2005-10-10

Privilégios - 2

A propósito do post que aqui deixei sobre «os meus privilégios», post esse que o Colega Joel Timóteo me deu a honra de citar no seu «Verbo Jurídico», uma Senhora Juíza deixou, neste último, o comentário que vou reproduzir.

«Gostei da descrição dos seus privilégios, até porque já gozei desses e doutros enquanto juiz, de comarca, de círculo - sobretudo em Portimão - e agora do trabalho. Com a pequena agravante que, como nos tribunais de círculo dessa altura, eram os juízes de círculo que despachavam os processos, tinha todos os dias, como recompensa pela "alegre passeata" da minha pessoa, do meu carro, e do meu dinheiro ( para gasolina, oficina e um carrito novo quando o contador de quilómetros do anterior - no caso um wolkswagem polo- já tivesse dado várias voltas) por metade do belo Algarve (Algarve sim - mais um privilégio nestas andanças da Magistratura) à minha espera, lá pelas 7 ou 8 da noite, no tribunal da sede do círculo, uma montanha de processos para despachar!!
Quão alegres madrugadas, iniciadas ao volante do "polito" , para passar pelo tribunal do círculo a "apanhar os processos", continuar em confortável condução ( carro topo de gama e estradas topo de buraco) para o tribunal de comarca "do dia" ( a 30 ou 40 Km ...ooh e daí?) fazer julgamentos até desoras, voltar a conduzir até ao Tribunal da sede do círculo, quiçá bêbeda de cansaço ( ainda não é mensurável esta forma de perigo na condução; e pouco importa o peso dos ditos processozitos se a pessoa já tem problemas de coluna...) e terminar noite fora, em casa, agarrada ao meu computador (que só em 1996 essa mordomia foi me parcimoniosamente dispensada, no Tribunal, num episódio que guardo para se chegar a netos) para fazer acórdãos e sentenças, saneadores, e por aí!!
Não posso hoje deixar de me sentir uma privilegiada pela quantidade e responsabilidade do serviço que o Estado Português fez e faz o favor de me confiar, sem querer saber se é exequível por uma, duas ou apenas 10 pessoas. É uma subida Honra - mesmo para quem é titular de um órgão de soberania, que ao que se sabe não é menos soberano que os demais.
E como nisto de trabalhar, quem faz um cesto faz um cento, avizinha-se que o privilégio continuará, quiçá, até à insanidade total.
Porque, se por este ritmo chegar à chamada idade de reforma ( 65 anos .... até é engraçado pensar) estarei esclerosada, com Parkinson, com Alzeimer, num hospício ou na Casa do juiz ( que deve ser a mesma coisa) ou com qualquer doença por denominar, que afectará especialmente esta geração de juízes que deram quase todas as horas da sua vida ao trabalho. Indevidamente, e em puro prejuízo da Nação, como agora se vê.
Mas como ainda não consegui deixar de ver por detrás dos processos pessoas que precisam do resultado do meu trabalho, e que não são directamente ( directamente eu disse) responsáveis pela falta de condições que me dão para isso, vou continuando. Burra, eu sei, mas quem nasce torto tarde ou nunca se endireita.
Já pensei até socorrer-se dos serviços da pobre psiquiatra que me tratou quando tive um esgotamento, por exaustão dizia ela, para ver se consigo acertar o meu ritmo de trabalho com o dos meus pares, titulares de órgãos de soberania, ou ao menos com os "meus" trabalhadores, que me enchem a secretária a pedir o pagamento de horas extraordinárias, se for preciso logo ao fim do primeiro mês de trabalho. Privilégio do sector público ( e dos juízes), este, o de nem ter que se preocupar com coisas tão mesquinhas como essa coisa de horas extraordinárias, e compensação de descanso do trabalho por turnos. Já se sabe que o horário de trabalho é programático, e ou o serviço aparece feito ( de noite, de dia, aos feriados, aos domingos, aos sábados, deixando os filhos amarrados à cama, à perna da mesa, na casa do vizinho, na rua, ou mesmo à solta pela casa: ao caso tanto faz), ou então fica em causa não só a progressão (eufemisticamente falando) como a própria carreira ( e os anos de vida que ela consumiu). Isto sem falar doutros itens importantes para garantir o emprego (disponibilidade permanente obrigatória de uso de carro próprio, escritório próprio, material próprio, e outros eteceteras ) que não vêm propriamente elencados no Código do Trabalho, aquele que é a fonte de direitos dos despriviligiados trabalhadores do sector privado (ou também estão na calha para a nova rotulagem?).
