2025-08-15

Imigração e criminalidade – O critério da composição da população prisional (2)


Além desta, existe uma outra razão para que os resultados da aplicação do critério da composição da população prisional, em função da nacionalidade dos reclusos, com a finalidade de analisar a relação entre imigração e criminalidade, devam ser encarados de forma cautelosa.

Para analisarmos essa razão com total independência em relação à da não coincidência das qualidades de imigrante e de estrangeiro, ficcionemos que tal coincidência se verifica, ou seja, que todos os estrangeiros presos, mas só eles, são imigrantes. Nem assim o critério da composição da população prisional, em função da nacionalidade dos reclusos, proporcionaria resultados rigorosos, ao menos num primeiro momento.

A actual vaga migratória iniciou-se recentemente, tendo atingido proporções dramáticas na última meia dúzia de anos. Apurou-se, já no decurso deste ano, que, no final de 2024, o número de imigrantes em Portugal era de 1,6 milhões. Sensivelmente quatro vezes mais que em 2017. Sendo certo que, antes do surgimento deste número, se estimava que o número de imigrantes fosse de pouco mais de um milhão. Uma divergência com esta dimensão (cerca de meio milhão de imigrantes) é bem demonstrativa do absoluto descontrolo do Estado Português relativamente à imigração. O Estado não sabe quantos estrangeiros se instalam em Portugal, quem são eles, onde estão e o que fazem. Se soubesse, não teria acordado, de repente, para a realidade agora descoberta.

Nestas circunstâncias, mesmo na hipótese de a população imigrante cometer, proporcionalmente, mais crimes que a população portuguesa, isso só teria repercussões sensíveis na composição da população prisional dentro de alguns anos e de forma progressiva.

As razões são óbvias.

Excepto na hipótese de ser aplicada prisão preventiva, entre o momento da prática do crime e o da entrada do autor deste num estabelecimento prisional, para cumprir a pena em que for condenado, decorrerão, normalmente, alguns anos.

Por outro lado, o número dos reclusos mais recentes dilui-se num universo de pessoas presas há mais tempo, só adquirindo peso estatístico significativo ao fim de alguns anos, que acrescem ao tempo que decorreu entre a prática do crime e a entrada do seu autor num estabelecimento prisional.

Imaginemos que, em determinado ano: 1) Deram entrada no sistema prisional 500 reclusos imigrantes e 500 reclusos não imigrantes; 2) No início desse ano, a população prisional era constituída exclusivamente por reclusos não imigrantes; 3) No final desse ano, a população prisional total era de 10.000 reclusos. Estatisticamente, esta população será constituída por 95% (correspondente a 9500 reclusos) de não imigrantes e 5% (correspondente aos 500 que entraram no último ano) de imigrantes.

Assim se mascara grosseiramente a realidade de, no último ano, 50% das pessoas que ingressaram no sistema prisional serem imigrantes, que é aquilo que verdadeiramente interessa quando se trata de saber se uma vaga migratória está a causar um aumento da criminalidade cometida por imigrantes. 

Mais, com base naqueles números, pode até aproveitar-se para ensaiar a «demonstração» de que os estudos que aqui referi permanecem actuais. Se, no final do ano em causa, a população imigrante for de 10% da população total do país, poderá dizer-se que a percentagem da população prisional imigrante é inferior à da população total imigrante. Para concluir, claro, que os imigrantes cometem menos crimes que os não imigrantes. Escondendo a realidade de, no último ano, 50% dos novos reclusos serem imigrantes, que é aquilo que realmente interessa para aferir se determinada vaga migratória está a causar um aumento da criminalidade.

2025-08-07

Imigração e criminalidade – O critério da composição da população prisional (1)


Concluí, aqui, pela necessidade de afinar os critérios de recolha e tratamento de dados a utilizar na análise da relação entre imigração e criminalidade. A esse propósito, critiquei o recurso ao critério da composição da população prisional, em função da nacionalidade dos reclusos, com a referida finalidade. Este critério não proporciona dados rigorosos, por diversas razões.

A primeira dessas razões é a não coincidência entre as qualidades de imigrante e de estrangeiro.

Nesta intervenção, o Director Nacional da Polícia Judiciária (DNPJ) salientou essa não coincidência, apontando diversas situações em que, no seu entendimento, reclusos estrangeiros não podem ser considerados imigrantes em Portugal. Tais situações seriam, segundo ele, as seguintes: organizações criminosas transnacionais, cibercrime, tráfico de estupefacientes (nomeadamente as «mulas» que transportam tais substâncias) e criminalidade contra o património que tenha conexões internacionais.

