Senhor Presidente da República, Excelência,
Senhor Procurador-Geral da República,
Senhor Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses,
Senhores Congressistas,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores
Senhor Procurador-Geral da República,
Senhor Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses,
Senhores Congressistas,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores
Seja-me permitido começar por dirigir algumas palavras a Sua Excelência o Senhor Presidente da República, na abertura deste VII Congresso dos Juízes Portugueses. Ao manifestar o gosto de integrar este espaço de abertura e a honra de assim o partilhar, aproveito para salientar a importância de tão elevada presença, cuja intervenção se adivinha ser de inestimável valor.
Em já vários fóruns judiciários, o contributo esclarecido de Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, tem apontado importantes pontos de reflexão para o sistema judicial. Estou certo, por isso, de que se justifica uma acrescida expectativa sobre o momento que estamos a atravessar.
Como Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, quero manifestar a Vossa Excelência o meu profundo reconhecimento por todas as deferências que gentilmente me tem dispensado.
Excelências,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores
Decorre este congresso em tempos conturbados para a Justiça, tempos de grande crispação e turbulência.
Fazer justiça é um exercício de suprema responsabilidade, mas é na aplicação dela que os cidadãos encontram a afirmação incondicional dos seus direitos, liberdades e garantias fundamentais. Por isso, o esforço conjugado de todos – dos chamados operadores judiciários – deve confluir para a realização de uma Justiça eficiente e exercida em tempo útil, só possível se o poder político não se demitir da função que lhe cabe e fornecer os meios materiais e humanos, bem como proceder a reformas profundas.
Espero que, do debate de opiniões neste Congresso, resultem ideias claras sobre os caminhos a trilhar. Ao debate – e, principalmente, às ideias que o têm alimentado – tem faltado virtuosismo.
O comportamento virtuoso, que resulta da obediência disciplinada aos ditames éticos e deontológicos, implica o empenho na realização material do escopo profissional e social de qualquer profissão ou actividade. Traduz, por isso, uma atitude perseverante no sentido da excelência.
As virtudes são sinal de excelência e, tal como acabo de afirmar, é essa excelência que tem faltado ao debate sobre a nossa Justiça. E a primeira virtude que tem faltado é uma virtude menor (devo reconhecê-lo), mas nem por isso menos virtude: a da delicadeza, ou da correcção.
É menor porque se refere ao cuidado formal de aparência (qualidade que pode revestir mesmo os actos condenáveis ou as decisões injustas). Trata-se todavia, de uma virtude introdutória. Todo o esforço no sentido da excelência se faz por aprendizagem.
O virtuosismo é sempre adquirido. Nenhuma virtude é natural. Pelo contrário, resulta de um esforço de adequação, de aprendizagem. E essa aprendizagem começa pela forma externa: fazendo aquilo que é ensinado (as boas maneiras).
É nessa medida que faz sentido a afirmação de que as boas maneiras precedem e conduzem às boas acções. Já Aristóteles dizia que «é praticando as acções justas que nos tornamos justos, praticando as acções moderadas que nos tornamos moderados e praticando acções corajosas que nos tornamos corajosos».
A aparência resultante da delicadeza, ou da correcção, é o princípio da adequação social (do respeito dos bons costumes) – a virtude ainda enquanto artifício, para se poder tornar num artefacto.
A ausência dessa virtude tem marcado o debate em volta das reformas que se tem pretendido introduzir recentemente na Justiça.
As acusações explícitas ou implícitas que se fizeram aos agentes da Justiça – e, em particular, aos juízes – para se justificar as medidas pretendidas, poderão quiçá justificar-se pela necessidade política de criar na opinião pública uma vontade de mudança. Mas foram incorrectas e indelicadas.
Os termos em que se colocaram as questões, menos do que justificar as acções, criaram bodes expiatórios, assim desautorizando qualquer reacção. O discurso ignorou a identificação dos problemas e o debate das soluções possíveis, para se dirigir aos culpados, àqueles a quem os privilégios retiravam qualquer credibilidade.
A segunda virtude que tem faltado é a da prudência. Venerada historicamente enquanto virtude cardeal, a prudência é hoje pouco valorizada (talvez pela sua base calculista ou pelo seu carácter instrumental ou não-absoluto).
A obrigação moral não parece dever variar segundo juízos de cautela – dir-se-á. Não obstante, conforme salienta Max Weber, essa ética de convicção encerra-nos num absolutismo de princípios que nos cega à humanidade, ao bom-senso ou à compaixão.
