aqui fica o registo.
Escusado será dizer que estou totalmente de acordo.

2011-07-16

As rendas da Justiça (ou como o Estado tem espatifado o dinheiro dos contribuintes e atirado Portugal para o lixo)

  
Li no “Público” do passado dia 13 que o Secretário de Estado Fernando Santo revelou que o Ministério da Justiça, apesar de ser titular de 1.100 imóveis, paga anualmente € 38.000.000 de rendas.
Segundo Fernando Santo, ainda está a ser feito um levantamento da situação para, a partir daí, se fazer uma gestão mais correcta.

Ocorrem-me 3 comentários:

1.º - 38 milhões de euros por ano em rendas!
Falta saber quantos milhões já foram gastos a esse título até agora. Há situações recentes, mas há outras bastante antigas.
Quantos tribunais se poderia ter construído com todo esse dinheiro?
O Estado não tinha edifícios onde instalar os tribunais que funcionam em imóveis arrendados?

2.º - Espero que o objectivo do levantamento da situação não seja apenas fazer uma gestão mais correcta. Se se descobrirem irregularidades, sejam elas de que natureza forem, têm de ser denunciadas, investigadas e punidas, como é próprio de um Estado de Direito.

3.º - Não há normas penais adormecidas, conceito que há tempos vi, pela primeira vez, proposto num artigo publicado no Correio da Manhã. É figura que não existe na ciência jurídica. Há normas penais, ponto final. Que são para aplicar, como acontece com todas as normas, penais ou não, que vigorem numa determinada Ordem Jurídica. O Direito não dorme. Quem parece adormecer de vez em quando é quem tem o dever de o implementar (conceito mais abrangente que o de aplicar).   

2011-07-08

Das palavras aos actos


Na sequência da mensagem anterior sobre o discurso da Senhora Ministra da Justiça, aqui fica o registo de um comunicado que encontrei no site do ministério:

"Esclarecimento       
Todo o processo relativo ao contrato de arrendamento outorgado a 20 de Junho do corrente ano, para a instalação do Tribunal e outros serviços de Justiça da Maia, está a ser reavaliado, com vista à sua suspensão, estando ainda em curso o apuramento de eventuais responsabilidades.
Mais se informa que foi iniciado o processo tendente ao levantamento, avaliação e estudo de todos os contratos de adjudicação de obras, serviços, equipamentos e arrendamentos, relativos ao Ministério da Justiça.   
Gabinete de Imprensa do Ministério da Justiça"

 

2011-07-03

O discurso da Ministra da Justiça – 1

 
 
Novo Governo, nova Ministra da Justiça, um novo ciclo que se inicia. A esperança de melhores dias e a certeza de que, aqui chegados, não há margem para mais erros. O que nos resta disputar é mesmo o “campeonato dos aflitos”. É o “mata mata” de que falava Scolari, mas aplicado a uma coisa muito mais séria que o futebol.
Vale a pena salientar algumas passagens do discurso da Ministra da Justiça. Não é apenas mais um discurso, isso é certo.

“A existência de pesadas estruturas administrativas, com duplicação de serviços e consultorias; um património sem gestão centralizada, vários sistemas informáticos – com prejuízo de um sistema único –, arrendamentos onerosos que convivem com tribunais semi-ocupados ou vazios, tudo isto absorve recursos.”

Arrendamentos onerosos que convivem com tribunais semi-ocupados ou vazios, sublinho.

Em cheio, Senhora Ministra. Um bom diagnóstico é meio caminho andado para a cura. Que não lhe falte energia para a outra metade. 