Mais recentemente, no passado mês de Fevereiro, ao ser ouvido, na Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a propósito dos dados sobre a criminalidade em Portugal, o DNPJ reiterou tal distinção entre as qualidades de estrangeiro e de imigrante, salientando que «as cadeias têm muita gente que é estrangeira, mas não é imigrante».

Estas duas intervenções públicas do DNPJ mereceram ampla divulgação mediática, sendo, ainda hoje, referências frequentes quando se fala sobre o tema da relação entre imigração e criminalidade. Porém, deturpam a realidade.

O DNPJ tem razão quando afirma que nem todos os estrangeiros presos podem ser qualificados como imigrantes. É óbvio que um estrangeiro não residente em Portugal que seja preso ao aqui entrar com produtos estupefacientes, ou que aqui permaneça durante um curto período para cometer um ou mais crimes e, em seguida, sair do território nacional, não é um imigrante. Não obstante, se for preso, figurará nas estatísticas da população prisional como estrangeiro.

Já a genérica exclusão, da qualificação como imigrante, dos membros de organizações criminosas transnacionais e de quem se dedique ao cibercrime, ao tráfico de estupefacientes fora das hipóteses que acima referi e à criminalidade contra o património que tenha conexões internacionais, carece de fundamento. Um estrangeiro que passe a residir em Portugal de forma estável será um imigrante ainda que a sua única actividade no nosso país seja a prática de crimes, sejam estes de que natureza forem. Também o será se residir em Portugal de forma estável e aqui exercer, simultaneamente, actividades lícitas e ilícitas, nomeadamente de natureza criminal.

Restringir a qualidade de imigrante aos estrangeiros que não cometam crimes, ou não cometam determinados tipos de crimes, carece, pois, de sentido. É imigrante quem, sendo nacional de outro país, passe a residir em Portugal de forma estável, independentemente de, aqui, trabalhar ou não, cometer crimes ou não.

É este o primeiro erro do DNPJ.

O seu segundo erro é o de apenas mencionar os estrangeiros que não são imigrantes, omitindo a hipótese inversa: a dos imigrantes que, entretanto, adquiriram a nacionalidade portuguesa, mantendo, ou não, a sua nacionalidade de origem e, eventualmente, outra ou outras.

Um estrangeiro que imigre para Portugal e, posteriormente, adquira a nacionalidade portuguesa, não deixa de ser imigrante. Sendo originário de outro país, será sempre um imigrante em Portugal, ainda que adquira a nacionalidade portuguesa. Deixa de ser considerado estrangeiro, mas não imigrante.

Concepção diversa de imigrante deixaria de descrever a realidade de forma útil, sendo, por isso, de afastar. No limite, se se atribuísse a nacionalidade portuguesa a todos os estrangeiros logo que estes entrassem em Portugal com a finalidade de aqui passarem a residir, não teríamos imigrantes. Estes perderiam essa qualidade no preciso momento da sua aquisição. Salta à vista o absurdo de tal entendimento.

Ou seja, o DNPJ destacou a discrepância entre os conceitos de estrangeiro e de imigrante no sentido de restringir o segundo face ao primeiro, mas omitiu a discrepância entre esses conceitos no sentido de ampliar o segundo face ao primeiro. Mais, o DNPJ não se limitou a omitir esta última discrepância, antes tendo negado expressamente a sua existência, ao afirmar que «um imigrante é estrangeiro, mas um estrangeiro não é necessariamente um imigrante». Isto é errado. Sendo verdade que um estrangeiro não é necessariamente um imigrante, não é menos verdade que um imigrante não é necessariamente um estrangeiro.

Na estatística da composição da população prisional, um imigrante que tenha adquirido a nacionalidade portuguesa contará como português. Por essa razão, a utilização da referida estatística como instrumento de análise da relação entre imigração e criminalidade será duplamente enganadora: uma pessoa que devia contar como imigrante, não só deixa de o ser, como, mais que isso, acaba por contar como não imigrante, em paridade com os portugueses realmente não imigrantes.