Se não chegar à idade de reforma então sempre fico contente porque os meus descontos para a Caixa Geral de Aposentações beneficiarão seguramente a construção de mais uns quantos estádios de futebol, a criação de mais umas comissões de apuramento do que já está mais que visto, mais umas imprescindíveis viagens dos titulares dos cargos políticos, ou dos seus boys de confiança, na sua procura premente das soluções para o funcionamento adequado da justiça em Portugal ( à margem dos operadores judiciários nacionais, pessoas suspeitas, como de costume) e quiçá para o arranque daqueles projectos nacionais do tipo aeroporto na OTA ou TGV, que darão futuro brilhante aos nossos filhos, e um sentido de pertença à nossa velha nação valente e imortal, que será de novo uma figura decisiva no xadrez mundial. Os nossos filhos bem o merecem já que mal tiveram oportunidade de conhecer os pais (os tais que, se bem que com muitos remorsos e problemas de consciência, fizeram sentenças e coisas do género quando deviam estar a olhar para eles, a ajudá-los a crescer e a garantir o mínimo de condições psicológicas para ao fim do dia os ouvir e os adormecer, sem ser ao som das teclas do computador), velhos do Restelo, que são os verdadeiros responsáveis pelo actual estado calamitoso da economia, finanças, ensino, sistema de saúde, segurança social, criminalidade organizada e desorganizada, ou seja, tudo aquilo que deveria ter contribuído para que os sucessivos e preclaros governantes do pais encontrassem rosas onde na realidade só há espinhos - o que os pode impedir de gozar as suas merecidas férias, cuja duração e critérios de marcação a nação desconhece.
E com o dinheirinho que fui descontando, para a reforma que nunca terei, poderei ainda ajudar a mais uns programas contra a toxicodependência, que os meus filhos e os dos demais correm o risco de "contrair", a fazer fé na importância dada pelos estudos dados à estampa, da felicidade e harmonia familiar, da paciência dos pais e do apoio diário efectivo, como preventivos dessa calamidade social (desgraça de muitos; graça dos cartéis). Com a vertente positiva de que sempre criam mais uns postozitos de trabalho, nem que seja para aplicar multas por consumo …. aos toxicodependentes, que seguramente em sucessivos despojados gestos de contribuição para a recuperação da dívida pública, pagarão - e na própria hora.
E poderei, quiçá, morrer, orgulhosa de o fazer no meu posto de trabalho, às mãos de um avisado cidadão, que de tanto dar ouvidos àquilo que os órgãos de comunicação (não de informação) social veiculam ( por si ou em nome de interesses mais elevados) sobre as demoníacas características da espécie em que me incluo por via da profissão, resolva fazer o Bem, em nome da justiça, à própria justiça. Assim será, extreminando um dos indesejados .....seus concidadãos ( seguramente que desta parte final o valente não terá consciência - entraremos então no domínio dos actuais artºs 16º e 17º do C.P., o que o levará a uma apoteótica absolvição, se bem que pelos media, caso o poder judicial mantenha o privilégio de agir com independência ).
Mas não se pense que ser juiz em Portugal, neste momento é profissão de risco. Não. Nada disso. A hipótese que coloquei é puro delírio de quem está intelectualmente exausto.
Que risco pode haver nos tribunais que mereçam policiamento ? Nenhum seguramente. Quem lá vai é tudo boa gente, não há situações de conflito entre os utentes, e com o nível de felicidade social do povo português é de esperar alguma atitude menos cordata? Jamais.
E que risco haverá em ter no gabinete todos os dias cidadãos enfurecidos (porque assumiram como dores suas e boas todas as aleivosias que diariamente povoam os media contra os juízes) utilizando como argumento para a sua fúria o facto de o “seu” processo ( que entrou na maioria dos casos 15 dias antes) não ter sido decidido já? JÁ E EM SEU BENEFÍCIO, CLARO!!. E que importância tem se, contas feitas com os "ofendidos, se conclui que nos seus sábios conhecimentos sobre "as leis", o “seu processo” devia, no seu claro entendimento, ter sido decidido ainda antes de lhe terem posto o malfadado carimbo de entrada no tribunal ??? Com a fama que tem pois que se sinta a justiça culpada, por ele, cidadão, apenas ter agido perante a mesma num tempo em que agora, bem vistas as coisas, já tudo devia estar decidido.
