Não é meu hábito transcrever textos publicados noutros lugares. Porém, o artigo de opinião que se segue, pelo interesse e actualidade do tema, impõe a abertura de uma excepção.
«A ideia de “tolerância zero” levar-nos-ia a uma criminalização de condutas, como a mendicidade ou a prostituição de rua que, certamente, podem representar um mal estar ou incómodo para a segurança ou tranquilidade pública, mas que não são verdadeiramente condutas delitivas. A vítima individual apenas é tida em conta e a relação delinquente/vítima é substituída pela ideia de que todos podemos ser vítimas e, portanto, o motivo de intervenção é a segurança de todos em geral, e não a possível lesão a um bem jurídico em particular.
Numa outra perspectiva, surge a tese do “Direito Penal do Inimigo”, estruturada como orientação doutrinária desde 1985, por Günther Jakobs. De acordo com esta formulação haveria para o Direito Penal dois tipos de indivíduos: Os cidadãos – aqueles que praticam crimes de média ou baixa gravidade mas que, não obstante, estão integrados no Estado e (aparentemente) são recuperáveis através da aplicação da respectiva pena; e os inimigos – aqueles outros que praticam crimes de elevada gravidade ou se dedicam à criminalidade complexa e altamente organizada.
Para estes últimos, porque não aceitam o Direito, negar-se-á o Direito. Não podem beneficiar da protecção das leis, aqueles que as violam de forma tão grave e hedionda. O Estado declara-lhes guerra. Como na guerra as leis são outras, o Estado considera-os “inimigos” e adopta medidas excepcionais. Em termos práticos, o Estado não reconhece ao “inimigo” direitos, uma vez que reconhecê-los seria tratá-lo como Pessoa e isso vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.
Ao nível do Direito Penal, ao “inimigo” não se aplicam penas mas medidas de segurança; a sanção a aplicar não deve ter em conta a sua culpa mas a perigosidade (tendência abstracta para cometer crimes); o fundamento da intervenção do direito penal passa a ser o perigo, a presunção do perigo basta para punir; como o “inimigo” é a personificação do perigo, então devem aplicar-se sanções que afastem esse perigo pelo periodo mais extenso possível – surgem então muito apetecíveis, as penas longas de prisão, eventualmente, até para toda a vida.
Sob o ponto de vista do Processo Penal, o “inimigo” não é um sujeito processual e, como tal, não tem direitos no processo (vg., é colocado em estados de incomunicabilidade mesmo face ao seu próprio advogado); incentiva-se e premeia-se a delação do “inimigo”; a detenção do “inimigo” permite a utilização frequente de agentes policiais infiltrados e de agentes provocadores (o que importa é descobrir o perigo onde ele existir e, por isso, se utilizam, abusivamente, medidas de coacção e cautelares: detenção e prisão preventiva por períodos indeterminados); não se permite ao inimigo que a sua situação processual seja avaliada por um juiz de direito, com vista a decidir sobre a legalidade da situação em que é mantido; a violação da privacidade passa a ser regra e o conceito de intimidade perde importância (intercepção de conversações telefónicas, apreensão de correspondência, registo da imagem e da voz, vigilância intensiva feita por todos os meios, buscas domiciliárias, e exames corporais, tornam-se rotinas desburocratizadas); quebram-se os sigilos profissionais (caso dos médicos do estabelecimento prisional).
Sem pretendermos ser arautos de más novas, temos, contudo, de deixar claro que todas estas referências não são ficção ou meras projecções do que pode vir a ser o direito do inimigo! São realidades com que cada vez mais nos confrontamos, sempre justificadas por princípios de necessidade discutíveis. Recorde-se, por exemplo o caso do USA Patriotic Act, de 24 de Outubro de 2001, que alargou o tipo de terrorismo, estendeu à administração norte-americana os poderes de proceder a buscas domiciliárias secretas e sem controlo judicial, permitiu que o Procurador-Geral pudesse prender estrangeiros que representem uma ameaça à segurança, sempre que o entender, deu à administração o poder de requisitar registos de compras de livros em livrarias e registos de empréstimos em bibliotecas, etc...