Devido aos dois erros que acabei de apontar, a argumentação apresentada pelo DNPJ sobre a relação entre imigração e criminalidade carece de validade. Ele procurou inculcar a ideia de que o recurso ao critério da composição da população prisional, em função da nacionalidade, para a determinação do número de imigrantes presos, peca necessariamente por excesso, ou seja, aponta sempre para um número de imigrantes presos superior ao real, mas não é assim. Poderá pecar, quer por excesso, quer por defeito. Daí que aquele critério seja inadequado para a formulação de um juízo rigoroso sobre a relação entre imigração e criminalidade em medida substancialmente maior que aquela que o DNPJ referiu. Apenas poderá fornecer uma imagem aproximada da realidade.

2025-07-10

Segurança dos reclusos


Foi ontem notícia a agressão de um recluso, por um outro, ocorrida no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo. A vítima encontrava-se deitada no chão, a apanhar sol, quando o agressor lhe desferiu um violentíssimo pontapé na cabeça, deixando-a inanimada. Não satisfeito com isso, o agressor urinou e cuspiu para cima da vítima. Nenhum dos inúmeros reclusos que assistiram à agressão esboçou o mínimo gesto no sentido de auxiliar a vítima.

Escusado será dizer que não se encontrava presente qualquer guarda prisional, espécie que vai escasseando cada vez mais no interior dos estabelecimentos prisionais. A situação só foi detectada pelos serviços prisionais posteriormente, através do visionamento das imagens captadas pelo sistema de videovigilância, imagens essas divulgadas na televisão.

Entretanto, a vítima teve de ser sujeita a uma intervenção cirúrgica. Atenta a violência da agressão, certamente ficou com lesões graves.

É este o dia-a-dia nas prisões portuguesas. Reclusos entregues a si próprios, sujeitos a serem assassinados, agredidos, sexualmente abusados, ameaçados, extorquidos, sem que o sistema lhes conceda a protecção a que eles têm direito. Há relatos de familiares de reclusos que, a troco da «protecção» destes, pagam a grupos organizados de companheiros de prisão. É a lei da selva.

Que uma pessoa que ingressa num estabelecimento prisional tem o direito de exigir, ao Estado que o priva da liberdade, que garanta a sua segurança no interior daquele estabelecimento, constitui uma evidência. Essa pessoa não pode ser, pura e simplesmente, encarcerada e abandonada à sua sorte, num ambiente hostil, sujeita à lei do mais forte. Cada situação de agressão como a descrita constitui uma violação, pelo Estado, do seu dever de protecção do recluso agredido.

Noutra perspectiva, um ambiente prisional como aquele que descrevi é a antítese daquele que é necessário para a reinserção social dos reclusos. O instinto de sobrevivência destes impeli-los-á, não a ressocializarem-se, mas sim a procurarem integrar-se num grupo criminoso que, dentro da prisão, lhes garanta a protecção que o Estado lhes recusa. Organizações criminosas como o brasileiro PCC, que se encontra a recrutar reclusos nas prisões portuguesas, agradecem.

Ao permitir que isto aconteça, o Estado abdica vergonhosamente do objectivo de ressocializar quem ingressa no seu sistema prisional. As enfáticas proclamações, no Código Penal e no discurso político, da ressocialização como fim da pena, nomeadamente da pena de prisão, estatelam-se ingloriamente contra a sórdida realidade das prisões portuguesas.

Em suma, também em matéria de garantia da segurança dos reclusos, o estado das prisões portuguesas é, há muito tempo, de calamidade.

2025-07-08

Fuga da prisão de Alcoentre


Lá fugiram mais dois reclusos, desta vez do Estabelecimento Prisional de Alcoentre. Cumpriam penas por tráfico de estupefacientes e roubo. Aconteceu ontem, ao final da tarde. À semelhança destes, saltaram o muro e foram às vidas deles, sem mais. Para tanto, bastou-lhes uma corda, que terão arranjado sabe-se lá como. As circunstâncias conhecidas são as habituais: uma torre de vigia inactiva e um sistema de videovigilância que não funcionou. Só por ocasião da contagem dos reclusos se verificou que faltavam dois.

Novamente se constata que o sistema prisional português se encontra num estado miserável. Além de frequentes, as fugas de reclusos nem sequer requerem um mínimo de sofisticação. Basta uma corda, ou uma escada, e não há muro que os detenha, nem guarda prisional que os detecte. 

