2024-11-24

O regresso da censura (3)


Em 2007, o Governo desferiu uma decisiva machadada na liberdade de expressão, na liberdade de informar e no direito a ser informado, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 63-A/2007, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 03.05.2007. Era então primeiro-ministro José Sócrates. O teor do seu ponto 101 era o seguinte:

«Incentivo ao desenvolvimento de mecanismos de auto-regulação dos media, estruturados em função da ética e da deontologia profissional (PCM/ACIDI, I.P./GMCS).

Incentivar, respeitando a autonomia dos media e a ética e deontologia dos jornalistas, o desenvolvimento de mecanismos de auto-regulação que abranjam o domínio das notícias sobre imigração, nomeadamente quanto ao rigor dos factos e ao enquadramento adequado, por forma a conter os efeitos perversos de indução de racismo e xenofobia que os media podem gerar.

Apelar à aplicação universal da regra de não identificação de nacionalidade ou de etnia nas noticias, excepto quando esta for explicativa do conteúdo da notícia, bem como à recusa de utilização de categorias grupais, enquanto sujeito da notícia ou como enquadramento de um determinado comportamento.»

O efeito persuasivo deste «incentivo» foi surpreendente. Estava em causa uma importantíssima limitação à liberdade de informar, um verdadeiro apelo à auto-censura, eufemisticamente designada por «auto-regulação». Seria de esperar uma forte e indignada reacção dos jornalistas, como até então acontecia sempre que aquela liberdade pudesse ser posta em causa.

Mas não! Não me recordo de qualquer resistência digna desse nome por parte da classe jornalística. Na sua esmagadora maioria, os jornalistas comeram e calaram. Ou melhor, comeram, calaram e cumpriram. E continuam a cumprir, quase duas décadas depois. O poder político foi, entretanto, apertando a malha desta nova forma de censura e a generalidade dos jornalistas, em vez de se indignar e resistir, foi-se encolhendo.

As notícias sobre a prática de alguns crimes foram-se, assim, tornando patentemente incompletas. Por vezes, anedoticamente incompletas.

 

Mensagens anteriores sobre este tema:

O regresso da censura (1) – link

O regresso da censura (2) – link  


2024-11-19

O regresso da censura (2)


O que aqui referi é particularmente negativo quando ataca jornalistas. Fazer jornalismo é, entre o mais, prestar toda a informação sobre determinado evento que deva ser considerada relevante à luz do interesse da generalidade do público, sem omissões.

Por exemplo, quando se noticia a ocorrência de um crime, o público não quererá, certamente, conhecer a cor das calças do seu suposto autor, ou se ele tem mau hálito. São factos obviamente irrelevantes.

Todavia, o mesmo não acontece com a identidade, as características pessoais (sexo, idade, nacionalidade, origem) e o enquadramento social do autor do crime (se trabalha, qual a sua profissão, se tem antecedentes criminais e/ou é conhecido pela prática habitual de factos semelhantes, se se encontra em liberdade condicional, se é toxicodependente), bem como o que o terá motivado a actuar daquela maneira e o contexto em que os factos ocorreram. No fundo, os elementos que respondem às perguntas básicas: quem, onde, como e porquê. Trata-se de elementos essenciais de uma notícia, que o público tem o direito de saber e o jornalista o dever de investigar e comunicar, sob pena de não estar a fazer jornalismo, mas outra coisa qualquer.

Em alguns crimes, poderá ser essencial, para a apreensão de todos os traços relevantes da situação, saber, por exemplo, se o autor do crime ocupa determinado cargo público ou privado, se pertence a determinado grupo social ou religioso, se integra determinada associação ou movimento político. Tivemos, recentemente, um exemplo disso.

Desde que Portugal vive em democracia, era com toda a naturalidade que os jornais, ao noticiarem a prática de crimes, forneciam, em toda a medida do que conseguissem apurar, os elementos acima referidos. O mesmo faziam os canais de televisão a partir do momento em que também passaram a noticiar, com frequência cada vez maior, a prática de crimes. Pelo seu lado, o público recebia essas notícias com igual naturalidade, sem que, tanto quanto me recordo, alguma vez tenha havido qualquer problema decorrente de lhe ser proporcionada informação completa.

Até que, um belo dia, o Estado resolveu intrometer-se. Havia demasiada liberdade de informar, não podia ser. Estávamos em 2007, tempo de muito má memória para a democracia em Portugal. Escreverei sobre isso em próxima mensagem.


2024-11-11

As intermitências do «anti-racismo»


Ainda se encontram sob investigação as circunstâncias que levaram um agente da PSP a disparar sobre Odair Moniz. Não obstante, o veredito da associação «SOS Racismo» foi imediato: o agente da PSP é racista e actuou motivado por esse sentimento. O comunicado que emitiu é claro: tratou-se de um «assassinato» (link).

