O artigo que em seguida transcrevo foi publicado no CORREIO DA MANHÃ de 23.07.2006. Aborda uma problemática da maior importância, para juristas e não juristas. No post seguinte, direi alguma coisa sobre o assunto.
«Seja qual for a escala de penas, ninguém pode ser executado ou encarcerado por toda a vida duas vezes.
Uma pessoa mata outra por motivo fútil, ódio racial ou para dissimular uma violação. Em Portugal, pode ser condenada a 25 anos de prisão. Mas admitamos que pratica, em circunstâncias idênticas, dois, três ou mesmo 100 homicídios. A pena máxima não se altera. Ora, esta equiparação gera uma desigualdade óbvia e um “desconto” grotesco: quem matar vários seres humanos só será punido pela morte de um. Por outro lado, quem já tiver matado não encontrará estímulo para evitar a “reincidência”.
Tudo isto parece resultar da consagração do limite máximo de 25 anos de prisão. Tal limite vale para os crimes mais graves – como o homicídio qualificado –, surjam eles isolados ou em série.
Além disso, o Código Penal não prescreve a soma pura e simples de penas. O tribunal pode aplicar ao arguido punição inferior a essa soma, desde que não fique aquém da pena fixada para o crime mais grave de entre os que ele cometeu.
Entre nós, sempre vigorou o regime do “cúmulo jurídico” e seria inconstitucional promover a soma das penas, devido à proibição de prisão perpétua. Ainda assim, o caminho percorrido num passado recente aponta para a agravação da responsabilidade. Desde 1995, comina-se a pena máxima de 25 anos para todos os casos de concurso, ainda que sejam pouco graves os crimes que o integram. Ir mais longe afigura-se, se não impossível, muito duvidoso, visto que a partir dos 30 ou 35 anos a pena de prisão se aproxima do tempo de esperança de vida do condenado e tende a equivaler, na prática, à prisão perpétua.
Nos EUA (e outrora na vizinha Espanha) os tribunais aplicam penas de prisão muito superiores à duração da vida humana e até condenam um só arguido a várias penas de prisão perpétua. Vigora o “cúmulo material”, ou seja, adicionam-se as penas sem qualquer restrição.
Ora, não deveríamos nós seguir este exemplo e substituir o “cúmulo jurídico” pelo “cúmulo material”? E não seria avisado abolir (ou pelo menos elevar) o limite de 25 anos de prisão?
Seja qual for a escala de penas, é impossível estabelecer diferenciações nas hipóteses mais graves. Ninguém pode ser executado ou encarcerado por toda a vida duas vezes. Nem sequer a lei de Talião, tomada à letra (olho por olho, dente por dente), permite responder com a mesma moeda a quem praticar vários crimes. De nada servirá, por conseguinte, revogar ou elevar o limite geral de 25 anos de prisão.
E convém não esquecer que esse limite (ou outro muito semelhante) é imposto pela Constituição, que proíbe a prisão perpétua em nome da essencial dignidade da pessoa e de uma aposta firme na reintegração social do agente do crime.»
Rui Pereira, Professor de Direito e presidente do OSCOT