Recordo o que, a este propósito, aqui escrevi anteriormente:






2025-07-03

A lei ao serviço da esquerda


«Compreendendo e aplicando a mensagem de Gramsci, as esquerdas abandonaram os assaltos violentos ao poder, o terror das revoluções francesa, russa ou chinesa, e concentraram-se na amálgama e na desqualificação do adversário, ou mais propriamente do inimigo, esconjurando-o com apelo a velhas imagens.

É a construção de uma narrativa que tem vindo a colonizar e contaminar o centro e que pinta o adversário – “a extrema-direita” – como um mal absoluto, um perigo para a Democracia (…). Não por ser violento, mas pelas ideias que tem. (…)

Como outrora a direita reacionária, a Esquerda, agindo dentro de modelos de democracia constitucional, concentra-se em avançar legislação que induza as “boas práticas morais” e em policiar as ideias que as ponham em causa, proibindo determinadas ideologias e princípios, apresentados como “perigosos para o regime democrático”; regime do qual, com o apoio dos grandes media e da “imprensa de referência”, passou a arrogar-se exclusivo representante e porta-voz.»


JAIME NOGUEIRA PINTO, De que falamos quando falamos de Direita?, Bertrand Editora, Lisboa – 2024, páginas 130-131.


2025-06-25

O uso do discurso do ódio como arma ideológica (a liberdade de expressão termina onde começam as sensações do outro).


«O tema do “discurso de ódio” tornou-se, para quem consome os média dominantes e acompanha os seus representantes, uma presença quase diária no espaço público português e, de forma mais ampla, ocidental. Fala-se constantemente da ascensão da extrema-direita, do perigo dos movimentos fascistas, do ressurgimento da intolerância. No entanto, há um paradoxo pouco discutido: numa sociedade supostamente tão polarizada, só um dos polos parece ser acusado sistematicamente de propagar ódio, enquanto o outro é retratado como vítima permanente.

Verifica-se uma assimetria flagrante. A mesma expressão, se proferida por alguém de esquerda, é muitas vezes relativizada ou até normalizada. Mas, se for dita por alguém que não se revê nesse campo ideológico, mesmo que se trate de um democrata liberal ou conservador, é imediatamente catalogada como perigosa, intolerável ou odiosa. O ódio deixou de ser uma questão de conteúdo ou intenção. Tornou-se uma arma política, aplicada de forma seletiva conforme a orientação ideológica do emissor. Esta prática tem história. Talvez o seu exemplo mais claro esteja na obra de Herbert Marcuse, como veremos mais adiante.

Um exemplo acabado de como o progressismo e o socialismo ditos democráticos operam hoje com uma verdadeira polícia ideológica institucional percebe-se na forma como o conceito de “discurso de ódio” é mobilizado para calar e criminalizar o adversário, baseando-se, em muitos casos, em categorias altamente subjetivas. Invocar o “discurso de ódio” tornou-se a chave para censurar, silenciar e desqualificar o outro. Mas o que é, afinal, esse discurso? Numa das suas definições mais comuns, depende da perceção de alguém (designado como “vítima”) e incide sobretudo sobre categorias como “cor, sexo, género, política e orientação sexual”.

A Inglaterra foi pioneira na tipificação legal deste fenómeno. Vejamos a versão aparentemente menos grave, ou seja, sem consequências criminais diretas, mas devastadora por ficar associada a registos policiais aos quais empregadores podem ter acesso, especialmente em áreas sensíveis como educação, segurança ou funções públicas.

A designação desta versão menor de crime é: “crimes de ódio e incidentes de ódio não criminais”. Uma piada, um meme, uma opinião, qualquer um destes gestos pode transformar um cidadão num “cadastrado” por ódio.

Segundo a definição do sistema jurídico britânico, um incidente de ódio não criminal (NCHI) é: “Qualquer ato que seja percecionado pela vítima ou por qualquer outra pessoa como motivado por hostilidade ou preconceito com base em: raça ou raça percecionada, religião ou religião percecionada, orientação sexual ou orientação sexual percecionada, deficiência ou deficiência percecionada, identidade transgénero (real ou percecionada).”

E quem decide o que constitui esse tipo de crime de ódio?

“As características pessoais acima são aquelas monitorizadas pelo governo central e estão previstas no sistema de justiça criminal. A polícia deve também registar e sinalizar características não monitorizadas como crimes de ódio, sempre que houver perceção de hostilidade.”

Já não é necessária qualquer condenação judicial. Basta uma queixa e a perceção subjetiva de ofensa. É legítimo afirmar que estamos perante um ambiente próximo da mentalidade política totalitária, onde o pensamento divergente é punido não pelos seus atos, mas pelo que ideologicamente representa.

