2006-12-18

Reforma da Organização Judiciária - Que Reforma?


Um dos temas centrais actualmente em debate no domínio da Justiça é a projectada reforma da organização judiciária.

Que o Governo pretende fazê-la, é evidente.

Que ela é necessária, creio que é consensual.

Aquilo que me parece pouco evidente e nada consensual é QUE REFORMA se pensa fazer.

De há alguns meses a esta parte, alguns membros da equipa que actualmente dirige o Ministério da Justiça vêm largando, às pitadas, em alguns órgãos da comunicação social, uns «pozinhos» sobre qual poderá vir a ser o conteúdo da projectada reforma, por vezes – segundo me pareceu – de forma contraditória.

Mais recentemente, foi revelado o conteúdo do estudo, da autoria do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, com base no qual, segundo tudo indica – não é certamente por acaso que o mesmo está acessível no site do Ministério da Justiça – a reforma será feita.

Concomitantemente, anuncia-se a reforma para breve.

O «acordo político-parlamentar para a reforma da justiça» agenda essa reforma – que impropriamente designa por «revisão do mapa judiciário» – para 2007. Como não especifica para que trimestre ou semestre de 2007 o faz – ao contrário do que acontece com outras «iniciativas», de acordo com o «calendário» estabelecido no seu artigo 4.º –, parece que a mesma poderá surgir num período entre 19 e 384 dias a partir de hoje.

Ora, é aqui que me parece haver um problema: o da falta de condições para implementar as propostas do estudo em causa a curto (e provavelmente também a médio) prazo.

O próprio estudo tem a preocupação de realçar este facto.

Diz o estudo, a páginas 45-46:

"A proposta de reorganização territorial da justiça que, à luz da investigação realizada no âmbito do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa e das principais linhas que a seguir enunciamos, circunscreve-se ao processo de definição do novo modelo de mapa judiciário, e não da sua concretização, e diz respeito apenas à primeira instância da jurisdição comum, com exclusão dos tribunais do trabalho.

Adoptado o modelo e definida a agenda de execução, a sua concretização exige, ainda, a verificação de um conjunto de condições (como, por exemplo, o eficaz funcionamento da rede informática do sistema de justiça) e a avaliação e análise, o mais precisa possível, de outras vertentes e indicadores, designadamente indicadores que permitam definir o número óptimo de processos por unidade orgânica; a avaliação da procura dos tribunais do trabalho; do estado das infra-estruturas judiciárias; dos recursos humanos e da sua previsão; dos processos pendentes, à altura, em cada tribunal; do impacto das recentes medidas de descongestionamento dos tribunais; e das distâncias entre os vários espaços dentro da circunscrição a definir e das acessibilidades (estradas e transportes) que, só por si, podem levar a alguns ajustamentos e a respostas diferenciadas de circunscrição para circunscrição (…)" (os realces são da minha autoria).

Mais à frente (p. 51, ponto 3.4) afirma-se:

"O modelo de mapa judiciário que preconizamos pressupõe um sistema integrado de informatização da justiça, que permita, por exemplo, que, num balcão de atendimento, ou num quiosque informativo, os cidadãos obtenham informações sobre o seu processo ou possam enviar peças processuais".

De vários outros passos do mesmo estudo resulta que a sua implementação pressupõe condições que, manifestamente, não existem, nem acredito que venham a existir a breve trecho, tendo nomeadamente em conta a necessidade de diminuir a despesa pública.

Em face disto, como poderá fazer-se, a curto prazo, uma reforma da organização judiciária baseada no estudo citado, que claramente assume que apenas define um novo modelo de mapa judiciário, que não concretiza e, ainda por cima, é incompleto, e reconhece a sua inexequibilidade nas actuais circunstâncias?

Espero que a agenda político-mediática não se sobreponha ao interesse nacional e que não se avance precipitadamente para uma reforma que «estoire», de vez, com aquilo que, do sistema de justiça português, «reformas» anteriores (como a da acção executiva, que paralisou esta última) ainda deixaram de pé.

2006-12-07

Eleições para o C.S.M.

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Lista encabeçada pelo Juiz Conselheiro Vasques Dinis
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Lista encabeçada pelo Juiz Conselheiro Ferreira Girão
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2006-11-28

Fornecimento de seringas nas prisões e reinserção social


O programa de «troca» de seringas nas prisões suscita-me, entre outras, a questão da sua compatibilidade com a finalidade de reinserção social do cidadão autor de um crime que qualquer pena deve prosseguir.

Sendo certo que o Estado, desde logo por força do disposto no art. 40.º, n.º 1, do Código Penal, que o «projecto de reforma» apresentado pela UMRP não altera, não pode abdicar desse objectivo relativamente a toda e qualquer pena que aplique.

Suponhamos que um toxicodependente comete um ou mais crimes contra o património com o intuito de obter meios para comprar estupefacientes e é condenado numa pena de prisão efectiva – é esta a história pessoal de grande parte dos reclusos em Portugal.

Parece-me evidente que a reinserção social deste cidadão terá de começar pelo tratamento da sua toxicodependência, o qual pressupõe o seu afastamento do consumo dos produtos estupefacientes em que está viciado, mais não seja através de um programa de substituição.

Porém, em vez disso, o Estado, já que não consegue – segundo afirma – garantir a não entrada de produtos estupefacientes no meio prisional, vai passar a fornecer seringas (o termo «troca» não passa de um eufemismo) a esse cidadão, para que ele, já que continua a consumir drogas, o faça de forma «segura».

Esse cidadão lá se vai injectando (ainda que, porventura, antes de ser preso, a forma de consumo do estupefaciente fosse outra, menos nociva) com o produto estupefaciente que compra no interior da prisão ou que as pessoas que o visitam lhe levam e – aspecto fundamental na perspectiva em que coloco o problema – a colaboração do Estado, que lhe fornece as seringas.

Pergunto:

Findo o cumprimento da pena, que cidadão sai para o exterior?

Em que é que o cidadão que é libertado difere, no tocante às razões que o levaram a cometer o ou os crimes por que foi condenado, daquele que foi preso?

