Os bons textos não podem cair no esquecimento.
Aqui fica a reprodução de um artigo de opinião publicado no semanário EXPRESSO de 29 de Setembro de 2007, da autoria de TERESA SERRA, sobre o tema da responsabilidade criminal das pessoas colectivas.
«Desde 15 de Setembro, passou a estar prevista no Código Penal a responsabilidade criminal de pessoas colectivas relativamente a certos tipos de crimes. Assim, pela prática de certos crimes, ao contrário do que acontecia até agora, as pessoas colectivas, em especial as empresas, rectius, algumas pessoas colectivas e empresas!, poderão ser responsabilizadas criminalmente, nos termos do novo artigo 11.º.
Em causa, estão designadamente crimes de maus tratos, tráfico de pessoas, contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, falsificação, crimes ambientais, associação criminosa, tráfico de influência, suborno, favorecimento pessoal, branqueamento ou corrupção (artigo 11.º, n.º 2). De fora deste lote, ficam o homicídio negligente, sinal de que não se pretendeu enfrentar a sinistralidade estradal, laboral, ou relativa à saúde, e a burla, um dos crimes mais cometidos no âmbito das empresas.
Surpreendentemente, a responsabilidade pela prática destes crimes está apenas prevista para pessoas colectivas e empresas... privadas! E nem todas! Numa solução que não encontra paralelo em qualquer ordem jurídica do nosso universo, são excluídas da responsabilidade criminal, além do Estado, outras pessoas colectivas públicas e organizações internacionais de direito público (art. 11.º, n.º 2). O legislador foi específico: para efeitos da lei penal a expressão pessoas colectivas públicas abrange: a) Pessoas colectivas de direito público, nas quais se incluem as entidades públicas empresariais; b) Entidades concessionárias de serviços públicos, independentemente da sua titularidade; c) Demais pessoas colectivas que exerçam prerrogativas de poder público.
Até agora, os crimes previstos no Código Penal só podiam ser cometidos por pessoas singulares, de carne e osso. Pelo contrário, em diversas leis avulsas, relativas à criminalidade económica, fiscal e informática, foi prevista, paulatinamente, a partir de meados da década de 80, a responsabilidade criminal de quaisquer entidades colectivas públicas ou privadas, incluindo o Estado. O que significa ainda que o novo artigo 11.º do Código Penal vem introduzir uma dualidade de critérios que nada justifica.
Num país em que o poder do Estado e do sector público tem um peso que é de todos conhecido, a solução agora vertida no artigo 11.º do Código Penal tem o condão de excluir da responsabilidade criminal milhares de pessoas colectivas públicas e de empresas públicas e privadas, estas últimas na medida em que sejam concessionárias de serviços públicos ou recebam prerrogativas de poder público.
Esta solução coloca evidentes problemas no plano da concorrência. Sabendo-se que, em termos económicos, é, por exemplo, mais rentável a violação dos deveres e normas ambientais, uma isenção total de responsabilidade criminal origina uma importante vantagem competitiva para quem dela beneficia. O que, em última análise, pode resultar em violação flagrante de princípios constitucionais.
A Holanda foi, na Europa continental, o primeiro país a introduzir a responsabilidade criminal de pessoas colectivas no Código Penal. Fê-lo, em 1976, de uma forma muito ampla: os crimes podem ser cometidos por pessoas singulares e por pessoas colectivas, incluindo o Estado.
Em 1987, há vinte anos portanto, um hospital foi condenado por homicídio negligente depois de um paciente ter morrido durante uma operação em virtude da utilização de equipamento de anestesia ultrapassado, numa decisão que constituiu o primeiro caso de condenação de uma pessoa colectiva por homicídio na Holanda. Não se discutiu se o hospital era público ou privado, dada a sua irrelevância face ao Código Penal holandês. Em Portugal também isso não se discutiria ainda hoje: o nosso Código Penal agora alterado continua a não prever a responsabilidade criminal de pessoas colectivas pelo cometimento de um crime de homicídio negligente! A nossa distância relativamente aos outros também se mede pela legislação que produzimos...»