2024-10-28

Armas não letais


A infeliz situação que levou à morte de Odair Moniz já serviu para tudo aquilo que não devia ter servido: motins e muito aproveitamento político. Em vez disso, deveria suscitar uma reflexão séria sobre as formas de minorar o risco de repetição de eventos dessa natureza.

Indo ao essencial e indiscutido: um agente da PSP efectuou um disparo, com a sua arma de serviço, na direcção de um homem que enfrentava, atingindo-o mortalmente. As circunstâncias exactas em que tal ocorreu serão oportunamente apuradas em sede própria.

Facto fundamental: uso de uma arma de fogo por um agente da PSP contra uma pessoa, com o propósito de a neutralizar. Terá de ser assim?

Não.

Existindo uma panóplia de armas não letais, é inexplicável que a única arma de que a generalidade dos agentes de autoridade é portadora seja de fogo. O porte de armas não letais permitiria uma maior eficácia da sua actuação com menos danos, para si próprios e para terceiros.

A arma de fogo é, obviamente, indispensável, para ser usada em situações extremas. Contudo, se também estivessem munidos de uma ou mais armas não letais, os agentes de autoridade estariam mais aptos para enfrentarem situações em que se imponha o uso da força mas o recurso a uma arma de fogo possa ser excessivo. Por exemplo, para enfrentarem indivíduos desarmados que pretendam agredi-los fisicamente, situação que, infelizmente, ocorre amiúde.

No fundo, para que os agentes de autoridade não se vejam perante o dilema do «tudo ou nada», acabando, na generalidade dos casos, por se ficar pelo «nada», deixando de cumprir as suas funções e pondo a sua vida e a sua integridade física em risco. Quando, excepcionalmente, optam pelo «tudo», é a desgraça que se vê.


2024-10-26

Dúvida


Interrogo-me sobre se, após uma semana como aquela que se viveu na zona da Grande Lisboa, os políticos, os comentadores e os meios de comunicação social «mainstream» terão a lata de continuar a tentar convencer-nos de que Portugal é um dos países mais seguros do mundo.

Aguardemos.


2024-10-25

Prisões: o preço a pagar


É claro que isto terá enormes custos, materiais e políticos.

Contará, seguramente, com a oposição daqueles que, por cegueira ideológica ou interesses mais prosaicos, rejeitam sistematicamente qualquer solução que aumente a eficácia do sistema de justiça penal, de que o sistema prisional constitui um elemento fundamental.

Lá virá a habitual «poesia jurídico-penal», linda de recitar mas absolutamente desfasada da realidade, cujo mote preferido é o mais que estafado argumento de que se deve apostar na «ressocialização» e não na prisão, como se a colocação destes dois termos em alternativa fizesse algum sentido.

Lá virá a queixa de que os tribunais portugueses aplicam demasiada prisão, seja a título de pena ou de medida de coacção, com a inerente proposta de alterações legislativas que limitem mais e mais tal possibilidade.

E lá virá, como proposta de «solução» para os problemas do nosso sistema prisional, a continuação destas práticasassim deixando tudo na mesma.

Em suma, a reforma do sistema prisional que se impõe implicará sobrepor decididamente o interesse nacional ao interesse partidário. O que, como se sabe, não é para todos os estômagos políticos.


2024-10-24

2024-10-22

Motins na Amadora e em Oeiras

 

O que foi noticiado:

Na madrugada de 21.10.2024, Odair Moniz conduzia um veículo automóvel na Avenida da República, Amadora. Ao ver um veículo da PSP, pôs-se em fuga, entrando no Bairro da Cova da Moura. Foi perseguido pelo veículo da PSP. Na fuga, embateu em diversos veículos que se encontravam estacionados. Após imobilizar o veículo que conduzia, prosseguiu a fuga a pé, pelas ruas do bairro, tendo sido perseguido pelos agentes da PSP. Estes dispararam para o ar, mas o fugitivo não parou. Os agentes da PSP tentaram detê-lo, mas o fugitivo opôs-se e tentou agredi-los com uma arma branca, após o que foi baleado numa axila e acabou por morrer no hospital para onde foi transportado. O agente da PSP que atingiu Odair Moniz foi constituído arguido.