O caso de Harry Miller é emblemático. Um ex-agente da polícia britânica que publicou tuites satíricos sobre ideologia de género foi alvo de investigação por parte da polícia de Humberside, que classificou os seus comentários como “incidente de ódio não criminal”. Miller foi contactado por um agente que lhe disse: “Precisamos de verificar o seu pensamento.” O caso chegou ao Supremo Tribunal, que considerou a ação policial uma violação da liberdade de expressão. No entanto, a prática institucional mantém-se, com regras reformuladas.

Em 2023, a legislação foi revista por se ter tornado arbitrária. No entanto, o essencial permanece, apesar de o Supremo Tribunal britânico ter reconhecido que os registos de NCHI violavam o direito à liberdade de expressão (artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos), recomendando a sua abolição ou restrição severa.

A definição de “discurso de ódio” no contexto da ideologia progressista não é apenas jurídica. É, acima de tudo, política, moral e identitária. O conceito generalizado é assim apresentando: “Discurso de ódio é qualquer expressão verbal, escrita ou simbólica que ataque, insulte, degrade ou ameace uma pessoa ou grupo com base em características como raça, género, orientação sexual, religião, deficiência ou identidade de género”, o que é intencionalmente vago e subjetivo. Esta imprecisão permite que quem detém o poder o aplique de forma arbitrária. O que conta como “ataque” ou “insulto” depende da perceção da alegada vítima, não de qualquer análise objetiva. A intenção do autor é irrelevante: basta que alguém se sinta ofendido para que se configure um “discurso de ódio”.

Na prática, o progressismo contemporâneo tende a expandir esse conceito de forma subjetiva, ideologicamente orientada e culturalmente repressiva. O plano jurídico serve como instrumento de criminalização do dissenso. Para esta visão, o discurso de ódio é tudo aquilo que contraria a narrativa emocional dominante sobre identidade, desigualdade ou inclusão. Tornou-se um conceito politicamente útil para desqualificar o adversário, dispensando o debate. Trata-se, sobretudo, de uma ferramenta de engenharia cultural, e não apenas de uma categoria legal.

Hoje, piadas podem ser consideradas discurso racista. Dizer que “o sexo biológico é imutável” pode ser rotulado de transfobia. Criticar o ativismo antirracista como forma de divisão social, de racismo. Defender modelos familiares tradicionais, de homofobia. Citar estatísticas sobre criminalidade associada a certos grupos, de racismo estrutural.

A censura, assim, é justificada como empatia. A dissidência é confundida com ódio. E aceita-se a legalização da punição simbólica: cancelamento, bloqueio de contas, remoção de conteúdos, registos policiais por “incidentes de ódio”.

O conceito de “ódio” expande-se progressivamente até englobar grande parte da oposição às ideias dominantes. Passa a incluir: Discordância sobre ideias identitárias (como críticas à ideologia de género ou à teoria racial crítica); Humor ou ironia considerados “insensíveis”; Afirmações políticas, científicas ou filosóficas que contradigam narrativas dominantes; Opiniões conservadoras ou religiosas, se consideradas “excludentes”.

A crítica e a oposição que não se enquadrem no sistema progressista são rotuladas como formas de opressão.

Uma das artimanhas mais eficazes é a equivalência entre expressão e ação. Dizer “dou-te um murro” passa a equivaler, legal e simbolicamente, a efetivamente dar o murro. A linguagem, nesta perspetiva, não é apenas expressão, mas ação social direta. Logo, palavras tornam-se formas de violência estrutural. Por isso, limitar certas palavras ou ideias é apresentado como proteção das vítimas, e não como censura.

Na tradição liberal clássica (e não no liberalismo económico-progressista atual), a liberdade de expressão era um direito negativo. O indivíduo era livre para pensar, dizer e discutir ideias, inclusive controversas, sem interferência do Estado, desde que não incitasse à violência ou ao crime.

Na visão progressista contemporânea, a liberdade de expressão é subordinada à proteção emocional de grupos considerados vulneráveis. A linguagem deixa de ser instrumento de debate racional e passa a ser um ato de poder, ou mesmo de violência. Assim, críticas, ironias ou discordâncias em relação a certas ideologias identitárias são rapidamente classificadas como discurso de ódio, não por causarem dano real, mas por ofenderem a sensibilidade subjetiva da vítima.