Ou seja, para a «SOS Racismo», as dúvidas que ela própria enuncia naquele comunicado não passam de mera retórica, tudo parecendo já estar mais que esclarecido: o agente da PSP disparou com a intenção de matar Odair Moniz, sem outra justificação que o ódio que ele supostamente tem às pessoas «negras». O que implica que, logo à partida, se considere afastada a hipótese de legítima defesa, ou outra que implique descer do patamar superior, correspondente ao «assassinato».

Salta à vista que isto não faz qualquer sentido. Antes do apuramento das exactas circunstâncias em que Odair Moniz foi baleado, qualquer conclusão sobre a intenção do agente da PSP e a existência, ou não, de uma situação de legítima defesa por parte deste, é precipitada. Ainda mais precipitado é concluir que o agente da PSP é racista e que foi isso que o levou a actuar como actuou. As acusações feitas pela «SOS Racismo» são precipitadas, infundadas, ridículas e ofensivas. Também são oportunistas, pois nada mais visaram que encontrar um pretexto para a sua autora tentar justificar a sua existência e fazer prova de vida, ainda que isso implicasse lançar achas para a fogueira já ateada pela morte de Odair Moniz.

Não obstante, foram muitos aqueles que prontamente surfaram a onda do «anti-racismo» militante. Até se fez uma manifestação, escassos dias depois da morte de Odair Moniz, contra o alegado racismo, não só do agente que sobre aquele disparou, mas de toda a PSP. À qual não faltaram os habituais cartazes vexatórios da PSP e dos seus agentes e os não menos habituais políticos que não perdem oportunidades desta natureza para «aparecerem».

A pressa com que os militantes do «anti-racismo» condenaram o agente da PSP que disparou sobre Odair Moniz e enxovalharam a instituição que ele serve contrasta, porém, com o seu ensurdecedor silêncio noutras ocasiões em que, aí sim, a motivação racista de, pelo menos, alguns dos intervenientes, foi por demais evidente.

Em Julho de 2008, esta situação alarmou Portugal. Confrontos violentos entre «ciganos» e «negros» residentes no Bairro da Quinta da Fonte, na via pública, com uso de armas de fogo. Uma parte desses confrontos foi filmada e as imagens, que podem ser vistas no YouTube, são impressionantes.

Dediquei, então, algumas mensagens a este acontecimento. Nesta, salientei o silêncio daqueles que, então, denominei como «anti-racistas de serviço». Da parte deles, nem uma palavra sobre o assunto. Nem comunicados, nem manifestações, nada! Estrategicamente, calaram-se muito bem caladinhos. Até hoje.

Enfim, são um modelo de credibilidade, estes «anti-racistas» intermitentes.


2024-11-02

As prioridades da República


Há apenas 295 armas de electrochoque, vulgo tasers, para 14.000 agentes da PSP. O custo de cada taser ronda os € 2.000. Equipar todos os agentes da PSP com um taser custaria, pois, menos de € 28.000.000. Provavelmente, com € 10.000.000, ou nem tanto, já se conseguiria acudir satisfatoriamente às necessidades existentes. Uma quantia irrisória, considerando o total das despesas do Estado. Não obstante, a situação actual é a descrita. O número de tasers existentes corresponde a cerca de 2% do de agentes da PSP. Pior, é difícil.

Por aqui se vê, mais uma vez, que as prioridades da República andam, há muito, invertidas. Tem havido dinheiro para tudo o que é inútil: estádios de futebol, subsídios a quem se recusa a trabalhar, apoio financeiro a eventos que não interessam a ninguém e a associações, fundações e outras agremiações sem qualquer finalidade útil, criadas exclusivamente para sacar, através do Estado, dinheiro dos contribuintes, e por aí fora. Para aquilo que constitui o núcleo das funções soberanas do Estado, como é o caso da manutenção da segurança pública, ou não há dinheiro, ou, quando há, todos os cêntimos são contados. Consequência óbvia de se governar para a imagem e para satisfazer clientelas políticas e não em função do interesse nacional.

Que terão os responsáveis políticos que não dotaram a PSP de um número suficiente de tasers em devido tempo a dizer sobre isto? Parece-me que devem explicações à população. Num país decente, haveria jornalistas independentes e com coluna vertebral que lhas pediriam. E esses responsáveis políticos teriam de as dar, em vez de andarem, agora, a fingir que não é nada com eles e a chorar lágrimas de crocodilo pela morte de Odair Moniz, que muito provavelmente estaria vivo se o agente que sobre ele disparou estivesse munido de um taser.