Que irá este cidadão, que, com a colaboração do Estado, é tão toxicodependente à saída como o era à entrada no sistema prisional (ou ainda mais), fazer em liberdade?

Onde ficou a reinserção social desse cidadão?

O que é que o Estado fez com vista a essa reinserção quando, durante o período de cumprimento da pena, se limitou a fornecer-lhe seringas e um local para se injectar tranquilamente?

Pergunto, com a humildade que deve assumir perante questões desta natureza quem, como eu, é um mero prático do Direito e não tem todo o tempo que gostaria de ter para aprofundar os seus conhecimentos teóricos: não irá a implementação do programa de «troca» de seringas nas prisões pôr em causa a primazia do objectivo de reinserção social do delinquente, sacrificando-o ao de, simplesmente, reduzir danos (o qual, em si mesmo, me parece inidóneo para constituir o fim de qualquer pena)?

Se assim for, talvez seja necessário rever alguns conceitos fundamentais em matéria de fins das penas, de forma a reconhecer que, em muitos casos, o Estado assume que a finalidade destas últimas deixou de ser a reinserção social do delinquente, sob pena de esta última se tornar – ou continuar a tornar-se – uma mera figura de estilo.

Nesses casos, qual passa a ser o fim da pena?

2006-11-24

Art. 42.º da Lei n.º 5/2006 (Lei das armas) – Parte II


Ainda quanto ao estipulado no art. 42.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, assaltou-me a dúvida que consiste no caso de ser entendido que o art. 21.º da Constituição da República, na parte em que refere “Todos têm o direito…de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.” não confere estatuto constitucional à legítima defesa, se poderá equacionar a seguinte questão:

Imaginemos que se encontram presentes todos os pressupostos a que respeita o n.º 1, al. a), do citado artigo; simplesmente existe a diferença do instrumento empregue, ou seja, num caso o ofendido, ou em vias disso, está munido de uma arma de fogo, e no outro o ofendido tem um instrumento que não uma arma de fogo como, por exemplo, um pau, uma faca, uma sachola, etc.

Estando situados o Código Penal e a actual legislação das armas no mesmo nível de hierarquia, poderemos ser levados a entender que o art. 42.º da Lei n.º 5/2006, porque posterior, veio revogar tacitamente o art. 32.º daquele Código no caso de a arma utilizada ser de fogo, continuando a vigorar este preceito do Código Penal quando arma utilizada não for de fogo.

Será lícita esta discriminação?

Luís Lança (Procurador da República)

2006-11-09

Tribunal de Grande Instance de Bordeaux

(Fotografia de J. Gomes de Sousa)

2006-11-05

Troca de seringas e segurança das prisões


Objectar-se-á ao que aqui afirmei: Sim senhor, isso está tudo muito bem (ou até nem está mal de todo, ou é tudo uma rematada asneira – para o efeito, tanto faz), mas há um problema prático de saúde dos reclusos que urge resolver e, atendendo à gravidade da situação, se, para se resolver esse problema, tiver de se sacrificar alguns princípios, paciência.

Sou, em geral, sensível a este tipo de argumentação.

Também entendo que, quando fortes razões de ordem prática impõem uma determinada solução, para mais quando está em causa a saúde e a vida de pessoas, alguns dogmas devem ser postos de lado na medida do estritamente necessário.

Porém, pergunto se o Estado está a fazer tudo, mas mesmo tudo, aquilo que está ao seu alcance no sentido de impedir a entrada de produtos estupefacientes nas prisões e a sua circulação no interior destas.

Diz-me a minha experiência no julgamento de crimes de tráfico de estupefacientes em prisões que não está.

Antes de avançar com o programa da troca de seringas, talvez o Estado devesse repensar todo o sistema de segurança das prisões, não no aspecto tradicional da sua capacidade para impedir fugas, mas no inverso, ou seja, da sua capacidade para controlar aquilo que vem do exterior.

2006-11-04

Seringas nas prisões e autoridade do Estado


Sou radicalmente contra o programa de troca de seringas nas prisões que se pretende implementar.

Não ponho em causa a nobreza das intenções de alguns dos seus defensores e partilho as suas preocupações.

Todavia, parece-me inevitável a conclusão de que a implementação de tal programa constitui uma desonrosa capitulação do Estado perante o tráfico de estupefacientes dentro das prisões e um grave incumprimento do seu dever de manter o meio prisional livre do tráfico e consumo de produtos dessa natureza.

E se há um campo em que me aflige ver o Estado capitular é o do combate à criminalidade.

Se nem sequer dentro de um meio que é suposto ser fechado e controlado como nenhum outro, como é o meio prisional, o Estado é capaz de manter a ordem, nomeadamente em matéria de tráfico e consumo de estupefacientes, quem pode levar a sério a capacidade desse mesmo Estado para combater o crime «cá fora», tarefa que, convenhamos, é bastante mais complicada?

A imagem que o Estado dá de si próprio se for para a frente com esta medida é, pois, extremamente negativa.

E isso tem custos elevadíssimos ao nível da sua credibilidade aos olhos dos cidadãos.

2006-11-03

"Ecole Nationale de la Magistrature" (Bordéus)

Mão amiga fez-me chegar esta fotografia, bem como outras que publicarei ulteriormente.
O meu agradecimento ao seu autor.

(Fotografia - J. Gomes de Sousa)

2006-11-01

Art. 42.º da Lei n.º 5/2006 (Lei das armas) – O politicamente correcto?

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Estipula o art. 42.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006:

“1 - Considera-se uso excepcional de arma de fogo a sua utilização efectiva nas seguintes circunstâncias:

a) Como último meio de defesa, para fazer cessar ou repelir uma agressão actual e ilícita dirigida contra o próprio ou terceiros, quando exista perigo iminente de morte ou ofensa grave à integridade física e quando essa defesa não possa ser garantida por agentes de autoridade do Estado, devendo o disparo ser precedido de advertências e em caso algum podendo visar zona letal do corpo humano” (sublinhado nosso).