O discurso já não serve para compreender a realidade, mas para preservar um clima afetivo confortável, mesmo que isso implique censura e repressão intelectual. Esta operação permite impor um pensamento único e uma única forma aceitável de estar e pensar, sob a justificação moral de se estar a proteger os mais fracos e a impor níveis civilizacionais mínimos.

No seu célebre ensaio A Tolerância Repressiva (1965), o filósofo alemão Herbert Marcuse, figura central da Escola de Frankfurt, defende uma conceção assimétrica da liberdade de expressão. Segundo Marcuse, essa liberdade não deve ser universal, mas diferenciada conforme a posição ideológica de quem fala. O que se diz importa menos do que quem o diz e de onde fala. Assim, discursos oriundos da direita devem ser reprimidos, mesmo que pacíficos, enquanto discursos agressivos vindos da esquerda devem ser tolerados ou incentivados.

A lógica é clara: numa sociedade estruturalmente opressora, ou seja, capitalista, patriarcal, racista, qualquer tolerância para com as ideias da direita apenas reforça a dominação vigente. Em contrapartida, permitir (ou até promover) discursos da esquerda, mesmo hostis, contribui para a emancipação dos oprimidos. Declarações como “ódio à burguesia”, “ódio à polícia” ou “ódio ao homem branco” não só são toleradas, como vistas como expressões legítimas de resistência política.

Um caso elucidativo foi o da plataforma Twitter (antes da aquisição por Elon Musk), onde utilizadores conservadores, religiosos ou críticos das políticas identitárias viam as suas contas suspensas por “violações de discurso de ódio”, enquanto frases como “morte ao homem branco” ou “comer os ricos” circulavam livremente, justificadas como formas legítimas de crítica social. Esta disparidade foi denunciada por vários investigadores e jornalistas como um sintoma de enviesamento ideológico nas políticas de moderação.

Outro exemplo recente pode ser encontrado nas universidades britânicas, onde oradores convidados com posições céticas face à teoria de género ou ao multiculturalismo têm sido frequentemente desconvocados sob acusações de incitamento ao ódio. Entretanto, intervenções hostis à tradição ocidental, a Israel ou ao cristianismo são muitas vezes não só permitidas, mas promovidas em nome da diversidade e da justiça social. A liberdade de expressão tornou-se condicional, não em função do conteúdo do discurso, mas da identidade ideológica de quem o profere.

Pelo contrário, discursos que defendam o liberalismo clássico, o conservadorismo, o nacionalismo ou o anticomunismo são automaticamente entendidos como expressões de opressão, e não como posições legítimas num debate plural. Para Marcuse, a defesa da liberdade de expressão igual para todos, pilar da tradição liberal, não passa de uma ilusão criada para preservar o status quo.

Como ele próprio escreveu: “A tolerância para com a direita tende a reforçar a dominação existente; a tolerância para com a esquerda tende a enfraquecê-la.”

Este pensamento, que nos anos 60 parecia marginal, foi lentamente absorvido pelas instituições culturais, académicas e mediáticas do Ocidente. Hoje, nas chamadas sociedades liberais, Marcuse venceu. O discurso de ódio já não se define por critérios objetivos de forma ou conteúdo, mas sim pela orientação política e pelo lugar simbólico de quem fala.

O resultado é um sistema discursivo profundamente iníquo. A linguagem já não é avaliada pela sua racionalidade, pelo seu conteúdo factual ou pelo seu potencial ofensivo. É medida antes pela sua utilidade estratégica na luta ideológica e identitária. Aceitar esta assimetria na definição de discurso de ódio implica, na prática, aceitar que só a esquerda é democrática, justa e moralmente autorizada a falar em nome da liberdade e dos direitos humanos.»


JOÃO MAURÍCIO BRÁS, jornal Nascer do Sol, 25.06.2025.


2025-06-15

Anátema


«Mais complexo, porque mais subtil, é o problema a que somos conduzidos pela anatematização do interlocutor.