2011-06-26

O Direito através dos jornais

 
Afirmei na mensagem anterior que, hoje, também o cidadão comum se interessa pelo Direito e as decisões que, em nome deste, são tomadas. Por isso, o Direito passou a ser notícia frequente em meios de comunicação generalistas, saindo assim do seu habitat natural – livros, revistas jurídicas e, mais recentemente, sites jurídicos. Arrancado aos salões de acesso reservado a iniciados, o Direito foi lançado para o meio da arena mediática, aí ficando à mercê de gente pouco escrupulosa ou, simplesmente, inábil, que tantas vezes o maltrata.
Os inconvenientes desta deslocação do debate sobre o Direito para um meio que não é o seu são diversos.
Um deles é o de aquele debate passar a fazer-se com a mediação do jornalista, normalmente sem formação jurídica suficiente para compreender as questões em discussão e, por outro lado, sujeito às exigências próprias da sua própria profissão, como a limitação do número de caracteres do artigo ou a preocupação em seleccionar, não propriamente aquilo que interessa, mas a frase que fique no ouvido do público.
O resultado é aquele que se conhece: transcrição incorrecta de opiniões expressas, transcrição de frases retiradas do contexto, uso de terminologia incorrecta que adultera a mensagem, etc., etc..
Assim fica o debate inquinado. Passa a fazer-se, não em função daquilo que na realidade foi dito, mas daquilo que o jornalista percebeu e escreveu.
É este o risco de se debater o Direito com base em notícias de jornais. Àqueles cuja opinião é assim adulterada, só posso reiterar esta sugestão: Escrevam! Digam o que pensam no discurso directo. Não o fazendo, sujeitam-se a serem mal entendidos e injustamente criticados.

2011-06-19

Poluição jurídica


Longe vai o tempo em que o Direito quase só interessava a quem dele fazia profissão. Hoje, também o cidadão comum se interroga sobre o Direito e as decisões que em nome do Direito são tomadas.

Em si mesma positiva, esta evolução comporta riscos, como evidencia a realidade portuguesa dos últimos anos.

Um desses riscos é o de o debate sobre o Direito, que devia fazer-se dentro do Direito, passar a fazer-se à margem dele. Uma vez transposta essa fronteira, na realidade já não se debate o Direito, quando muito fala-se a propósito do Direito, muitas vezes grita-se a pretexto do Direito e com objectivos que passam completamente ao lado do Direito.

Esta degenerescência não tem consequências de maior quando ocorre ao nível daquilo a que dantes se chamava “conversa de taberna” e agora, com as tabernas em vias de extinção, injustamente se transpôs para a classe dos taxistas.

As coisas pioram quando subimos (subimos?) ao nível dos tudólogos que pululam nas televisões e nos jornais. Apesar de serem mais letrados que os antigos taberneiros e a maior parte dos taxistas, de Direito sabem normalmente o mesmo que qualquer destes últimos. Mas como, pelo menos os mais populares, têm lugar cativo nas televisões e falam com aquele ar de quem sabe de tudo e mais alguma coisa muito mais que todos os outros juntos, do Direito ao futebol e da Literatura a uma qualquer teoria da conspiração, acabam por convencer os mais desprevenidos. E as asneiras que dizem, nomeadamente sobre o Direito, acabam por ir fazendo o seu caminho.

Pior que tudo o resto é, porém, quando a conversa e, tantas vezes, a gritaria a propósito do Direito mas que passa à margem deste provém de gente “de dentro”, por vezes com cargos proeminentes no mundo da Justiça e a quem, por isso, é exigível contenção, honestidade intelectual, um especial respeito pelos outros e, genericamente, uma postura digna e responsável. E também, já agora, conhecimento do Direito, coisa que, mesmo neste universo mais restrito, vai faltando muito.

Este tipo de “poluição jurídica” vem alastrando, acompanhando aliás a tendência de queda da sociedade portuguesa a todos os níveis na última meia dúzia de anos. Para alguns, há que fazer barulho e lançar permanentemente a confusão, pois é no meio do barulho e da confusão que se sentem como peixe na água e vão alimentando as suas ambições pessoais.

Não são essas as águas que navego. Apesar de a tentação de reagir no mesmo tom a algumas enormidades que por aí se vão dizendo e escrevendo a propósito da Justiça e do Direito ser, por vezes, dificilmente reprimível, procuro abordar este último com respeito pelas regras a que deve obedecer um discurso que ainda pretende ser jurídico. Sem perder de vista a realidade a que o Direito se aplica, mas procurando manter-me dentro dos limites daquilo que é uma abordagem jurídica dos problemas. Só a este nível vale a pena intervir. A poluição não se combate com mais poluição.


2011-06-05

Escrevam!