Ou seja, um cidadão está em poder de uma arma de fogo devidamente legalizada, encontra-se em perigo de vida ou de ofensa física grave, não pode socorrer-se de agentes de autoridade, avisa o agressor que está armado e mesmo assim, perante a iminência de ser morto ou ferido gravemente, porque o agressor está armado (se calhar com arma de fogo de calibre muito superior à sua, pois adquiriu-a no mercado negro), tem que efectuar disparo para as unhas das mãos ou dos pés (passe o exagero).

Será que o legislador desconhece o instituto da legítima defesa, consagrado no art. 32.º do Código Penal? Ou não o desconhece e, mesmo assim, num afã de se tornar politicamente correcto, passou por cima dele?

E, já agora, será que os GOE e outras forças de elite treinam para atingirem os alvos em “zonas não letais do corpo humano”?


Luís Lança (procurador da República)


2006-10-27

Organização Judiciária


Depois de ler isto, espero que alguém se lembre de calcular:

- O tempo de trabalho que cada juiz vai perder em constantes deslocações entre os vários locais onde fará audiências de julgamento;

- O custo que o Estado terá de suportar com a aquisição e a manutenção de veículos e a contratação de motoristas para assegurar as deslocações dos magistrados e funcionários judiciais entre os vários locais onde se realizarão as audiências de julgamento;

- O custo que implicará a criação das novas «estruturas locais», que, tendo necessariamente uma sala de audiências e as indispensáveis instalações e equipamentos de apoio (gabinetes para magistrados, salas para advogados, uma secretaria, salas para testemunhas, uma cela quando se trate de julgamentos com arguidos presos, sistemas de gravação e videoconferência, pelo menos), não devem ser baratas.

2006-10-21

2006-10-20

Objectivo: esvaziar prisões (1)


Analisando, na sua globalidade, o projecto de reforma do Código Penal apresentado pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, parece-me evidente que um dos seus objectivos principais é o de diminuir a população prisional a qualquer preço.

E pretende-se tal diminuição pela razão mais prosaica que existe: poupar dinheiros públicos.

Isto não tem sido assumido com frontalidade, o que é compreensível, pois poderia ter custos políticos.

Para manter as aparências, vai-se invocando o estafado chavão da «reinserção social» como móbil para a progressiva limitação da possibilidade de aplicação de penas de prisão efectiva e para a cada vez menor duração do período de execução destas últimas, mesmo no âmbito da criminalidade mais grave.

Porém, parece-me que o recurso à ideia, em si mesma de indiscutível bondade, da reinserção social como fim primacial (embora não único, como é bom lembrar) das penas, é, neste domínio, abusivo, para dizer o mínimo – reinserção social não pode ser confundida com impunidade ou com laxismo no combate à criminalidade, particularmente à mais grave.

Tal apelo recorrente à ideia de reinserção social já dificilmente mascara a referida finalidade de diminuir a despesa pública.

Nada tenho contra a poupança de dinheiros públicos.

Muito pelo contrário, tenho tudo a favor.

Porém, poupar neste domínio é um erro grave.

Mais do que isso, é muitíssimo perigoso.

Porque, por este andar, pode um dia a comunidade, ou uma parte significativa dela, deixar de se rever no seu Direito Penal e de acreditar na capacidade deste último para garantir a sua segurança.

E, se esse dia chegar, não será bom para ninguém.

2006-10-12

Tudo na mesma


O último mês foi fértil em acontecimentos na área da Justiça.

Foi o «acordo político-parlamentar para a reforma da Justiça celebrado entre o PS e o PSD», foi o escolha do novo Procurador Geral da República e, por fim, foi a eleição do novo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

E foi o muito que se falou, escreveu e discutiu sobre cada um destes temas.

Todavia…

Sem menosprezar o relevo de qualquer dos acontecimentos acima mencionados, atrevo-me a lembrar que, na realidade dos tribunais, pelo menos naqueles por onde ando e de que vou tendo notícia, nada mudou no último mês.

Nem sequer no último ano.

Naquilo que realmente interessa ao utente do sistema de justiça, está, no essencial, tudo na mesma.

Continua a morosidade processual, excepto em matéria de acção executiva, onde não pode falar-se, com propriedade, em morosidade, mas sim em paralisia.

As condições materiais de funcionamento do sistema de justiça não sofreram alteração relevante.

A falta de funcionários judiciais agrava-se de dia para dia – há tribunais onde já se justifica a sua classificação como espécie em vias de extinção.

Os gravadores de cassetes lá continuam nas salas de audiências, gravando quando e como calha.

Os sistemas de videoconferência, que nem quando eram novos prestavam, estão cada vez piores – a idade não lhes tem feito bem nenhum.

As alterações legislativas cujos projectos já foram objecto de divulgação pública desfazem quaisquer ilusões acerca daquilo que, a esse nível, aí vem.

Portanto, ninguém se iluda com a súbita abundância de notícias sobre a justiça.

No essencial, apesar da agitação do último mês, está tudo na mesma.

2006-09-09

Acordo político-parlamentar para a reforma da justiça

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Comunicado da Direcção Nacional da ASJP de 8 de Setembro
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Acordo político-parlamentar para a reforma da justiça

A Associação Sindical dos Juízes Portugueses já há muito vinha considerando que as grandes reformas estruturantes do sistema de justiça devem ser objecto de amplo consenso parlamentar e não ficar sujeitas à volatilidade própria das maiorias parlamentares de cada momento, tendo mesmo pugnado pela aprovação de uma lei de planificação para a justiça, com validade plurianual e afectação específica de meios financeiros.

A ASJP considera que o acordo político-parlamentar para a reforma da justiça, assinado hoje pelos grupos parlamentares do PS e do PSD, não pode dispensar a discussão das soluções concretas previstas em cada projecto de diploma, no seu local próprio, que é a Assembleia da República, nem a audição dos representantes das instituições da área da justiça.

Há matérias sobre as quais a Associação teve oportunidade de se pronunciar previamente junto do Governo e dos grupos parlamentares e que merecem apreciação positiva.

