2024-10-21

Prisões: por que ponta pegar?


O sistema prisional de um país não passa de um elemento, fundamental é certo, do sistema de justiça penal. Deve, por isso, ser configurado de forma a adequar-se ao cumprimento dos fins que a lei penal aponta à pena de prisão.

Por aquilo que aqui afirmei, o Direito Penal português precisa de ser repensado, se se quiser que ele volte a ser levado a sério. O que, a acontecer, teria de se repercutir sobre a configuração do sistema prisional.

Porém, não podemos estar à espera disso, desde logo porque é altamente improvável que haja lucidez, saber, vontade e coragem para empreender tal tarefa. O estado deplorável a que o poder político deixou o sistema prisional chegar impõe urgência na tomada de medidas «mínimas» que evitem que este entre em ruptura.

Por onde pegar, então, neste imenso problema?

Por aquilo que se mostre necessário em qualquer quadro jurídico-penal. A saber, aumentar a capacidade do sistema prisional, reforçar a segurança das prisões e melhorar substancialmente as condições em que os reclusos cumprem as suas penas. Ou seja, construir novas prisões, adequadas às actuais exigências, e reabilitar as existentes. E com urgência. Para mais quando o encerramento do Estabelecimento Prisional de Lisboa, que é o que alberga o maior número de reclusos em Portugal, está para breve.

Já não existe margem para mascarar o problema com os truques habituais. A evolução da criminalidade no nosso país não se compadece com a reiteração da concessão de medidas de clemência, ou com sucessivas alterações legislativas de pendor laxista, entenda-se, cada uma mais laxista que a anterior. Laxismo sobre laxismo só poderá conduzir à falência do Estado enquanto garante da segurança pública e protector dos mais fracos contra a violência dos mais fortes. Quando o Estado recua no combate ao crime, é este que avança, ocupando o território por aquele deixado livre. Em vez disso, impõe-se reafirmar a autoridade do Estado, com a maior firmeza possível.


2024-10-20

Eloquentes omissões


Se há omissões plenas de significado, são aquelas que se verificam perante situações de evidente emergência. Se quem tem o dever de zelar pelo bom funcionamento de determinada realidade nada fizer no sentido de resolver situações dessa natureza que nesta ocorram, estará a demonstrar que não reconhece a sua existência ou, ao menos, a sua importância. A menos que seja tão louco ou incompetente que, reconhecendo embora tais existência e importância, confie que o problema se resolverá por si próprio. Ou tão destituído de escrúpulos que, por ocupar o cargo que lhe impõe aquele dever de zelo de forma meramente temporária, funde a sua inércia na expectativa de que, quando a coisa estoirar, já estará noutras paragens.

Pois bem, há cerca de 50 anos que o poder político omite ostensivamente o seu dever de cuidar do sistema prisional português, não obstante a magnitude dos problemas que este vem apresentando. Como aqui e aqui afirmei, o poder político tem-se limitado a ir gerindo a crise, empurrando os problemas com a barriga. Quando, por efeito dessa omissão das medidas que se impõem, a pressão dentro do sistema é de tal ordem que o perigo de explosão se torna iminente, o poder político inventa um pretexto para conceder uma amnistia e um perdão de penas, assumidos ou encapotados. Uma vez aliviada a pressão por meio destes expedientes, o poder político não volta a pensar no assunto até que a pressão volte a subir a níveis demasiadamente perigosos, o que, em princípio, só ocorrerá dali a alguns anos, quando a batata quente já estiver nas mãos de outros. Nunca o poder político conseguiu fazer melhor que isto.

Esta omissão é inadmissível, vergonhosa e imperdoável.

Se, diante de um incêndio, um corpo de bombeiros, em vez de procurar extingui-lo, cruzasse os braços e deixasse arder, seria crucificado. O mesmo aconteceria a um nadador-salvador que, diante de um banhista em risco de afogamento, nada fizesse.

Já os políticos que, no último meio século, deixaram os problemas do sistema prisional avolumar-se diante dos seus olhos sem esboçarem qualquer tentativa séria e consistente de os resolver e, muitas vezes, ainda se atrevendo a debitar discursos completamente desfasados da realidade para tentarem esconder a sua incompetência e o seu desleixo, como o de que a causa dos problemas do sistema prisional é os juízes decretarem demasiadas prisões preventivas, proferirem demasiadas condenações em penas de prisão efectiva e estenderem estas por tempo excessivo, nunca foram chamados a responder (politicamente, claro) pelos seus erros e omissões. Seria justo e, seguramente, pedagógico que o fossem, mas é claro que isso nunca irá acontecer. Este tipo de escrutínio não faz parte dos nossos hábitos.

Da descrita omissão, que se traduziu num verdadeiro «deixa arder», ou «deixa afogar», aquilo que resulta, com toda a clareza, é uma absoluta incapacidade e falta de vontade política para resolver os problemas do sistema prisional por parte de quem governou o nosso país no último meio século. Trata-se, pois, de uma omissão verdadeiramente eloquente.


2024-10-13

Tomada de posse do novo Procurador-Geral da República


O novo Procurador-Geral da República, Amadeu Guerra, tomou ontem posse.

Congratulei-me aqui com a sua escolha.

Registo agora a sua tomada de posse, neste blog que também é um caderno de memórias sobre os factos que considero mais relevantes no sector da justiça.

O que desejo que o novo PGR faça?