E em Portugal, ainda felizmente longe daquilo que se verifica nos Estados Unidos, vários exemplos porém vão surgindo que, de uma forma mais branda mas suficientemente direccionada, denotam alguma permeabilidade (preocupante) com o direito penal do Inimigo: começam a detectar-se tendências; a falar-se de excesso de garantismo; a defender-se a restrição de certas garantias processuais dos arguidos; a exigir-se formas menos “burocratizadas” para o uso da força por parte das entidades policiais; a defender-se que, para o combate à sinistralidade rodoviária, as entidades policiais estejam no terreno descaracterizadas, perdendo-se com isto a sua iminente função preventiva; fala-se em diferentes regimes de execução de pena (ainda não sabemos ao certo em que consiste tal propósito; porém, em alguns países a experiência tem sido altamente contestada, como acontece no Brasil desde a entrada em vigor da Lei 10.792, de 01 de Dezembro de 2003 que alterou a Lei de Execução Penal Brasileira e o Código de Processo Penal e instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado).
Em concreto recorde-se a Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, quando veio a admitir que as escutas telefónicas, o registo de voz e de imagem por qualquer meio, pudessem ser feitos sem consentimento do visado (artigo 6.°) bastando para tal, que a medida seja “considerada necessária para a investigação dos crimes referidos no artigo 1.º” da mesma Lei. Ora estes crimes acabam por ser, precisamente, aqueles que se atribuem ao “inimigo de Jakobs”: tráfico de estupefacientes, terrorismo e organizações terroristas, tráfico de armas, corrupção passiva e peculato, branqueamento de capitais, associação criminosa, etc. Esta lei permite ainda a quebra do segredo profissional dos membros dos órgãos sociais das instituições de crédito e sociedades financeiras, dos seus empregados e de pessoas que a ela prestem serviço, bem como a quebra do segredo dos funcionários da administração fiscal, desde que haja razões para crer que as respectivas informações têm interesse para a descoberta da verdade (artigo 2.°).
Por outro lado, este mesmo diploma permite ainda o controlo de contas bancárias, ficando a instituição de crédito abrigada a comunicar quaisquer movimentos sobre a conta, dentro das vinte e quatro horas subsequentes; e, em plena fase de investigação, pode ser ordenada a suspensão de movimentos (artigo 4.°).
Um outro diploma a considerar nesta matéria é a Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, que passou a definir um quadro legal para a protecção de testemunhas em processo penal. A partir daqui, e nos termos nela previstos, a testemunha pode depor sem que o arguido saiba quem depõe contra ele (artigo 4.º) o que pode significar uma grave restrição do princípio do contraditório; passa ainda a estar prevista a possibilidade de depoimento por teleconferência com ou sem a ocultação da identidade da testemunha (artigo 5.º).
Por fim, também a Lei n.º 10 1/200 1, de 25 de Agosto, teria de ser lembrada, não fosse ela que definisse o regime das acções encobertas para fins de prevenção e de investigação criminal.
Enfim, as técnicas para o combate à criminalidade que vamos conhecendo contribuem, sem dúvida, para um aumento da eficácia do Estado nestes domínios. Porém, é nosso dever alertar para o facto de que a eficácia da investigação e da administração da justiça não pode passar sempre pela restrição aos direitos fundamentais. Esta é uma tentação a que o legislador e os órgãos com competência para a investigação têm que resistir.
Resolver o problema e os impasses da investigação à custa dos direitos fundamentais é fácil e eficaz. Todavia, este não pode nunca ser o método.»
Francisco Espinhaço
Advogado penalista, doutorando em Direito Público Europeu
Fonte: O PRIMEIRO DE JANEIRO