O fenómeno tem início no quadro político e inscreve-se no quadro do crescimento dos movimentos radicais de esquerda. Conforme explica Alexandre Franco de Sá, se o inimigo político de que falava Schmitt era um hostis e não um inimicus, não precisando de ser “moralmente mau, nem esteticamente feio” (…), para o populismo de esquerda conceptualizado por Mouffe, a única posição moralmente aceitável é uma posição de esquerda, podendo a direita existir na medida em que seja uma “direita de esquerda, no sentido de uma direita legitimada, tolerada e reconhecida pela esquerda nos termos da própria esquerda” (…). Pressupõe-se uma superioridade moral e intelectual da esquerda que, no fundo, dita os requisitos de legitimação para se participar no debate público, condenando todos os outros, que não aceitem aqueles termos, à indigência, pela demonização e a anatematização. Ora, o jornalismo, fruto da hegemonia cultural a que se assiste, na senda da proposta gramsciana, acaba por ser veículo privilegiado desta estratégia, caricaturando os oponentes e silenciando-os, pelo não cumprimento das regras do contraditório.

Este fenómeno, que começou nos media mainstream, acabou por extravasá-lo, contaminando o mundo digital e determinando uma política de cancelamento, em nome de um politicamente correto que hegemonicamente se cultiva.

A anatematização a que se alude pode, na verdade, configurar-se como um comportamento ilícito. Dependendo dos termos da diabolização, poderemos deparar-nos com a violação do direito à honra; noutras situações, pelo esvaziamento conceptual dos termos utilizados, tal lesão não se verificará, restando uma eventual lesão do direito à liberdade de expressão e de participação cívica. Em casos mais extremos, que, ultrapassando o domínio jornalístico ou das redes sociais, fazem com que o sujeito se confronte com comportamentos discriminatórios ou seja vítima da chamada cultura do cancelamento (v.g., as hipóteses em que um sujeito é afastado do exercício da sua atividade profissional porque, com base em dados fundados, profere uma opinião legítima, embora contrária ao pensamento hegemónico), podemos aventar a eventual violação de outros direitos, como o direito à igualdade ou inclusivamente o direito à liberdade académica ou o direito à liberdade de exercício de uma atividade profissional.

Consoante as especificidades do caso, esta ilicitude pode alicerçar uma pretensão indemnizatória (para o que será necessário verificar-se culpa, provarem-se os danos e resolver-se o problema da imputação objetiva), do mesmo modo que pode justificar que se lance mão de determinadas providências tendentes a atenuar ou a evitar a lesão.

Do ponto de vista coletivo, gera, como consequência, a radicalização do discurso e a impossibilidade de um verdadeiro diálogo, constituindo um perigo para a própria sociedade democrática, sem que, contudo, tal seja suficiente para agir no plano do direito privado.

Refira-se, in fine, que a estratégia de demonização, de antagonismo silenciador e anatematizante extrapola o contexto político, contaminando-se a outros domínios da vida societária, de tal sorte que se pode já diagnosticar uma grave patologia no mundo hodierno.»


MAFALDA MIRANDA BARBOSA, A Ilicitude do Anátema, Revista de Direito da Responsabilidade, Ano 4 – 2022, páginas 47-48.


2025-05-26

Prisão perpétua: será desta?


Terramoto político na sequência das eleições legislativas antecipadas no passado dia 18 de Maio, como nunca se tinha visto em quase de 50 anos de democracia (não conto o PREC como tempo de democracia, por razões óbvias, ao menos para mim). Festa no Chega, toque de sinos a rebate no PS e AD (PSD + CDS) aparentemente sem saber o que fazer com a sua vitória, concretamente se será melhor cair para o lado esquerdo ou para o lado direito.

Foi tão violento o abanão, que a soma dos deputados da direita (AD + Chega + IL) excede a maioria qualificada requerida para rever a Constituição. Apressou-se a IL a colocar o tema da revisão constitucional na agenda política, visando expurgar a Constituição dos vestígios do PREC que subsistem. O Chega aderiu imediatamente à ideia, pois sonha com essa revisão desde a sua fundação. A AD, a quem a ideia de rever a Constituição parece entusiasmar tanto quanto a de fazer uma colonoscopia sem sedação, vai fazendo de morta.

Neste contexto, reentrou na agenda política, com vigor redobrado, o tema da prisão perpétua. Propõe o Chega a eliminação da proibição da pena de prisão perpétua, constante do n.º 1 do artigo 30.º da Constituição. Eliminação essa que abriria caminho à alteração do Código Penal no sentido de estabelecer a possibilidade de aplicar a pena de prisão perpétua a crimes especialmente graves. Alteração essa que, por seu turno, imporia que todo o sistema de sanções penais fosse repensado.