Não propriamente que «ponha ordem na casa», pois não há razão para concluir que a sua antecessora, Lucília Gago, não tenha mantido a casa na devida ordem. Pelo contrário, mesmo nos períodos mais complicados do seu mandato, Lucília Gago nunca vacilou. Aguentou firme todas as pressões e, quando entendeu que era a hora de prestar contas ao país, fê-lo de forma que considero irrepreensível. Saiu com a dignidade de quem cumpriu o seu dever.

Aquilo que espero do novo PGR é, sim, o que geralmente se espera de quem vem de novo. Energia renovada e um novo olhar sobre velhos problemas que conviria resolver.

O maior desses problemas é o dos «monstros processuais penais» que o Ministério Público cria devido a más práticas que nele se enquistaram. «Monstros processuais penais» esses que se arrastam na fase de inquérito durante anos a fio e que, em consequência disso, uma vez deduzida a acusação, têm como destino quase certo a prescrição do procedimento criminal, pelo menos em relação a uma parte dos crimes imputados, pois o prazo que resta não chega para a eventual instrução, o julgamento e os inúmeros recursos cuja interposição é mais que certa. Ficando a justiça do caso concreto por fazer e a credibilidade do sistema de justiça pelas ruas da amargura.

Aqui, no meu longínquo Monte, fico a torcer por que o novo PGR tenha o maior sucesso.

 

2024-10-07

3 pelo preço de 1


Este triplo homicídio chocou, naturalmente, os portugueses. Mesmo num contexto, como o actual, em que a criminalidade violenta se agrava de dia para dia no nosso país, a brutalidade deste evento sobressai.

Não me pronuncio sobre este caso concreto, por duas razões. Desde logo porque, acerca dele, apenas conheço o que tem sido divulgado nos meios de comunicação social, ou seja, quase nada. Depois, porque estou impedido (e bem), por dever de ofício, de me pronunciar sobre processos judiciais que não me estejam atribuídos. E, mesmo em relação aos que o estejam, apenas posso fazê-lo (e bem também) em cumprimento dos meus deveres funcionais e na sede própria, ou seja, no processo.

Pronunciar-me-ei, sim, a propósito da referida situação concreta, sobre uma das questões jurídico-penais que situações dessa natureza suscitam: a persistência do limite de 25 anos de prisão na hipótese de cúmulo jurídico de várias penas (artigos 41.º, n.ºs 2 e 3, e 77.º, n.º 2, do Código Penal), coincidente com o limite máximo da moldura penal aplicável a um único crime de homicídio qualificado (artigo 132.º, n.º 1, do mesmo código).

Os artigos 41.º, n.ºs 2 e 3, e 77.º, n.º 2, constituem, porventura, as normas mais irracionais, iníquas e aberrantes do nosso Código Penal. Atento o seu papel estruturante do nosso sistema punitivo, elas constituem, só por si, uma das razões fundamentais por que aqui afirmei que o nosso sistema jurídico-penal não é para levar a sério.

Graças a elas, quem matar mais de uma pessoa numa mesma ocasião tem direito a bónus: o essencial da sua punição será pela prática de apenas um dos crimes, que, se o homicídio for qualificado, poderá esgotar imediatamente o «plafond» dos 25 anos de prisão. Os restantes crimes pouco ou nada acrescentarão a essa pena, pois, dos 25 anos de prisão, não pode, em caso algum, passar-se.

Portanto, cometido o primeiro homicídio, o assassino pouco ou nada terá a perder se matar mais pessoas. O que constituirá um forte incentivo para ele aproveitar a ocasião e fazer o gosto ao dedo: mais homicídio, menos homicídio, pouca ou nenhuma diferença fará. De uma pena de 25 anos de prisão (que nem por sombras equivale a 25 anos de efectiva reclusão, diga-se) não passará.

Pior, o referido bónus da impunidade dos homicídios subsequentes não abrange apenas aqueles que forem cometidos na mesma ocasião. Por força dos artigos 41.º, n.ºs 2 e 3, e 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, o assassino poderá continuar a matar até ser preso sem qualquer problema, pois todas as penas parcelares daí resultantes serão englobadas no cúmulo jurídico de penas a efectuar, que não poderá exceder os referidos 25 anos de prisão. Mate ele mais uma, dez, cem ou mil pessoas. O que, além do mais, constitui um acrescido factor de risco para os elementos das forças de segurança que tiverem de o enfrentar tendo em vista a sua captura.

Este regime é absurdo. Por todas as razões e em toda a medida do possível, quem comete um crime, por mais grave que seja, tem de sentir que ainda terá algo substancial a perder se cometer mais crimes antes de ser condenado. Isso só se consegue se a lei estabelecer uma diferença significativa entre o limite máximo da moldura penal aplicável ao crime mais grave previsto na lei penal e o limite máximo da pena de prisão na hipótese de o agente cometer mais de um crime.

Concretamente, sendo de 25 anos de prisão o limite máximo da moldura penal aplicável ao crime de homicídio qualificado, o limite máximo da pena de prisão na hipótese de o agente cometer mais de um crime não deveria ser inferior a 35 ou a 40 anos de prisão.

Isto, claro, enquanto não houver coragem para alterar a Constituição e, subsequentemente, o Código Penal, no sentido da consagração da pena de prisão perpétua, à semelhança de numerosos países que, embora com regimes democráticos e respeitadores dos direitos humanos, não confundem democracia com laxismo em matéria de combate ao crime e, em matéria de direitos humanos, demonstram mais respeito pelos das vítimas de crimes que Portugal.