Em primeiro lugar, o acordo para resolver o problema do estrangulamento da acção executiva, precisamente porque se trata de matéria da maior importância para o funcionamento dos tribunais, conforme a Associação já tinha comunicado ao Presidente da República, o Governo e os grupos parlamentares, tendo mesmo apresentado publicamente, em Julho, um Relatório Preliminar onde se propuseram soluções agora acolhidas pelos dois partidos com maior representação parlamentar.

Em segundo lugar, no sistema de recrutamento e formação de juízes, o acordo sobre consagração da formação separada de juízes e procuradores e sobre outras propostas apresentadas pela Associação num documento tornado público em Julho passado.

Em terceiro lugar, o acordo sobre a criação do Gabinete do Juiz, com funções de apoio técnico e administrativo, tão necessários para aumentar a qualidade e a produtividade da actividade judicial.

Há, porém, outros aspectos do acordo, em matérias sobre os quais a Associação não teve oportunidade de dar o seu contributo, que merecem sérias reservas.

Na revisão do mapa judiciário, a forma como se prevê a afectação de juízes às novas circunscrições territoriais e a sua mobilidade funcional nos diversos tribunais, não parece salvaguardar os princípios do juiz natural e da inamovibilidade, na medida em que pode abrir caminho para a escolha de juízes para processos ou de processos para juízes, por critérios de oportunidade administrativa, o que é absolutamente prejudicial para os valores da independência e da imparcialidade.

No acesso aos tribunais superiores, concordando embora a Associação de pleno com o princípio da progressão na carreira por critérios de mérito, não compreende a desvalorização do papel do Conselho Superior da Magistratura, que é o órgão com competência constitucional para proceder ao recrutamento e nomeação dos juízes para esses tribunais, substituindo-o por um júri sem a mesma composição plural e democrática daquele Conselho.

No estatuto dos juízes, ainda, a Associação não poderá aceitar que seja desvirtuado o conteúdo do estatuto da jubilação, pois a possibilidade de garantir aos juízes em fim de carreira a manutenção do conjunto dos deveres e direitos equiparado ao dos juízes em efectividade de funções é uma condição essencial para que os cidadãos confiem num desempenho profissional livre, independente e eticamente irrepreensível, ao longo de toda a carreira.

A ASJP reafirma aqui a sua atitude de abertura às reformas do sistema de justiça, direccionadas para a melhoria do seu funcionamento e para a dignificação da função judicial, mas não pode deixar de acentuar a necessidade de tais reformas não desvirtuarem o princípio essencial da independência dos tribunais.

Face à importância das matérias em questão, a direcção nacional da ASJP decidiu solicitar audiências urgentes ao Governo, ao Líder do PSD e aos Grupos Parlamentares e convocar uma reunião extraordinária do Conselho Geral da ASJP para analisar as diversas incidências deste acordo político-parlamentar.

Lisboa, 8 de Setembro de 2006

A Direcção Nacional da ASJP

Acordo político-parlamentar para a reforma da justiça

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Reforma da Justiça deixa juízes reticentes

Principal alvo das críticas é a revisão do mapa judicial

A Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) considera que o acordo político-parlamentar PS/PSD para a Reforma da Justiça contém aspectos "positivos" e outros que merecem "sérias reservas".

O principal alvo das críticas dos juízes é a prevista mobilidade dos juízes.

Em conferência de imprensa, o presidente da ASJP, António Martins, o vice-presidente, Azevedo Mendes, e o secretário-geral, Manuel Soares, começaram por referir que estrutura sindical "já há muito vinha considerando que as grandes reformas do sistema de Justiça devem ser objecto de amplo consenso parlamentar".

A ASJP considera, no entanto, que aquele acordo "não pode dispensar a discussão das soluções previstas em cada projecto de diploma, no seu local próprio, que é a Assembleia da República, nem a audição dos representantes das instituições da área da Justiça".

Pontos positivos

"Há matérias sobre as quais a ASJP teve oportunidade de se pronunciar previamente e que merecem apreciação positiva", disseram os dirigentes sindicais.
Entre as medidas positivas estão, para os responsáveis, o propósito de "resolver o problema do estrangulamento da Acção Executiva", "consagração da formação separada de juízes e procuradores" e "criação do Gabinete do Juiz, com funções de apoio técnico e administrativo".

Pontos criticados

Quanto às questões que merecem "sérias reservas" à ASJP, os dirigentes sindicais disseram que, quanto à revisão do mapa judiciário, "a forma como se prevê a afectação de juízes às novas circunscrições territoriais e a sua mobilidade funcional nos diversos tribunais não parecem salvaguardar os princípios do juiz natural e da inamovibilidade".

"Podem abrir caminho para a escolha de juízes para processos ou de processos para juízes, por critérios de oportunidade administrativa, o que é absolutamente prejudicial para os valores da independência e da imparcialidade", considera a ASJP.

No acesso aos tribunais superiores, a ASJP "não compreende a desvalorização do papel do Conselho Superior da Magistratura, substituindo-o por um júri sem a mesma composição plural e democrática".

Quanto ao estatuto dos juízes, a ASJP diz que "não poderá aceitar que seja desvirtuado o conteúdo do estatuto da jubilação", defendendo para os juízes em fim de carreira "a manutenção do conjunto dos deveres e direitos" equiparado aos dos juízes em efectividade de funções.

"Face à importância das matérias em questão", a Direcção Nacional da ASJP vai solicitar "audiências urgentes" ao Governo, ao líder do PSD, Marques Mendes, e aos grupos parlamentares da Assembleia da República.

Vai ser também convocada uma reunião extraordinária do Conselho Geral da ASJP, para analisar as "diversas incidências" do acordo político-parlamentar firmado.

Fonte: SIC ON LINE

2006-08-27

Explosivos com controlo deficiente


A ligeireza com que Portugal lida com o perigo não pára de me surpreender. Num mundo cada vez mais perigoso, com cada vez mais meios para uma única pessoa causar danos imensos e cada vez mais gente disposta a fazê-lo, não podemos continuar a brincar com o fogo. Desta vez, está em causa o controlo dos explosivos:





2006-08-25

Para a História do Direito Penal Português


Nem sempre é necessário atravessar meio mundo para conhecer experiências legislativas exóticas.

