2025-06-25

O uso do discurso do ódio como arma ideológica (a liberdade de expressão termina onde começam as sensações do outro).


O tema do “discurso de ódio” tornou-se, para quem consome os média dominantes e acompanha os seus representantes, uma presença quase diária no espaço público português e, de forma mais ampla, ocidental. Fala-se constantemente da ascensão da extrema-direita, do perigo dos movimentos fascistas, do ressurgimento da intolerância. No entanto, há um paradoxo pouco discutido: numa sociedade supostamente tão polarizada, só um dos polos parece ser acusado sistematicamente de propagar ódio, enquanto o outro é retratado como vítima permanente.

Verifica-se uma assimetria flagrante. A mesma expressão, se proferida por alguém de esquerda, é muitas vezes relativizada ou até normalizada. Mas, se for dita por alguém que não se revê nesse campo ideológico, mesmo que se trate de um democrata liberal ou conservador, é imediatamente catalogada como perigosa, intolerável ou odiosa. O ódio deixou de ser uma questão de conteúdo ou intenção. Tornou-se uma arma política, aplicada de forma seletiva conforme a orientação ideológica do emissor. Esta prática tem história. Talvez o seu exemplo mais claro esteja na obra de Herbert Marcuse, como veremos mais adiante.

Um exemplo acabado de como o progressismo e o socialismo ditos democráticos operam hoje com uma verdadeira polícia ideológica institucional percebe-se na forma como o conceito de “discurso de ódio” é mobilizado para calar e criminalizar o adversário, baseando-se, em muitos casos, em categorias altamente subjetivas. Invocar o “discurso de ódio” tornou-se a chave para censurar, silenciar e desqualificar o outro. Mas o que é, afinal, esse discurso? Numa das suas definições mais comuns, depende da perceção de alguém (designado como “vítima”) e incide sobretudo sobre categorias como “cor, sexo, género, política e orientação sexual”.

A Inglaterra foi pioneira na tipificação legal deste fenómeno. Vejamos a versão aparentemente menos grave, ou seja, sem consequências criminais diretas, mas devastadora por ficar associada a registos policiais aos quais empregadores podem ter acesso, especialmente em áreas sensíveis como educação, segurança ou funções públicas.

A designação desta versão menor de crime é: “crimes de ódio e incidentes de ódio não criminais”. Uma piada, um meme, uma opinião, qualquer um destes gestos pode transformar um cidadão num “cadastrado” por ódio.

Segundo a definição do sistema jurídico britânico, um incidente de ódio não criminal (NCHI) é: “Qualquer ato que seja percecionado pela vítima ou por qualquer outra pessoa como motivado por hostilidade ou preconceito com base em: raça ou raça percecionada, religião ou religião percecionada, orientação sexual ou orientação sexual percecionada, deficiência ou deficiência percecionada, identidade transgénero (real ou percecionada).”

E quem decide o que constitui esse tipo de crime de ódio?

“As características pessoais acima são aquelas monitorizadas pelo governo central e estão previstas no sistema de justiça criminal. A polícia deve também registar e sinalizar características não monitorizadas como crimes de ódio, sempre que houver perceção de hostilidade.”

Já não é necessária qualquer condenação judicial. Basta uma queixa e a perceção subjetiva de ofensa. É legítimo afirmar que estamos perante um ambiente próximo da mentalidade política totalitária, onde o pensamento divergente é punido não pelos seus atos, mas pelo que ideologicamente representa.

O caso de Harry Miller é emblemático. Um ex-agente da polícia britânica que publicou tuites satíricos sobre ideologia de género foi alvo de investigação por parte da polícia de Humberside, que classificou os seus comentários como “incidente de ódio não criminal”. Miller foi contactado por um agente que lhe disse: “Precisamos de verificar o seu pensamento.” O caso chegou ao Supremo Tribunal, que considerou a ação policial uma violação da liberdade de expressão. No entanto, a prática institucional mantém-se, com regras reformuladas.

Em 2023, a legislação foi revista por se ter tornado arbitrária. No entanto, o essencial permanece, apesar de o Supremo Tribunal britânico ter reconhecido que os registos de NCHI violavam o direito à liberdade de expressão (artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos), recomendando a sua abolição ou restrição severa.

A definição de “discurso de ódio” no contexto da ideologia progressista não é apenas jurídica. É, acima de tudo, política, moral e identitária. O conceito generalizado é assim apresentando: “Discurso de ódio é qualquer expressão verbal, escrita ou simbólica que ataque, insulte, degrade ou ameace uma pessoa ou grupo com base em características como raça, género, orientação sexual, religião, deficiência ou identidade de género”, o que é intencionalmente vago e subjetivo. Esta imprecisão permite que quem detém o poder o aplique de forma arbitrária. O que conta como “ataque” ou “insulto” depende da perceção da alegada vítima, não de qualquer análise objetiva. A intenção do autor é irrelevante: basta que alguém se sinta ofendido para que se configure um “discurso de ódio”.