E que risco há quando se está perante pessoas, de cujos bolsos ressaltam formas volumosas, pouco confortáveis de transportar mas com toda a certeza merecidamente levadas até ali, e que em linguagem cuidadosamente agressiva deixam ( pelo menos) bem explicito que estão ali para que se faça ... o que querem, e quanto antes?
E que risco há quando o argumento jurídico mais forte é que "ou o meu processo acaba já ou venho aqui e mato-os a todos".
Não há risco para a Justiça, porque este tipo de argumentos não são consideráveis e muito menos considerados.
Quanto ao risco pessoal dos que trabalham nos Tribunais todos os dias como juízes, meus concidadãos, não se incomodem; é porque se nada de mal ainda aconteceu seguramente que com a ajuda de Nossa Senhora de Fátima, Alá, Maomé ou até Bin Laden, nada há de acontecer. E se acontecer desde que cada um dos leitores não esteja lá no momento errado, que mal vem ao mundo. Paciência, são ossos do ofício.
Agora como já não são ossos dos ofícios de uma série de outras categorias profissionais foram-lhes atribuídos subsídios de risco e polícia permanente à porta. Isto para profissionais que não são titulares de nenhum Órgão de Soberania.
Porque quanto aos demais, ora essa, onde já se viu os senhores legisladores, vulgo deputados, não estarem devidamente seguros das suas pessoas, quando legislam coisas tão delicadas como aquela Portaria do salário mínimo que no artigo primeiro o fixa em euros , no artigo segundo "repristina", ou seja, coloca em vigor, uma outra norma que diz que o dito salário mínimo é de … 17.500$00?
Legislar é perigoso, potencialmente perigoso ( sobretudo quando não se entende quais as consequências práticas dos diplomas, eu diria).
Mas aplicar a lei, mandar colocar indivíduos , com cadastros que davam livros, atrás das grades, por mais uns anitos, numa sala cheia de gente apetrechada a seu bel prazer, sem a polícia por perto nem nicho para santo protector, é isento de perigo. Vai lá agora alguém levar mais uns anos de prisão a sério? Ou o pagamento de uns dinheiritos ao vizinho, a quem só de pensar no dito fica com divertículos intestinais ? Ora, francamente !
Que rica profissão. Privilégios não faltam, o que falta é tempo para os gozar.
E já agora: Alguém deu por ter sido nomeado para director do SIS, por acaso nesta altura dos acontecimentos ( cuja discrição se dispensa, e em véspera de uma greve ) , um juiz, por acaso membro do Conselho Superior da Magistratura, por acaso até eleito pelos seus pares, e por acaso com o que se prevê venha a ser o anuimento daquele mesmo Conselho, que por acaso já obstou a outras nomeações? Não se nota.
Não que tenha nada contra o SIS, nem contra quem nomeou o Sr Juiz, muito menos contra o o Sr. Juiz escolhido ( que pessoalmente conheço e considero), o Conselho Superior da Magistratura, ou as suas decisões.
Fico é com a desagradável dúvida sobre com quem ( num momento de tensão como este, com um pacote de medidas e intenções politicas que colocam os direitos dos juízes ao nível dos de escravos, e prenunciam a colocação da função judicial do Estado ao serviço das demais , pondo em crise a subsistência do regime democrático) podem os cidadãos contar para que se mantenha os juízes a exercer com plenitude as suas funções, que se se corporizam no despacho diário dos processos judiciais não deixam de ter o seu cerne, a sua razão de existir, no facto de o poder judicial ser a única estrutura do Estado que garante o respeito pelo princípio da legalidade, e os juízes os únicos garantes do efectivo funcionamento dessa estrutura, maxime naquelas vertentes que no dia a dia deixa aos cidadãos o sossego da expectativa de continuarem a viver numa democracia e não num qualquer regime totalitário.
É que o que distingue os regimes políticos democráticos dos totalitários é a actuação da estrutura política dominante. Ora o despojamento das características de independência e inamovibilidade, sem as quais não é efectiva a actuação do poder executivo, afigura-se-me verdadeiramente assustador. Quem é então o garante do cumprimento das normas constitucionais no que ao poder executivo respeita?»

Será preciso dizer mais alguma coisa?