Quem parece já saber tudo o que se passou:

A associação «SOS Racismo» já emitiu o seu julgamento. A culpa é, obviamente, do agente da PSP que efectuou o disparo. A motivação apontada pela «SOS Racismo» é a previsível: racismo. Está em causa «uma cultura de impunidade» nas polícias, afirma aquela associação. Para se atrever a proferir tão peremptória sentença, certamente a «SOS Racismo» já conseguiu apurar factos que o público e as próprias autoridades, que irão proceder a um inquérito, ainda desconhecem. Bem podia partilhar esse conhecimento.

O que está a acontecer:

Na noite de 21, foram incendiados vários contentores de lixo no Bairro do Zambujal, onde Odair Moniz residia. Várias paragens de autocarro foram destruídas. Quando os bombeiros tentaram entrar no bairro, foram corridos à pedrada.

Na noite de 22, um autocarro que fazia o seu percurso habitual pelo interior do Bairro do Zambujal foi interceptado por um grupo de indivíduos. Estes, após fazerem o condutor e os passageiros saírem, incendiaram o autocarro, que ardeu por completo. Posteriormente, foi incendiado um segundo autocarro, na Portela de Carnaxide. Um veículo da PSP foi atingido por um «cocktail molotov».

Os canais de televisão estão há horas a fazer «directos» dos locais onde os motins ocorrem.

Neste momento, interessa-me apenas registar os factos. A seu tempo, escreverei sobre tudo isto.


2024-10-21

Prisões: por que ponta pegar?


O sistema prisional de um país não passa de um elemento, fundamental é certo, do sistema de justiça penal. Deve, por isso, ser configurado de forma a adequar-se ao cumprimento dos fins que a lei penal aponta à pena de prisão.

Por aquilo que aqui afirmei, o Direito Penal português precisa de ser repensado, se se quiser que ele volte a ser levado a sério. O que, a acontecer, teria de se repercutir sobre a configuração do sistema prisional.

Porém, não podemos estar à espera disso, desde logo porque é altamente improvável que haja lucidez, saber, vontade e coragem para empreender tal tarefa. O estado deplorável a que o poder político deixou o sistema prisional chegar impõe urgência na tomada de medidas «mínimas» que evitem que este entre em ruptura.

Por onde pegar, então, neste imenso problema?

Por aquilo que se mostre necessário em qualquer quadro jurídico-penal. A saber, aumentar a capacidade do sistema prisional, reforçar a segurança das prisões e melhorar substancialmente as condições em que os reclusos cumprem as suas penas. Ou seja, construir novas prisões, adequadas às actuais exigências, e reabilitar as existentes. E com urgência. Para mais quando o encerramento do Estabelecimento Prisional de Lisboa, que é o que alberga o maior número de reclusos em Portugal, está para breve.

Já não existe margem para mascarar o problema com os truques habituais. A evolução da criminalidade no nosso país não se compadece com a reiteração da concessão de medidas de clemência, ou com sucessivas alterações legislativas de pendor laxista, entenda-se, cada uma mais laxista que a anterior. Laxismo sobre laxismo só poderá conduzir à falência do Estado enquanto garante da segurança pública e protector dos mais fracos contra a violência dos mais fortes. Quando o Estado recua no combate ao crime, é este que avança, ocupando o território por aquele deixado livre. Em vez disso, impõe-se reafirmar a autoridade do Estado, com a maior firmeza possível.


2024-10-20

Eloquentes omissões


Se há omissões plenas de significado, são aquelas que se verificam perante situações de evidente emergência. Se quem tem o dever de zelar pelo bom funcionamento de determinada realidade nada fizer no sentido de resolver situações dessa natureza que nesta ocorram, estará a demonstrar que não reconhece a sua existência ou, ao menos, a sua importância. A menos que seja tão louco ou incompetente que, reconhecendo embora tais existência e importância, confie que o problema se resolverá por si próprio. Ou tão destituído de escrúpulos que, por ocupar o cargo que lhe impõe aquele dever de zelo de forma meramente temporária, funde a sua inércia na expectativa de que, quando a coisa estoirar, já estará noutras paragens.