Em tempo de crise, nada como ir para fora cá dentro... apenas recuando uma geração.

Aqui fica o link para o SEXO DOS ANJOS, onde é recordada uma pérola do Direito Penal Português - a Lei n.º 8/75, de 25 de Julho.

Chamo a atenção para o art. 12.º - um verdadeiro ovo de Colombo para o problema do excesso de pendência processual.

2006-08-16

Limite máximo da pena de prisão (continuação)


No artigo de opinião reproduzido no post anterior, para se sustentar a tese de que em caso algum o limite máximo da pena de prisão (ainda que resultante de cúmulo jurídico) deve exceder 25 anos, recorre-se a um argumento que não me parece válido.

Afirma-se que ir além dos 25 anos de prisão se afigura, se não impossível, pelo menos muito duvidoso, visto que a partir dos 30 ou 35 anos, a pena de prisão se aproxima do tempo de esperança de vida do condenado e tende a equivaler, na prática, à prisão perpétua.

Não me parece que assim seja.

Desde logo, importa ter em conta que, por aplicação das normas do Código Penal que fixam os parâmetros dentro dos quais as penas concretas (incluindo as penas unitárias resultantes de cúmulos jurídicos de penas parcelares) devem ser fixadas, raramente as mesmas coincidem com o limite máximo. Na prática, a regra é a graduação das penas bem abaixo dos 25 anos de prisão, mesmo para os crimes mais graves, como o homicídio qualificado.

Mas mais importante do que isso é o facto de, no nosso ordenamento jurídico, as penas longas de prisão não serem cumpridas no interior de um estabelecimento prisional até ao fim - bem antes disso, pode e, a partir de certa altura, deve ser concedida a liberdade condicional ao condenado. Logo, uma pessoa condenada em 25 anos de prisão não passa - nem de perto, nem de longe - 25 anos na prisão. E se a pena concreta for de 20 anos de prisão, o condenado poderá ser libertado ao fim de pouco mais de 10 anos...

Em face disto, dizer-se que, a partir dos 30 ou 35 anos, a pena de prisão se aproxima do tempo de esperança de vida do condenado e tende a equivaler, na prática, à prisão perpétua, não é correcto. Mesmo nessa hipótese, sendo a esperança de vida em Portugal de cerca de 70 anos e num sistema que admite a liberdade condicional com a latitude do nosso, o argumento em análise só seria procedente se a média de idades dos reclusos no momento em que iniciam o cumprimento das penas andasse pelos 50 anos... quando, na realidade, andará na casa dos 20 e poucos anos.

Resta-me concluir dizendo, não só que o argumento da equivalência prática de uma pena de prisão superior a 25 anos à prisão perpétua não colhe, mas, mais do que isso, que me parecem existir fortes razões para ir além desse limite em algumas hipóteses de cúmulo jurídico de penas.

Todavia, como este post já vai longo, deixo isso para outro dia.

Limite máximo da pena de prisão


O artigo que em seguida transcrevo foi publicado no CORREIO DA MANHÃ de 23.07.2006. Aborda uma problemática da maior importância, para juristas e não juristas. No post seguinte, direi alguma coisa sobre o assunto.

«Seja qual for a escala de penas, ninguém pode ser executado ou encarcerado por toda a vida duas vezes.

Uma pessoa mata outra por motivo fútil, ódio racial ou para dissimular uma violação. Em Portugal, pode ser condenada a 25 anos de prisão. Mas admitamos que pratica, em circunstâncias idênticas, dois, três ou mesmo 100 homicídios. A pena máxima não se altera. Ora, esta equiparação gera uma desigualdade óbvia e um “desconto” grotesco: quem matar vários seres humanos só será punido pela morte de um. Por outro lado, quem já tiver matado não encontrará estímulo para evitar a “reincidência”.

Tudo isto parece resultar da consagração do limite máximo de 25 anos de prisão. Tal limite vale para os crimes mais graves – como o homicídio qualificado –, surjam eles isolados ou em série.

Além disso, o Código Penal não prescreve a soma pura e simples de penas. O tribunal pode aplicar ao arguido punição inferior a essa soma, desde que não fique aquém da pena fixada para o crime mais grave de entre os que ele cometeu.

Entre nós, sempre vigorou o regime do “cúmulo jurídico” e seria inconstitucional promover a soma das penas, devido à proibição de prisão perpétua. Ainda assim, o caminho percorrido num passado recente aponta para a agravação da responsabilidade. Desde 1995, comina-se a pena máxima de 25 anos para todos os casos de concurso, ainda que sejam pouco graves os crimes que o integram. Ir mais longe afigura-se, se não impossível, muito duvidoso, visto que a partir dos 30 ou 35 anos a pena de prisão se aproxima do tempo de esperança de vida do condenado e tende a equivaler, na prática, à prisão perpétua.

Nos EUA (e outrora na vizinha Espanha) os tribunais aplicam penas de prisão muito superiores à duração da vida humana e até condenam um só arguido a várias penas de prisão perpétua. Vigora o “cúmulo material”, ou seja, adicionam-se as penas sem qualquer restrição.

Ora, não deveríamos nós seguir este exemplo e substituir o “cúmulo jurídico” pelo “cúmulo material”? E não seria avisado abolir (ou pelo menos elevar) o limite de 25 anos de prisão?

Seja qual for a escala de penas, é impossível estabelecer diferenciações nas hipóteses mais graves. Ninguém pode ser executado ou encarcerado por toda a vida duas vezes. Nem sequer a lei de Talião, tomada à letra (olho por olho, dente por dente), permite responder com a mesma moeda a quem praticar vários crimes. De nada servirá, por conseguinte, revogar ou elevar o limite geral de 25 anos de prisão.

E convém não esquecer que esse limite (ou outro muito semelhante) é imposto pela Constituição, que proíbe a prisão perpétua em nome da essencial dignidade da pessoa e de uma aposta firme na reintegração social do agente do crime.»