Não renunciando aos princípios, cabe a todo o homem – e, em especial, àqueles que assumem funções de liderança – ponderar as consequências previsíveis das suas acções, segundo uma ética de responsabilidade (ou de prudência).
Trata-se, pois, de determinar cautelosamente aquilo que é melhor. Ou seja: trata-se, a partir da verdade, do conhecimento e da razão, de deliberar correctamente e agir em consequência. É o bom-senso ao serviço da boa vontade, a inteligência dedicada à virtude. É a qualidade que garante que as outras virtudes produzem bons resultados – porque não chega amar a paz para ser pacífico, nem amar a Justiça para ser justo.
Noutra perspectiva – mais prática – dir-se-ia que a prudência é a virtude que evita que o inferno se encha das boas intenções (de actos animados pelas outras virtudes, portanto).
Parece desnecessário explicitar quanta imprudência tem caracterizado a apresentação, discussão e implementação das medidas dirigidas ao sector da Justiça.
Por eficiente que possa ter sido o discurso do privilégio, para agradar à opinião pública e captar o seu aplauso em benefício próprio, impunha-se antever que, ao tratar os titulares de um órgão de soberania como funcionários malcomportados (ameaçando-os com os correspondentes castigos ou medidas excepcionais), estava-se a empobrecer o Estado, a desacreditar o Direito e a fragilizar o Estado de Direito.
Faltou a lucidez e razoabilidade que impunha contenção. Não se antecipou. Não se previram os custos decorrentes dessa agressão.
Perdoar-me-ão, certamente, o tom moralista da minha análise. Menos do que a apreciação que faço, gostaria que as constatações servissem para nos inspirar – a nós, juízes – no sentido de evitarmos esses mesmos riscos, no debate que prossegue. Até porque é sabido como a falta de virtuosismo se alimenta dos seus próprios ecos.
Há uma norma que constitui um elemento-chave do regime e que enforma a própria Constituição: refiro-me ao respeito entre os órgãos que compõem a organização do Estado e que é uma via com dois sentidos. E tem de considerar-se que o seja em absoluto, para não pôr em causa o Estado de Direito.
Recusando sistematicamente dialogar de igual para igual – ou até meramente dialogar, porque logo se acrescentava não haver intenção de recuar – fingiu não perceber que até a disponibilidade dos juízes, por si só, era já uma abertura especial: o diálogo entre órgãos de soberania tem de fazer-se de igual para igual, sem dúvida, mas os seus titulares ocupam espaços bem distintos.
Note-se, por exemplo, que o poder político não se exerce por progressão em carreira profissional, como acontece no poder judicial; o poder político decide quanto paga e em que condições tem de exercer-se o poder judicial e não o inverso; o poder político arroga-se planear o faseamento com que tenciona dar resposta à crise, mas determina que o poder judicial responda com rapidez e a qualquer preço, sem lhe dar meios e condições para o fazer.
Pois bem: se ando a fazer a leitura correcta do nosso entendimento colectivo (e, como sempre, é muito mais o que nos une do que o que nos divide), os juízes já estão pouco interessados em discutir o problema das férias. Quando lá chegarmos, confrontados com os turnos e a impossibilidade de todos terem férias na mesma altura, verificaremos que quase tudo ficará como dantes. O que nós, juízes, exigimos é ser tratados como aquilo que somos e representamos. E que fique isto muito claro: não é um desejo negociável, mas uma exigência incontornável.
A partir deste ponto, a única discussão que nos interessa é sobre o que fazer a esta situação insustentável em que todos nos encontramos. E esperar que o poder executivo faça algo, ou que dê ao menos um sinal que estanque a desmotivação para trabalharmos muito para lá do que é exigível. Sem essa motivação, a pendência processual agrava-se.
Em rigor, a obrigação do poder político face ao poder judicial (também já o disse publicamente) é (foi sempre) a seguinte: prestigiá-lo e dar-lhe os meios. A sua obrigação é esta e coloca-se por esta mesma ordem. Porque, se a imensa falta de meios custa a sanar, convenhamos que pugnar pelo prestígio não custa dinheiro.