Na prática, o progressismo contemporâneo tende a expandir esse conceito de forma subjetiva, ideologicamente orientada e culturalmente repressiva. O plano jurídico serve como instrumento de criminalização do dissenso. Para esta visão, o discurso de ódio é tudo aquilo que contraria a narrativa emocional dominante sobre identidade, desigualdade ou inclusão. Tornou-se um conceito politicamente útil para desqualificar o adversário, dispensando o debate. Trata-se, sobretudo, de uma ferramenta de engenharia cultural, e não apenas de uma categoria legal.

Hoje, piadas podem ser consideradas discurso racista. Dizer que “o sexo biológico é imutável” pode ser rotulado de transfobia. Criticar o ativismo antirracista como forma de divisão social, de racismo. Defender modelos familiares tradicionais, de homofobia. Citar estatísticas sobre criminalidade associada a certos grupos, de racismo estrutural.

A censura, assim, é justificada como empatia. A dissidência é confundida com ódio. E aceita-se a legalização da punição simbólica: cancelamento, bloqueio de contas, remoção de conteúdos, registos policiais por “incidentes de ódio”.

O conceito de “ódio” expande-se progressivamente até englobar grande parte da oposição às ideias dominantes. Passa a incluir: Discordância sobre ideias identitárias (como críticas à ideologia de género ou à teoria racial crítica); Humor ou ironia considerados “insensíveis”; Afirmações políticas, científicas ou filosóficas que contradigam narrativas dominantes; Opiniões conservadoras ou religiosas, se consideradas “excludentes”.

A crítica e a oposição que não se enquadrem no sistema progressista são rotuladas como formas de opressão.

Uma das artimanhas mais eficazes é a equivalência entre expressão e ação. Dizer “dou-te um murro” passa a equivaler, legal e simbolicamente, a efetivamente dar o murro. A linguagem, nesta perspetiva, não é apenas expressão, mas ação social direta. Logo, palavras tornam-se formas de violência estrutural. Por isso, limitar certas palavras ou ideias é apresentado como proteção das vítimas, e não como censura.

Na tradição liberal clássica (e não no liberalismo económico-progressista atual), a liberdade de expressão era um direito negativo. O indivíduo era livre para pensar, dizer e discutir ideias, inclusive controversas, sem interferência do Estado, desde que não incitasse à violência ou ao crime.

Na visão progressista contemporânea, a liberdade de expressão é subordinada à proteção emocional de grupos considerados vulneráveis. A linguagem deixa de ser instrumento de debate racional e passa a ser um ato de poder, ou mesmo de violência. Assim, críticas, ironias ou discordâncias em relação a certas ideologias identitárias são rapidamente classificadas como discurso de ódio, não por causarem dano real, mas por ofenderem a sensibilidade subjetiva da vítima.

O discurso já não serve para compreender a realidade, mas para preservar um clima afetivo confortável, mesmo que isso implique censura e repressão intelectual. Esta operação permite impor um pensamento único e uma única forma aceitável de estar e pensar, sob a justificação moral de se estar a proteger os mais fracos e a impor níveis civilizacionais mínimos.

No seu célebre ensaio A Tolerância Repressiva (1965), o filósofo alemão Herbert Marcuse, figura central da Escola de Frankfurt, defende uma conceção assimétrica da liberdade de expressão. Segundo Marcuse, essa liberdade não deve ser universal, mas diferenciada conforme a posição ideológica de quem fala. O que se diz importa menos do que quem o diz e de onde fala. Assim, discursos oriundos da direita devem ser reprimidos, mesmo que pacíficos, enquanto discursos agressivos vindos da esquerda devem ser tolerados ou incentivados.

A lógica é clara: numa sociedade estruturalmente opressora, ou seja, capitalista, patriarcal, racista, qualquer tolerância para com as ideias da direita apenas reforça a dominação vigente. Em contrapartida, permitir (ou até promover) discursos da esquerda, mesmo hostis, contribui para a emancipação dos oprimidos. Declarações como “ódio à burguesia”, “ódio à polícia” ou “ódio ao homem branco” não só são toleradas, como vistas como expressões legítimas de resistência política.

Um caso elucidativo foi o da plataforma Twitter (antes da aquisição por Elon Musk), onde utilizadores conservadores, religiosos ou críticos das políticas identitárias viam as suas contas suspensas por “violações de discurso de ódio”, enquanto frases como “morte ao homem branco” ou “comer os ricos” circulavam livremente, justificadas como formas legítimas de crítica social. Esta disparidade foi denunciada por vários investigadores e jornalistas como um sintoma de enviesamento ideológico nas políticas de moderação.

Outro exemplo recente pode ser encontrado nas universidades britânicas, onde oradores convidados com posições céticas face à teoria de género ou ao multiculturalismo têm sido frequentemente desconvocados sob acusações de incitamento ao ódio. Entretanto, intervenções hostis à tradição ocidental, a Israel ou ao cristianismo são muitas vezes não só permitidas, mas promovidas em nome da diversidade e da justiça social. A liberdade de expressão tornou-se condicional, não em função do conteúdo do discurso, mas da identidade ideológica de quem o profere.

Pelo contrário, discursos que defendam o liberalismo clássico, o conservadorismo, o nacionalismo ou o anticomunismo são automaticamente entendidos como expressões de opressão, e não como posições legítimas num debate plural. Para Marcuse, a defesa da liberdade de expressão igual para todos, pilar da tradição liberal, não passa de uma ilusão criada para preservar o status quo.

Como ele próprio escreveu: “A tolerância para com a direita tende a reforçar a dominação existente; a tolerância para com a esquerda tende a enfraquecê-la.”

Este pensamento, que nos anos 60 parecia marginal, foi lentamente absorvido pelas instituições culturais, académicas e mediáticas do Ocidente. Hoje, nas chamadas sociedades liberais, Marcuse venceu. O discurso de ódio já não se define por critérios objetivos de forma ou conteúdo, mas sim pela orientação política e pelo lugar simbólico de quem fala.

O resultado é um sistema discursivo profundamente iníquo. A linguagem já não é avaliada pela sua racionalidade, pelo seu conteúdo factual ou pelo seu potencial ofensivo. É medida antes pela sua utilidade estratégica na luta ideológica e identitária. Aceitar esta assimetria na definição de discurso de ódio implica, na prática, aceitar que só a esquerda é democrática, justa e moralmente autorizada a falar em nome da liberdade e dos direitos humanos.


JOÃO MAURÍCIO BRÁS, jornal Nascer do Sol, 25.06.2025.


2025-06-15

Anátema


Mais complexo, porque mais subtil, é o problema a que somos conduzidos pela anatematização do interlocutor.

O fenómeno tem início no quadro político e inscreve-se no quadro do crescimento dos movimentos radicais de esquerda. Conforme explica Alexandre Franco de Sá, se o inimigo político de que falava Schmitt era um hostis e não um inimicus, não precisando de ser “moralmente mau, nem esteticamente feio” (…), para o populismo de esquerda conceptualizado por Mouffe, a única posição moralmente aceitável é uma posição de esquerda, podendo a direita existir na medida em que seja uma “direita de esquerda, no sentido de uma direita legitimada, tolerada e reconhecida pela esquerda nos termos da própria esquerda” (…). Pressupõe-se uma superioridade moral e intelectual da esquerda que, no fundo, dita os requisitos de legitimação para se participar no debate público, condenando todos os outros, que não aceitem aqueles termos, à indigência, pela demonização e a anatematização. Ora, o jornalismo, fruto da hegemonia cultural a que se assiste, na senda da proposta gramsciana, acaba por ser veículo privilegiado desta estratégia, caricaturando os oponentes e silenciando-os, pelo não cumprimento das regras do contraditório.

Este fenómeno, que começou nos media mainstream, acabou por extravasá-lo, contaminando o mundo digital e determinando uma política de cancelamento, em nome de um politicamente correto que hegemonicamente se cultiva.

A anatematização a que se alude pode, na verdade, configurar-se como um comportamento ilícito. Dependendo dos termos da diabolização, poderemos deparar-nos com a violação do direito à honra; noutras situações, pelo esvaziamento conceptual dos termos utilizados, tal lesão não se verificará, restando uma eventual lesão do direito à liberdade de expressão e de participação cívica. Em casos mais extremos, que, ultrapassando o domínio jornalístico ou das redes sociais, fazem com que o sujeito se confronte com comportamentos discriminatórios ou seja vítima da chamada cultura do cancelamento (v.g., as hipóteses em que um sujeito é afastado do exercício da sua atividade profissional porque, com base em dados fundados, profere uma opinião legítima, embora contrária ao pensamento hegemónico), podemos aventar a eventual violação de outros direitos, como o direito à igualdade ou inclusivamente o direito à liberdade académica ou o direito à liberdade de exercício de uma atividade profissional.

Consoante as especificidades do caso, esta ilicitude pode alicerçar uma pretensão indemnizatória (para o que será necessário verificar-se culpa, provarem-se os danos e resolver-se o problema da imputação objetiva), do mesmo modo que pode justificar que se lance mão de determinadas providências tendentes a atenuar ou a evitar a lesão.

Do ponto de vista coletivo, gera, como consequência, a radicalização do discurso e a impossibilidade de um verdadeiro diálogo, constituindo um perigo para a própria sociedade democrática, sem que, contudo, tal seja suficiente para agir no plano do direito privado.

Refira-se, in fine, que a estratégia de demonização, de antagonismo silenciador e anatematizante extrapola o contexto político, contaminando-se a outros domínios da vida societária, de tal sorte que se pode já diagnosticar uma grave patologia no mundo hodierno.


MAFALDA MIRANDA BARBOSA, A Ilicitude do Anátema, Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 4 – 2022, páginas 47-48.