Rui Pereira, Professor de Direito e presidente do OSCOT

2006-08-14

Segurança dos juízes


Foi recentemente notícia uma agressão cometida contra uma juíza de direito por um indivíduo que esta condenara anos atrás. Tratou-se, ao que tudo indica, de um acto de vingança por aquela condenação.

Este evento veio chamar a atenção, pelo menos durante o «prazo de validade» da notícia (que é muito curto, como se sabe), para o problema da segurança pessoal dos juízes.

A profissão de juiz comporta riscos por vezes elevados, sobretudo – embora não exclusivamente – na 1.ª instância e quando se possui competência criminal.

Por vezes, os condenados e/ou os seus familiares mais próximos reagem com violência à aplicação de penas de prisão efectiva.

Presenciei duas ou três situações dessa natureza no Tribunal Judicial de Évora há meia dúzia de anos e fui alvo de uma outra, após ter lido um acórdão em que foram aplicadas penas de prisão a dois arguidos: fui esperado por várias dezenas de – penso eu – familiares destes últimos e, mal saí do tribunal, se não fosse o pronto auxílio da GNR – que me escoltou até ao meu automóvel e, depois, durante uma parte do caminho até à comarca onde teria um julgamento em seguida –, ter-me-ia visto numa situação muito complicada.

Ameaças a juízes, umas veladas e outras explícitas, na sequência de condenações penais, são cada vez mais vulgares.

Não tenho dúvidas de que a tendência é para as coisas piorarem.

Cada vez mais, mais pessoas se acham no direito de recorrerem à ameaça e, mesmo, à violência quando alguma coisa não lhes agrada e não é só – nem tanto – contra juízes: que o digam polícias, funcionários judiciais, professores, médicos, enfermeiros, técnicos de serviço social, entre outros.

O problema da segurança pessoal dos juízes tem, pois, de ser encarado com seriedade e cabe-nos mantê-lo na ordem do dia, para que seja resolvido antes que ocorram males maiores.

2006-08-13

Criminalidade violenta cresceu 10% no 1.º semestre de 2006

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A notícia já tem 3 dias, mas mantém-se, obviamente, actual.

Os dados agora revelados não podem deixar de ser tidos em conta por todos aqueles que se ocupam do Direito Penal.

O artigo é da autoria da jornalista Tânia Laranjo e foi publicado no «Público» do passado dia 10.

Aqui fica (os destaques são da minha autoria):

«A criminalidade violenta e organizada (onde se incluem os assaltos a dependências bancárias, casas de câmbio, carrinhas de valores, postos de correios e prospectores bancários) aumentou 10,5 por cento no primeiro semestre deste ano, comparativamente a igual período do ano passado.

O salto mais significativo registou-se em Lisboa e em Setúbal, onde o crescimento foi de 45 por cento.

Também o número de detidos aumentou, tal como a taxa de resolução destes crimes, da exclusiva responsabilidade da Polícia Judiciária (PJ).

No que se refere apenas a assaltos a bancos, o aumento é ligeiramente menor. No primeiro semestre de 2005, tinha havido 52 roubos daquela natureza e, em 2006, foram 57 (o que representa um aumento de 9,6 por cento).

A maioria destes crimes terá sido cometida por estrangeiros, que se encontravam em situação irregular no país, sendo que uma boa parte deles é proveniente da América do Sul.

Os dados são da Direcção Central de Combate ao Banditismo da PJ, que ontem desmantelou mais um grupo alegadamente responsável por 20 assaltos a bancos, feitos nos últimos três meses (ver texto em baixo).

Com o esclarecimento desses casos (que representam 25 por cento do total de assaltos a bancos nos sete primeiros meses deste ano), dispararam as taxas de resolução dos crimes no primeiro semestre para totais que, para já, ainda não estão quantificados.

Taxas de esclarecimento do crime aumentaram

A criminalidade violenta e organizada tem vindo a aumentar nos últimos anos.

No final de 2005, o crescimento relativo a 2004 era de 30 por cento.

A par com este aumento, têm crescido também as taxas de resolução destes crimes por parte da Judiciária.

No final de 2005, a taxa de esclarecimento era de 52 por cento (mais de metade dos 217 assaltos daquela natureza foram resolvidos), tendo os números aumentado no primeiro semestre deste ano mais 15 por cento, relativamente a igual período no ano anterior.

Na Secção Regional de Combate ao Banditismo da Polícia Judiciária do Porto, encontrava-se a maior taxa de resolução no final do primeiro semestre, com os números de crimes esclarecidos a ultrapassarem os 75 por cento.

No entanto, mais de metade dos assaltos a bancos que ocorreram no país aconteceram na zona de Lisboa.

Relativamente ao número de detidos, verifica-se também um crescimento dos valores nacionais. Os dados dão conta de um aumento de 46 por cento no primeiro semestre deste ano, sendo mais visível em Lisboa e no Porto. A directoria de Faro, por sua vez, apresenta os mesmos dados que no ano passado.

Iguais tendências nos sequestros e raptos

O aumento do crime violento em Lisboa não se verificou apenas nos assaltos a bancos.

Tal como o PÚBLICO já noticiou, igual fenómeno verificou-se nos sequestros e raptos (cuja investigação também é da responsabilidade da Direcção Central de Combate ao Banditismo da Polícia Judiciária).

No primeiro semestre do ano passado, tinha havido 98 casos em Lisboa - este ano, foram 119.

O aumento foi de 15 por cento, enquanto no Porto a diminuição foi idêntica - o decréscimo foi de 14 por cento.

A percentagem de crimes resolvidos também cresceu.

Tinha sido de 40 por cento no primeiro semestre do ano passado, foi de 44,8 por cento este ano.

A maioria dos sequestros e raptos que se verificaram este ano foi também motivada pelo roubo.

Três por cento tiveram origem em redes criminosas, tendo crescido para 25 por cento os casos de situações falsas que são denunciadas às autoridades.

