2005-10-25

Falta de meios - salas de audiências

O texto que se segue é da autoria do Dr. José Fernando Cardoso Amaral, Juiz de Direito.

No Diário de Notícias de hoje (23.10.2005), Luís Miguel Viana insurge-se contra o facto de, inutilmente, ter sido convocado para um julgamento no Funchal que, apesar de marcado com ano e meio de antecedência, acabou por se não realizar por falta de sala, sem que (como critica) o Tribunal tivesse cuidado de garantir, ele próprio, as condições para a sua realização.
Tem razão, mas só em parte.
Tem-na, porque, como cidadão chamado ao foro, sofreu, injustamente, na pele (do corpo e da carteira) as consequências de uma das muitas maleitas de que padece, sem cura, o nosso agónico sistema de justiça: os adiamentos.
Tem-na, ainda, porque, subindo ao púlpito que o jornal lhe oferece e daí soltando a sua voz indignada, não só exerceu um direito de cidadania como tentou contribuir, pela denúncia, para a melhoria da vida dos seus concidadãos incomodados em situações idênticas.
Mas não a tem quando, como comentador interessado, não curou de ir mais longe no apuramento da real dimensão do problema, na busca do diagnóstico necessário e na interpelação aos verdadeiros responsáveis.
Daí que ao censurar o próprio tribunal pelo facto, que apelida de vergonha, leviandade e desrespeito, tenha errado completamente o alvo e, por isso, desperdiçado a eficácia da cajadada.
Mas é porque, finalmente, o descontentamento dos cidadãos se faz sentir e se une ao dos media e dos chamados operadores judiciários que vale a pena voltar à questão.
Os adiamentos por falta de sala de audiências (para não falar de outras causas) são com certeza inúmeros, todos os dias, ao longo do país. Os magistrados, os advogados e os demais utentes que têm a pouca sorte de ser chamados à justiça bem o sabem.
Ainda na semana que findou a imprensa dava conta de um certo caso muito badalado.
E só não têm sido mais porque, até aqui, sempre na esperança de dias melhores, na tentativa de evitar maior desonra para o sistema e precisamente em respeito pelos cidadãos, a maior parte dos juízes tem feito das tripas coração para realizar, com desconforto e pouca dignidade, muitas diligências em minúsculos e pobres gabinetes, ainda que à custa da imagem e do ritual normalmemte associados ao acto de julgar.
Acontece que eles próprios (juízes), maltratados como ultimamente têm sido, responsabilizados de maneira injusta pelas deficiências que não lhes compete suprir, incapazes de conter o coro de queixas dos cidadãos que se vão fazendo ouvir e já sem esperança de que o seu voluntarismo remedeie a passividade de tantos anos, resolveram dizer "basta!".
Daí a anunciada greve e, entre outras medidas, a recusa de prestação de trabalho fora do horário normal e em condições indignas.
É que nos tribunais não faltam só salas (presto serviço num em que para dez juízes há apenas duas). Falta tudo: gabinetes, mobiliário, aquecimento. Já tive de trabalhar completamente embrulhado num kispo e com as portadas das janelas fechadas.
Ainda há dias uma juíza se queixava de o Ministério lhe ter recusado o reembolso de um aparelho portátil de ar condicionado que se viu forçada a comprar quando no seu gabinete enfrentou 33 graus de temperatura nas manhãs deste Verão.
Não há meios de registo da prova eficazes e fiáveis, nem de telecomunicações expeditos. Haviam de ver como são os gabinetes de teleconferência em alguns!
A informática é incipiente.
Não há sequer lugar para as longas esperas de advogados e público.
Enfim, o rol seria infindável, fastidioso, porventura inacreditável.
Falta tudo, só não faltam processos. Na maior parte dos tribunais, cada juiz tem, ao mesmo tempo, milhares a seu cargo.
E falta tudo onde menos devia faltar. Não só pela natureza fundamental da tarefa que o Estado prossegue através dos tribunais, mas porque a justiça é paga por quem a ela recorre, embora à gestão dessa receita seja totalmente alheio quem a produz.
O que acontece é que a maior parte de tudo aquilo que falta constitui encargo do poder político.
É o caso das instalações, portanto, das salas de audiências. Nos termos da lei (artºs 117º.e 118º., da LOFTJ), as dos tribunais superiores constituem encargo directo do Estado, e as dos tribunais de 1ª. Instância (como o do Funchal) competem à administração central, salvo acordo diverso com os municípios.
Só que os tribunais são independentes, segundo a Constituição. Mas é uma independência que, no seu exercício, é condicionada pela falta de meios de que não dispõem.
O investimento na sua função jurisdicional não se traduz em contrapartidas eleitorais.
Por isso, os juízes não podem inventar salas. Arranjam escritórios em sua casa, equipam-nos à sua custa, usam-nos, em serviço, com os próprios meios.
Mas, apesar de tudo, o dever de reserva tem calado muita revolta.
E com isso se têm conformado os cidadãos. Tal como os líderes de opinião.
Mas tudo isto está a mudar. Por que acham que os magistrados fazem greve? Porque se agitam e manifestam os cidadãos? Porque se ocupa a comunicação social tão intensa e extensamente como nunca da área da justiça ? Porque se incomodam os poderes ?
Porque no dia em que o povo, em nome do qual os tribunais administram a justiça, se consciencializar da realidade, nada ficará como dantes. Se são os magistrados, os advogados ou os funcionários a queixar-se das condições ou a exigir os meios, aqui-d´el-rei que são uns privilegiados. Se for a sociedade, como deve sê-lo, tudo mudará. Nessa altura, a vergonha para o sistema, a leviandade e o desrespeito pelos cidadãos que Luís Miguel Viana atribui à falta da sala de audiências para um julgamento, serão directamente atirados à cara escondida e envergonhada de quem devia cuidar e não cuida de as disponibilizar.
E jamais, em situação congénere, se voltará sequer a insinuar com a hipótese de falta de cuidado daqueles (os juízes) que precisamente todos os dias encarnam a justiça perante o povo e, por isso, sofrem também na pele os seus males, como no caso parece ter querido fazer-se com a interrogação sobre o que fará (disciplinarmente ?) o Conselho Superior da Magistratura.
Não fará, obviamente, nada.
Porque se pudesse fazer começaria, ele próprio, por se dotar das condições básicas necessárias para o exercício cabal da sua função constitucional, designadamente da autonomia administrativa e financeira que há tanto tempo reclama e precisa, mas que, sucessivamente, tal como os meios exigidos pelos juízes para os tribunais, lhe vêm sendo negadas.
Negadas pelo poder político com a complacência dos mais variados quadrantes sociais que só se têm queixado quando a coisa lhes toca e em função dos respectivos interesses.