Assisti na passada 6.ª Feira, em Évora, a uma acção de formação de juízes e magistrados do ministério público sobre crimes sexuais.

Foram abordados problemas com grande relevância prática, que interessam a todos aqueles que trabalham com o Direito Penal e o Direito Processual Penal.

Alguns desses problemas suscitaram, inclusivamente, debate entre a assistência e os oradores, tendo sido emitidas opiniões interessantes, mais não seja como base de reflexão.

Porém, terminada a acção de formação, foi cada um para seu lado e as palavras, essas, levou-as o vento. Aquilo que de bom ali surgiu, ali morreu pouco depois. Na melhor das hipóteses, as dezenas – larguíssimas, mas apesar de tudo dezenas – de participantes levámos algumas ideias connosco, que recordaremos quando os problemas nos aparecerem novamente pela frente nos tribunais.

É uma pena e uma perda. Apesar de o tempo de quem trabalha ser sempre pouco, seria bom que quem tem ideias com interesse as partilhasse com toda a comunidade jurídica, o que só é possível, obviamente, se as escrever. Seja em revistas jurídicas, seja no site do CEJ, seja lá onde for. Criem um site, um blog, o que seja, que os motores de busca orientarão quem estiver interessado em pesquisar os temas abordados até lá.

Mas escrevam!

2011-03-06

Direito Contra-Ordenacional da crise


Uma das consequências mais temíveis da gravíssima crise financeira a que fomos conduzidos é o desespero.
Não estou a falar do desespero das famílias que já nem para dar de comer aos seus filhos têm dinheiro, ou que estão em contagem decrescente para ficarem sem a sua casa porque deixaram de poder pagar a prestação do empréstimo bancário, ou sequer dos desgraçados que já nem casa e família têm. Esse está instalado e ainda agora vai no adro a procissão dos sacrifícios que o povo terá de suportar por anos e anos de má gestão dos recursos públicos.
Estou a falar do desespero do Estado e demais entidades públicas.
Sem dinheiro nem crédito nos mercados financeiros e com as receitas dos impostos em trajectória descendente e uma despesa que não pára de aumentar por mais “engenharia financeira” (dantes, chamava-se-lhe aldrabice) que se faça para ir mascarando o descalabro, parece ir valendo tudo para o Estado e restantes entidades públicas sugarem o que resta dos recursos dos agentes económicos e das famílias.
Neste cenário, agrava-se o risco de o Direito Contra-Ordenacional ser usado, não com a finalidade sancionatória que lhe é própria, mas como meio de obtenção de receitas públicas.
O fenómeno não é novo. Já em 1997, MANUEL FERREIRA ANTUNES, em Reflexões sobre o Direito Contra-Ordenacional, SPB Editores, página 22, chamava a atenção para a “ressonância económica” do ilícito contra-ordenacional.
Mais recentemente, voltou a chamar a atenção para o problema RAUL SOARES DA VEIGA, em Legalidade e Oportunidade no Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras, artigo inserido na obra Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras, páginas 139 e seguintes.
Em tempo de crise financeira como há décadas Portugal não via, este problema ganha particular acuidade.
A proliferação, quer de novos tipos contra-ordenacionais, quer de novos deveres cuja violação preenche tipos já existentes, bem como o permanente aumento das molduras das coimas, que frequentemente atingem valores que violam qualquer ideia de proporcionalidade, confirmam o risco de subversão da finalidade daquele ramo de Direito Sancionatório.
As implicações do fenómeno são várias. A primeira e mais perigosa delas é a de as autoridades administrativas decidirem e os seus agentes actuarem cada vez mais, não em função de critérios de objectividade e justiça, mas movidos exclusivamente pela sofreguidão de obter receitas. Aqui e ali, vão-se ouvindo queixas de que isso já está a acontecer.
A confirmar-se esta tendência, é a própria subsistência do Direito Contra-Ordenacional que terá de ser posta em causa. Então, a Administração Pública terá deixado de merecer a confiança em que assentou a transferência de poderes sancionatórios operada pela introdução daquele ramo do Direito em Portugal e acabará por ter de ser dada razão àqueles que, em devido tempo, em relação a ele manifestaram cepticismo.