Paralelamente à aparente estagnação daqueles crimes (houve mesmo uma diminuição de um por cento), a Polícia Judiciária realça o aumento da violência utilizada

2006-06-27

Segurança rodoviária e impunidade – 3

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Referi aqui a moldura da pena principal actualmente prevista para o crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

Resulta do que afirmei nesse post que considero o limite máximo dessa moldura (1 ano de prisão) baixíssimo, face à danosidade social do crime em causa (crime este que não é, seguramente, recondutível a um qualquer conceito de «litígio de massa»).

O projecto de reforma do Código Penal não altera o art. 292.º, mantendo-se, portanto, a referida moldura penal.

Todavia, isso não significa que tudo vá ficar na mesma no que toca ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, o que já seria um mal menor.

Algumas das alterações que se pretende introduzir na parte geral do Código Penal determinam que as penas de prisão não superiores a 1 ano passem a beneficiar de um regime muito mais favorável, em termos práticos, do que actualmente – conforme referi aqui e aqui e desenvolverei em posts ulteriores.

Por esta via, se o projecto de reforma do Código Penal for transformado em lei tal como está, o regime de punição do crime de condução de veículo em estado de embriaguez passará a ser bem mais favorável (ao autor do crime, como é evidente) do que o actual, aproximando-se, na prática, em muitos casos, da pura e simples impunidade.

Tendo em conta que o crime de condução de veículo em estado de embriaguez constitui uma das principais causas de acidentes de viação e que a sinistralidade rodoviária constitui uma das principais causas de morte e invalidez em Portugal, constituindo mesmo a maior nas faixas etárias mais jovens, e acarreta perdas de milhões e milhões de euros por ano, parece-me que as opções do projecto de reforma do Código Penal são, nesta matéria, um verdadeiro desastre.

2006-06-26

Da «tolerância zero» ao «direito penal do inimigo»


Não é meu hábito transcrever textos publicados noutros lugares. Porém, o artigo de opinião que se segue, pelo interesse e actualidade do tema, impõe a abertura de uma excepção.

«A ideia de “tolerância zero” levar-nos-ia a uma criminalização de condutas, como a mendicidade ou a prostituição de rua que, certamente, podem representar um mal estar ou incómodo para a segurança ou tranquilidade pública, mas que não são verdadeiramente condutas delitivas. A vítima individual apenas é tida em conta e a relação delinquente/vítima é substituída pela ideia de que todos podemos ser vítimas e, portanto, o motivo de intervenção é a segurança de todos em geral, e não a possível lesão a um bem jurídico em particular.

Numa outra perspectiva, surge a tese do “Direito Penal do Inimigo”, estruturada como orientação doutrinária desde 1985, por Günther Jakobs. De acordo com esta formulação haveria para o Direito Penal dois tipos de indivíduos: Os cidadãos – aqueles que praticam crimes de média ou baixa gravidade mas que, não obstante, estão integrados no Estado e (aparentemente) são recuperáveis através da aplicação da respectiva pena; e os inimigos – aqueles outros que praticam crimes de elevada gravidade ou se dedicam à criminalidade complexa e altamente organizada.

Para estes últimos, porque não aceitam o Direito, negar-se-á o Direito. Não podem beneficiar da protecção das leis, aqueles que as violam de forma tão grave e hedionda. O Estado declara-lhes guerra. Como na guerra as leis são outras, o Estado considera-os “inimigos” e adopta medidas excepcionais. Em termos práticos, o Estado não reconhece ao “inimigo” direitos, uma vez que reconhecê-los seria tratá-lo como Pessoa e isso vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.

Ao nível do Direito Penal, ao “inimigo” não se aplicam penas mas medidas de segurança; a sanção a aplicar não deve ter em conta a sua culpa mas a perigosidade (tendência abstracta para cometer crimes); o fundamento da intervenção do direito penal passa a ser o perigo, a presunção do perigo basta para punir; como o “inimigo” é a personificação do perigo, então devem aplicar-se sanções que afastem esse perigo pelo periodo mais extenso possível – surgem então muito apetecíveis, as penas longas de prisão, eventualmente, até para toda a vida.

Sob o ponto de vista do Processo Penal, o “inimigo” não é um sujeito processual e, como tal, não tem direitos no processo (vg., é colocado em estados de incomunicabilidade mesmo face ao seu próprio advogado); incentiva-se e premeia-se a delação do “inimigo”; a detenção do “inimigo” permite a utilização frequente de agentes policiais infiltrados e de agentes provocadores (o que importa é descobrir o perigo onde ele existir e, por isso, se utilizam, abusivamente, medidas de coacção e cautelares: detenção e prisão preventiva por períodos indeterminados); não se permite ao inimigo que a sua situação processual seja avaliada por um juiz de direito, com vista a decidir sobre a legalidade da situação em que é mantido; a violação da privacidade passa a ser regra e o conceito de intimidade perde importância (intercepção de conversações telefónicas, apreensão de correspondência, registo da imagem e da voz, vigilância intensiva feita por todos os meios, buscas domiciliárias, e exames corporais, tornam-se rotinas desburocratizadas); quebram-se os sigilos profissionais (caso dos médicos do estabelecimento prisional).

Sem pretendermos ser arautos de más novas, temos, contudo, de deixar claro que todas estas referências não são ficção ou meras projecções do que pode vir a ser o direito do inimigo! São realidades com que cada vez mais nos confrontamos, sempre justificadas por princípios de necessidade discutíveis. Recorde-se, por exemplo o caso do USA Patriotic Act, de 24 de Outubro de 2001, que alargou o tipo de terrorismo, estendeu à administração norte-americana os poderes de proceder a buscas domiciliárias secretas e sem controlo judicial, permitiu que o Procurador-Geral pudesse prender estrangeiros que representem uma ameaça à segurança, sempre que o entender, deu à administração o poder de requisitar registos de compras de livros em livrarias e registos de empréstimos em bibliotecas, etc...