Pois bem, há cerca de 50 anos que o poder político omite ostensivamente o seu dever de cuidar do sistema prisional português, não obstante a magnitude dos problemas que este vem apresentando. Como aqui e aqui afirmei, o poder político tem-se limitado a ir gerindo a crise, empurrando os problemas com a barriga. Quando, por efeito dessa omissão das medidas que se impõem, a pressão dentro do sistema é de tal ordem que o perigo de explosão se torna iminente, o poder político inventa um pretexto para conceder uma amnistia e um perdão de penas, assumidos ou encapotados. Uma vez aliviada a pressão por meio destes expedientes, o poder político não volta a pensar no assunto até que a pressão volte a subir a níveis demasiadamente perigosos, o que, em princípio, só ocorrerá dali a alguns anos, quando a batata quente já estiver nas mãos de outros. Nunca o poder político conseguiu fazer melhor que isto.

Esta omissão é inadmissível, vergonhosa e imperdoável.

Se, diante de um incêndio, um corpo de bombeiros, em vez de procurar extingui-lo, cruzasse os braços e deixasse arder, seria crucificado. O mesmo aconteceria a um nadador-salvador que, diante de um banhista em risco de afogamento, nada fizesse.

Já os políticos que, no último meio século, deixaram os problemas do sistema prisional avolumar-se diante dos seus olhos sem esboçarem qualquer tentativa séria e consistente de os resolver e, muitas vezes, ainda se atrevendo a debitar discursos completamente desfasados da realidade para tentarem esconder a sua incompetência e o seu desleixo, como o de que a causa dos problemas do sistema prisional é os juízes decretarem demasiadas prisões preventivas, proferirem demasiadas condenações em penas de prisão efectiva e estenderem estas por tempo excessivo, nunca foram chamados a responder (politicamente, claro) pelos seus erros e omissões. Seria justo e, seguramente, pedagógico que o fossem, mas é claro que isso nunca irá acontecer. Este tipo de escrutínio não faz parte dos nossos hábitos.

Da descrita omissão, que se traduziu num verdadeiro «deixa arder», ou «deixa afogar», aquilo que resulta, com toda a clareza, é uma absoluta incapacidade e falta de vontade política para resolver os problemas do sistema prisional por parte de quem governou o nosso país no último meio século. Trata-se, pois, de uma omissão verdadeiramente eloquente.


2024-10-13

Tomada de posse do novo Procurador-Geral da República


O novo Procurador-Geral da República, Amadeu Guerra, tomou ontem posse.

Congratulei-me aqui com a sua escolha.

Registo agora a sua tomada de posse, neste blog que também é um caderno de memórias sobre os factos que considero mais relevantes no sector da justiça.

O que desejo que o novo PGR faça?

Não propriamente que «ponha ordem na casa», pois não há razão para concluir que a sua antecessora, Lucília Gago, não tenha mantido a casa na devida ordem. Pelo contrário, mesmo nos períodos mais complicados do seu mandato, Lucília Gago nunca vacilou. Aguentou firme todas as pressões e, quando entendeu que era a hora de prestar contas ao país, fê-lo de forma que considero irrepreensível. Saiu com a dignidade de quem cumpriu o seu dever.

Aquilo que espero do novo PGR é, sim, o que geralmente se espera de quem vem de novo. Energia renovada e um novo olhar sobre velhos problemas que conviria resolver.

O maior desses problemas é o dos «monstros processuais penais» que o Ministério Público cria devido a más práticas que nele se enquistaram. «Monstros processuais penais» esses que se arrastam na fase de inquérito durante anos a fio e que, em consequência disso, uma vez deduzida a acusação, têm como destino quase certo a prescrição do procedimento criminal, pelo menos em relação a uma parte dos crimes imputados, pois o prazo que resta não chega para a eventual instrução, o julgamento e os inúmeros recursos cuja interposição é mais que certa. Ficando a justiça do caso concreto por fazer e a credibilidade do sistema de justiça pelas ruas da amargura.

Aqui, no meu recôndito Monte, fico a torcer por que o novo PGR tenha o maior sucesso.

