Desde que nos disseram que estávamos “de tanga” que as despesas – as colectivas, e apenas elas – passaram a ser assunto de melindre entre nós.
O que é humano, num tempo de crise económica como aquela que também nos dizem que atravessamos.
Mas esse melindre tem sido aproveitado, parece-me que da pior forma possível, para a imposição de medidas que não agradam aos visados com elas. E por estes, quando tentam evitar que as mesmas se concretizem.
Atitudes que, necessariamente, têm consequências.
Uma delas, e talvez a mais evidente, é que estamos uns contra os outros, enquanto sectores sociais – público ou privado – e, dentro do primeiro, enquanto grupos profissionais.
Foram criadas as condições para assim nos posicionarmos, quando, sem alteração de qualquer outra circunstância para além da económica, se transformaram em “privilégios injustificáveis” aquilo que num passado recente eram “direitos indiscutíveis”.
E acomodámo-nos a essas condições, potenciando-as até, com o propósito último e talvez único da defesa dos nossos agora denominados “privilégios”. Mas esquecendo ou não querendo equacionar o mais importante – a justificação para a sua existência ou abolição, independentemente de uma qualquer conjuntura económica.
Neste contexto e com o exagero possível de associar a uma ficção, ocorre-me história que me contaram, numa tarde há já alguns anos, em curta-metragem entre filmes do canal Hollywood.
Personagem dominante dessa história era tosco boneco animado, que se foi transfigurando, melhor dizendo humanizando, à medida que demonstrava capacidade para movimentos e gestos elaborados.
Mas não era uma história para crianças.
E nela tudo acontecia em África, num tempo não determinável de um local muito pobre.
Um homem revelava-se desesperado.
Fora agricultor e tinha perdido tudo, numa terra seca por muitos anos sem chuva. Estava só, pois a sua mulher e filhos tinham partido. E vivia numa cabana quase a cair, nada tendo sequer para comer.
Em mais uma manhã, o homem saiu da cabana e sentou-se no chão, encostando-se ao tronco morto de uma árvore.
Quase de imediato lhe surgiu um duende. Do nada, ali mesmo à sua frente.
O espanto do homem foi enorme com o aparecimento dessa pequena figura mágica e com o que ela tinha para lhe dizer – era-lhe concedido um desejo para realizar.
O que desejasse seria concretizado. Fosse o que fosse, mas apenas um desejo e com uma condição. Aquilo que desejasse ser-lhe-ia concedido a si e em dobro ao seu vizinho mais próximo.
O duende voltaria no dia seguinte, exactamente pela mesma hora em que aparecera da primeira vez, para que o desejo do homem fosse formulado e imediatamente realizado.
E o duende desapareceu.
Depois do espanto, o homem sentiu medo. Duvidava do que lhe fora proposto, porque duvidava de si próprio. O seu desespero podia ter-lhe toldado o espírito e a razão.
Mas nada tendo, nem para perder, o homem não levou muito tempo a abandonar o medo e a entusiasmar-se.
As coisas pequenas que começou por desejar foram tomando volume.
Uma bela seara, pensou. Que lhe desse grande rendimento. Teria trabalho e alimento. E teria, então, condições para reorganizar a sua vida.
Mas enquanto imaginava semelhante seara lembrou-se do vizinho, com quem estava muito zangado e há muito tempo.
O vizinho teria uma seara duas vezes maior. Sem qualquer esforço.
Nem pensar, concluiu.
Mas não querendo perder a oportunidade, o homem levou o seu pensamento para a cidade.
Deixaria de viver naquele lugarejo e desejaria um grande comércio, instalado numa bela loja.
Venderia de tudo um pouco e ficaria finalmente rico.
Só que o vizinho teria uma loja duas vezes melhor e venderia duas vezes mais coisas. Seria duas vezes mais rico.
Não o podia permitir.
Nem pensar, concluiu novamente.
Uma companheira, desejou então. Bonita, muito bonita.
E o vizinho… teria duas mulheres tão bonitas como a sua ou uma mulher duas vezes mais bonita que a sua.
Nem pensar, concluiu mais uma vez.
O dia e a noite correram, sem que o homem conseguisse dormir. Foi formulando desejos de que desistia sempre porque não queria sequer imaginar que o seu vizinho iria ter o dobro do que lhe seria a si concedido.
Que injustiça. O duende era seu e a sorte era sua. E o vizinho a aproveitar-se tudo isso.
Não, não o permitiria nunca.
A manhã chegou e o homem estava esgotado pela briga solitária que travara.
E chegou também a hora do duende, que apareceu conforme havia prometido e disse ao homem que deveria formular o seu desejo.
O homem não hesitou.
Pediu ao duende que lhe arrancasse um olho.
ANA BACELAR (Juiz de Direito - Círculo Judicial de Beja)
Nota: Este texto foi publicado na revista "MAIS ALENTEJO"