E em Portugal, ainda felizmente longe daquilo que se verifica nos Estados Unidos, vários exemplos porém vão surgindo que, de uma forma mais branda mas suficientemente direccionada, denotam alguma permeabilidade (preocupante) com o direito penal do Inimigo: começam a detectar-se tendências; a falar-se de excesso de garantismo; a defender-se a restrição de certas garantias processuais dos arguidos; a exigir-se formas menos “burocratizadas” para o uso da força por parte das entidades policiais; a defender-se que, para o combate à sinistralidade rodoviária, as entidades policiais estejam no terreno descaracterizadas, perdendo-se com isto a sua iminente função preventiva; fala-se em diferentes regimes de execução de pena (ainda não sabemos ao certo em que consiste tal propósito; porém, em alguns países a experiência tem sido altamente contestada, como acontece no Brasil desde a entrada em vigor da Lei 10.792, de 01 de Dezembro de 2003 que alterou a Lei de Execução Penal Brasileira e o Código de Processo Penal e instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado).

Em concreto recorde-se a Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, quando veio a admitir que as escutas telefónicas, o registo de voz e de imagem por qualquer meio, pudessem ser feitos sem consentimento do visado (artigo 6.°) bastando para tal, que a medida seja “considerada necessária para a investigação dos crimes referidos no artigo 1.º” da mesma Lei. Ora estes crimes acabam por ser, precisamente, aqueles que se atribuem ao “inimigo de Jakobs”: tráfico de estupefacientes, terrorismo e organizações terroristas, tráfico de armas, corrupção passiva e peculato, branqueamento de capitais, associação criminosa, etc. Esta lei permite ainda a quebra do segredo profissional dos membros dos órgãos sociais das instituições de crédito e sociedades financeiras, dos seus empregados e de pessoas que a ela prestem serviço, bem como a quebra do segredo dos funcionários da administração fiscal, desde que haja razões para crer que as respectivas informações têm interesse para a descoberta da verdade (artigo 2.°).

Por outro lado, este mesmo diploma permite ainda o controlo de contas bancárias, ficando a instituição de crédito abrigada a comunicar quaisquer movimentos sobre a conta, dentro das vinte e quatro horas subsequentes; e, em plena fase de investigação, pode ser ordenada a suspensão de movimentos (artigo 4.°).

Um outro diploma a considerar nesta matéria é a Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, que passou a definir um quadro legal para a protecção de testemunhas em processo penal. A partir daqui, e nos termos nela previstos, a testemunha pode depor sem que o arguido saiba quem depõe contra ele (artigo 4.º) o que pode significar uma grave restrição do princípio do contraditório; passa ainda a estar prevista a possibilidade de depoimento por teleconferência com ou sem a ocultação da identidade da testemunha (artigo 5.º).

Por fim, também a Lei n.º 10 1/200 1, de 25 de Agosto, teria de ser lembrada, não fosse ela que definisse o regime das acções encobertas para fins de prevenção e de investigação criminal.

Enfim, as técnicas para o combate à criminalidade que vamos conhecendo contribuem, sem dúvida, para um aumento da eficácia do Estado nestes domínios. Porém, é nosso dever alertar para o facto de que a eficácia da investigação e da administração da justiça não pode passar sempre pela restrição aos direitos fundamentais. Esta é uma tentação a que o legislador e os órgãos com competência para a investigação têm que resistir.

Resolver o problema e os impasses da investigação à custa dos direitos fundamentais é fácil e eficaz. Todavia, este não pode nunca ser o método.»


Francisco Espinhaço
Advogado penalista, doutorando em Direito Público Europeu

Fonte: O PRIMEIRO DE JANEIRO


2006-06-22

Férias judiciais

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COMUNICADO DA ASJP À IMPRENSA

Assunto: marcação de julgamentos nos períodos de 15 a 31 de Julho e de 1 a 15 de Setembro

Face à notícia publicada hoje no jornal Público, aliás retomando um assunto já tratado há algum tempo pela estação televisiva SIC, a Direcção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses torna público o seguinte esclarecimento:

1. A redução, que efectivamente existe, do número de julgamentos marcados de 15 a 31 de Julho e de 1 a 15 de Setembro, não resulta, contrariamente ao que parece ser a interpretação jornalística corrente, de qualquer atitude de "boicote" ou "resistência" dos juízes à aplicação da lei que reduziu o período de férias judiciais de Verão;

2. De resto, como os juízes sempre afirmaram, o período de suspensão da actividade dos tribunais para os actos processuais não urgentes, designado de férias judiciais, nada tem a ver com a duração das férias profissionais dos juízes, dos procuradores ou dos funcionários, que é apenas, como sempre foi, o legalmente previsto para todos os funcionários do Estado;

3. O que se passa é que, por força do novo regime legal, precisamente porque quase todos os juízes têm de integrar os serviços de turno para os processos urgentes no mês de Agosto, há uma percentagem muito significativa que tem de gozar parte das suas férias profissionais na segunda quinzena de Julho ou na primeira de Setembro;

4. O que significa que, contrariamente ao que acontecia antes, em que todas as férias profissionais dos juízes "cabiam" dentro do período de férias judiciais, este ano quase todos terão de as gozar parcialmente dentro do período de funcionamento normal dos tribunais, agora mais alargado, levando assim a uma diminuição sensível, nesse período, do número de juízes ao serviço, com reflexo imediato e óbvio no normal agendamento de julgamentos;

5. Para além disso, há uma percentagem muito importante de julgamentos com intervenção de tribunal colectivo que não puderam ser agendados nesses períodos, resultante do facto de ser impossível conciliar para a mesma data as férias dos três juízes;

6. Acresce ainda que, por evidentes razões de prudência, para evitar a deslocação inútil de milhares de pessoas aos tribunais, mesmo os juízes que vão estar ao serviço na segunda quinzena de Julho e na primeira de Setembro, tiveram de aligeirar a marcação de julgamentos dos seus processos, pois irão estar ocupados com todo o serviço de expediente dos juízes legitimamente ausentes em gozo de férias;

7. Finalmente, faz-se notar o facto de muitos julgamentos já iniciados terem continuações marcadas para a segunda quinzena de Julho e de esse número não estar a ser considerado por não ser introduzido no sistema informático habilus.

Lisboa, 22 de Junho de 2006

Manuel Soares, Secretário-geral da ASJP