 

2024-10-07

3 pelo preço de 1


Este triplo homicídio chocou, naturalmente, os portugueses. Mesmo num contexto, como o actual, em que a criminalidade violenta se agrava de dia para dia no nosso país, a brutalidade deste evento sobressai.

Não me pronuncio sobre este caso concreto, por duas razões. Desde logo porque, acerca dele, apenas conheço o que tem sido divulgado nos meios de comunicação social, ou seja, quase nada. Depois, porque estou impedido (e bem), por dever de ofício, de me pronunciar sobre processos judiciais que não me estejam atribuídos. E, mesmo em relação aos que o estejam, apenas posso fazê-lo (e bem também) em cumprimento dos meus deveres funcionais e na sede própria, ou seja, no processo.

Pronunciar-me-ei, sim, a propósito da referida situação concreta, sobre uma das questões jurídico-penais que situações dessa natureza suscitam: a persistência do limite de 25 anos de prisão na hipótese de cúmulo jurídico de várias penas (artigos 41.º, n.ºs 2 e 3, e 77.º, n.º 2, do Código Penal), coincidente com o limite máximo da moldura penal aplicável a um único crime de homicídio qualificado (artigo 132.º, n.º 1, do mesmo código).

Os artigos 41.º, n.ºs 2 e 3, e 77.º, n.º 2, constituem, porventura, as normas mais irracionais, iníquas e aberrantes do nosso Código Penal. Atento o seu papel estruturante do nosso sistema punitivo, elas constituem, só por si, uma das razões fundamentais por que aqui afirmei que o nosso sistema jurídico-penal não é para levar a sério.

Graças a elas, quem matar mais de uma pessoa numa mesma ocasião tem direito a bónus: o essencial da sua punição será pela prática de apenas um dos crimes, que, se o homicídio for qualificado, poderá esgotar imediatamente o «plafond» dos 25 anos de prisão. Os restantes crimes pouco ou nada acrescentarão a essa pena, pois, dos 25 anos de prisão, não pode, em caso algum, passar-se.

Portanto, cometido o primeiro homicídio, o assassino pouco ou nada terá a perder se matar mais pessoas. O que constituirá um forte incentivo para ele aproveitar a ocasião e fazer o gosto ao dedo: mais homicídio, menos homicídio, pouca ou nenhuma diferença fará. De uma pena de 25 anos de prisão (que nem por sombras equivale a 25 anos de efectiva reclusão, diga-se) não passará.

Pior, o referido bónus da impunidade dos homicídios subsequentes não abrange apenas aqueles que forem cometidos na mesma ocasião. Por força dos artigos 41.º, n.ºs 2 e 3, e 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, o assassino poderá continuar a matar até ser preso sem qualquer problema, pois todas as penas parcelares daí resultantes serão englobadas no cúmulo jurídico de penas a efectuar, que não poderá exceder os referidos 25 anos de prisão. Mate ele mais uma, dez, cem ou mil pessoas. O que, além do mais, constitui um acrescido factor de risco para os elementos das forças de segurança que tiverem de o enfrentar tendo em vista a sua captura.

Este regime é absurdo. Por todas as razões e em toda a medida do possível, quem comete um crime, por mais grave que seja, tem de sentir que ainda terá algo substancial a perder se cometer mais crimes antes de ser condenado. Isso só se consegue se a lei estabelecer uma diferença significativa entre o limite máximo da moldura penal aplicável ao crime mais grave previsto na lei penal e o limite máximo da pena de prisão na hipótese de o agente cometer mais de um crime.

Concretamente, sendo de 25 anos de prisão o limite máximo da moldura penal aplicável ao crime de homicídio qualificado, o limite máximo da pena de prisão na hipótese de o agente cometer mais de um crime não deveria ser inferior a 35 ou a 40 anos de prisão.

Isto, claro, enquanto não houver coragem para alterar a Constituição e, subsequentemente, o Código Penal, no sentido da consagração da pena de prisão perpétua, à semelhança de numerosos países que, embora com regimes democráticos e respeitadores dos direitos humanos, não confundem democracia com laxismo em matéria de combate ao crime e, em matéria de direitos humanos, demonstram mais respeito pelos das vítimas de crimes que Portugal.