Só que a opção foi inversa: o actual poder executivo passou a dizer que os tribunais fecham três meses por ano, o que não é verdade; passou a declarar que os juízes precisam de trabalhar mais para ter a Justiça em dia, o que é inverdade; passou a afirmar que os juízes querem estar acima de tudo e de todos, o que não é verdade. Talvez outros o queiram…
Mais: como ouvimos há dias no Porto, com estupefacção geral, o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa não chegou ainda a conclusão alguma sobre a contingentação processual; e (pasme-se!) está a trabalhar com dados estatísticos de 2001/2002.
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores
A estratégia é elementar e o resultado é óbvio: o cidadão comum, o que está afastado dos princípios de Montesquieu e Beccaria e dos detalhes sobre a organização do Estado, foi escutando o poder executivo e acreditou. Mas tem sido intencionalmente enganado e é tempo de repor a verdade com todas as letras.
Venham pretensos opinadores e ouçam isto de vez: os juízes, como todos os cidadãos, não estão nem querem estar acima da lei; mas os juízes, como todos os titulares dos órgãos de soberania, não aceitam estar sem ser de igual para igual com os restantes órgãos de soberania.
Assiste-nos uma legitimidade constitucional de que nunca abdicaremos, porque ela garante a independência dos tribunais e, portanto, a qualidade da nossa Justiça. Esta poderá continuar morosa, com a falta de meios que o poder político não lhe atribui e a falta de reforma das leis processuais; poderá continuar defeituosa, porque ainda ninguém conseguiu acabar com uma justiça para ricos e outra justiça para pobres; e poderá continuar incerta, ao sabor da disposição dos políticos.
Mas que ninguém volte a dizer, de boa-fé, que os juízes não fazem uma justiça de qualidade. Ela é de grande, de muito grande qualidade. Os maus juízes, como todos os maus profissionais de todos os sectores, constituem uma reduzida minoria e são sancionados.
Já agora, que ninguém volte a dizer que os juízes nunca se preocuparam com mais e melhor Justiça para os cidadãos. Na recta final da minha carreira, nada encontrei tão cansativo e gasto como o poder judicial a perorar até à exaustão, junto do poder político, por mais e melhores meios, humanos e materiais, para obviar a injustiça que é não fazer justiça em tempo útil.
Haverá alguém, em seu perfeito juízo, que considere que todos os profissionais da mesma carreira têm toneladas de serviço em atraso por uma questão de gosto? Será razoável admitir que são todos desleixados ou mal-intencionados? Haverá nisto um prazer mórbido, endémico e generalizado que ainda não tenha sido alvo de um estudo psiquiátrico ou de um ensaio sociológico?
Sejamos sérios. Os juízes, como sempre fizeram, continuarão a pugnar por mais e melhor Justiça e, ao contrário do que alguns querem fazer crer, concordam com algumas das medidas que este poder político tem apresentado avulsas. Para corrigir o que está mal, ampliar o que parece bem e acrescentar o que se tem por desejável, bastará que queiram sentar-se connosco à mesma mesa e fazer reformas profundas, de modo a simplificar a tramitação processual e a agilizar o exercício de justiça.
São necessárias profundas reformas dos Códigos de Processo Civil e Penal, mas com efectiva participação dos magistrados e advogados, porque são os que, no seu trabalho diário, se confrontam com as mazelas do sistema e podem dar opiniões para as afastar ou, pelo menos, minorar.
Atrevo-me a garantir que todos teremos a ganhar, quando for possível aliar a capacidade política decisória à experiência judicial adquirida. Sobretudo, os cidadãos que mais precisam de um Estado de Direito que funcione.
Antes de culminar a minha carreira, gostaria de poder dizer que o actual poder político também acabou por perceber que, afinal, «a independência do poder judicial não é um favor concedido à classe dos juízes, é uma garantia dada à sociedade». Enquanto não se quiser aceitar esta afirmação tão simples e linear – que prestigia o poder judicial, prestigia todos os órgãos de soberania, prestigia o Estado e as instituições, prestigia o nosso país e a nossa cidadania – enquanto se puser em causa este princípio essencial que foi tão caro a José da Silva Carvalho, a Justiça afunda-se em processos e o País afunda-se sem justiça.
Excelências,
Caros Colegas
O tema oportuno deste Congresso e a agenda aliciante dos subtemas das intervenções hão-de garantir as melhores conclusões. Resta-me desejar que estes três dias correspondam ao sucesso que auguro para este evento e que resultem numa aproximação decisiva às justas expectativas que hoje se nos apresentam.
Tenho dito.
VII Congresso dos Juízes Portugueses, 24 de Novembro de 2005.
José Moura Nunes da Cruz
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça