2008-02-10

O perdigoto certeiro, a cuspidela na sopa e as ignorâncias crassas


O dia 19 de Novembro recorda-se pela notícia de que o Tribunal da Relação de Lisboa confirmara o despedimento de cozinheiro de um hotel, por ser seropositivo. Afirmou-se, exuberantemente, que os juízes que proferiram tal decisão não atenderam aos pareceres médicos existentes no processo, dos quais resultava não haver risco de transmissão de tal doença a terceiros.

Muito se disse e se escreveu, nesse dia e nos dias seguintes. E a quase todos que opinaram sobre o assunto pareceu mal que um cidadão pudesse ficar sem trabalho pelo simples facto de estar doente.

Houve, no entanto, quem tenha imaginado um juiz seropositivo a atirar um perdigoto para a cara de um advogado, acertando-lhe precisamente em ferida proveniente de escanhoamento matinal. Quem tenha encontrado os juízes entrincheirados na sua ignorância e preconceito e desejado ao cozinheiro a sorte de, no restaurante onde entretanto arranjou emprego, poder cuspir na sopa de um dos que o despediu, quando ele por lá aparecer. Quem afirme que os juízes garantem a sua independência quando não dão importância às opiniões dos especialistas nas matérias que devem decidir.

E tudo isto para concluir pela incompetência dos juízes e para, novamente, desancar em tais personagens, responsabilizando-os, desta vez, pelo silêncio a que os cidadãos seropositivos terão que se remeter… para conservarem os empregos.

Já a ninguém interessa avaliar a justeza de tal imputação, apesar da incoerência que a suporta – a inutilidade de dar a conhecer o que não tem qualquer importância. Se o desempenho de uma actividade profissional não envolve o risco de transmissão do VIH, qual a vantagem de dar a conhecer, ou a desvantagem de não revelar, que se é portador do vírus?

A voragem do tempo fará esquecer o cozinheiro, mas não irá melhorar a opinião sobre os juízes “que lhe tiraram o salário no fim do mês”.

Em 22 de Novembro de 2007, o Conselho Superior da Magistratura, a pedido dos Juízes Desembargadores que subscreveram a mencionada decisão, emitiu comunicado, com vista à reposição da verdade. Esclarecimento que, junto dos órgãos de comunicação social, não teve a divulgação que se impunha e do qual consta que:

- o cidadão em questão não foi objecto de despedimento com justa causa, antes a entidade empregadora considerou a existência de caducidade do contrato de trabalho;

- do processo não consta qualquer parecer médico-científico, mas apenas cópia impressa de um “site” do governo dos Estados Unidos da América, destinado a informação genérica à população sobre doenças transmissíveis;

- entre os factos considerados como provados, após realização do julgamento, com gravação da prova, com base na documentação junta ao processo e nos depoimentos de médicos ouvidos como testemunhas, consta que o vírus VIH pode ser transmitido no caso de haver derrame de sangue, saliva, suor ou lágrimas sobre alimentos servidos em cru ou consumidos por quem tenha na mucosa da boca uma ferida de qualquer espécie”;

- no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, o cidadão em causa não pediu a alteração do facto acabado de mencionar.

A decisão do Tribunal da Relação e o comunicado referidos, com manifesto interesse para o esclarecimento do “caso”, podem ser consultados in http://www.asjp.pt./

Restará concluir que verdade não interessou a quem dissertou sobre um determinado acontecimento. E a quem, no desempenho de actividade profissional que deve ser pautada pelo rigor, divulgou informação sem ter tido o elementar cuidado de a confirmar.

A verdade estragaria a notícia e não permitiria a opinião dos que imaginam “perdigotos certeiros”, “cuspidelas na sopa” e “ignorâncias crassas”. Verdade é também que as “realidades virtuais” são protectoras das íntimas razões que movem quem as cria e de quem as aproveita para opinar de forma tão incorrecta.

ANA BACELAR (Juiz de Direito - Círculo Judicial de Beja)

Nota: Este texto foi publicado na revista MAIS ALENTEJO