Pelas razões que aqui referi, a pena de prisão perpétua constitui uma ferramenta indispensável para a credibilidade de um sistema de justiça penal. Sem ela, é impossível proteger a sociedade da criminalidade mais grave, punindo adequadamente quem a ela se dedica e, por essa via, dissuadindo quem a ela pretenda dedicar-se. Sintomaticamente, a pena de prisão perpétua está consagrada em quase todos os sistemas penais europeus.

Mais, num mundo globalizado como aquele em que vivemos actualmente, o facto de Portugal ser um dos raros países europeus onde não é admissível a pena de prisão perpétua (o limite máximo da pena de prisão é de apenas 25 anos) tem um evidente efeito de chamada do que há de pior, em todo o mundo, em matéria de criminalidade. Um país, como Portugal, onde exista a garantia de não aplicabilidade de prisão perpétua ou, sequer, de penas de prisão superiores a 25 anos, constitui um verdadeiro santuário para a grande criminalidade.

2025-04-30

Substituição


Em Lisboa, Setúbal e Algarve, quase metade dos recém-nascidos tem mãe estrangeira.

Não fosse o facilitismo com que se tem atribuído a nacionalidade portuguesa a imigrantes nos anos mais recentes, certamente já seria a maioria.

Está, assim, em curso uma catástrofe para os portugueses, a serem rapidamente substituídos neste território que, muito em breve, deixará de ser seu.

Porém, para muitos, isto não interessa nada. Aquilo que interessa são os 100 dias de Trump, as 10 frases que marcaram esses 100 dias, ou se Trump disse que quer ser papa. Sem esquecer a tarefa patriótica de partilhar diariamente um meme anti-Trump no Facebook, claro está. 

Se calhar, os portugueses têm precisamente aquilo que merecem.

2025-04-14

Imigração e criminalidade – Afinar critérios


Desenvolvendo uma das ideias que aqui deixei, é possível distinguir três tipos de abordagem da questão de saber se é possível estabelecer uma relação entre imigração e criminalidade.

Os mais radicais consideram que a questão nem sequer pode ser suscitada, porquanto esse simples facto constitui uma manifestação de racismo e/ou xenofobia, que mais não visa que apelar ao ódio contra minorias. Para os partidários desta postura, a referida questão passa a ser mais um «tema proibido». Ai de quem se atreva, sequer, a suscitá-la!

Um segundo grupo admite a colocação da questão em abstracto. Porém, dá-a imediatamente por resolvida mediante a invocação de estudos que demonstrariam que a imigração, não só não provoca um aumento da criminalidade, como, paradoxalmente, até a diminui, atenta a primazia que a generalidade dos imigrantes daria ao seu desejo de integração na sociedade de acolhimento. No fundo, parece que, para quem assim se posiciona, a descrita relação entre imigração e criminalidade ficou, graças aos referidos estudos, definitiva e irrefutavelmente demonstrada para todo o sempre, sendo, assim, descabido monitorizar os actuais fluxos migratórios na perspectiva da sua relação com a criminalidade. O facto de se tratar de estudos antigos, que tiveram por objecto fenómenos migratórios completamente diferentes daquele que se abateu sobre a Europa nos anos mais recentes, não os impressiona. Encontraram uma «verdade» que lhes agrada e recusam-se terminantemente a questioná-la com base em factos novos, que abalem as suas confortáveis certezas e proporcionem argumentos que possam contrariar as suas inabaláveis convicções.

Finalmente, há quem, mais moderadamente, admita a colocação da questão em concreto, perante a vaga de imigração que actualmente atinge a generalidade dos países da Europa ocidental. Reconhecendo a singularidade desta vaga migratória, concedem que a mesma mereça uma análise diferenciada. Porém, procuram resolver a questão com apelo a argumentação enganosa. É o caso de quem procura demonstrar a impossibilidade de estabelecimento de uma relação entre a imigração e o aumento da criminalidade apelando à actual composição da população prisional.

Há que fugir deste espartilho e procurar a verdade. O que impõe, logo à partida, afinar os critérios de recolha e tratamento de dados. Aqueles que pretendem continuar a impedir uma discussão séria sobre a relação entre imigração e criminalidade têm feito tudo aquilo que podem no sentido de ocultar os dados que realmente interessam, de baralhar o mais possível os escassos dados que são disponibilizados e de semear a confusão através da divulgação, como relevantes, de dados que, na realidade, o não são. Importa analisar e desmontar toda essa narrativa.