2024-12-28

O regresso da censura (4)


Boa parte do público apercebeu-se do aparecimento desta nova modalidade de censura e, cada vez mais, tem plena consciência da sua existência, até porque ela é por demais evidente. Algumas notícias são tão patentemente lacunares em aspectos essenciais, que até se tornam anedóticas. A tal ponto, que admito a hipótese de o jornalista que elabora a notícia o fazer de forma a, intencionalmente, não só evidenciar as lacunas, como usar palavras sugestivas daqueles que foi «incentivado» a omitir. Tal qual as descrições que me lembro de ver, no pós-revolução, jornalistas fazerem da sua actividade no tempo da censura prévia do Estado Novo. A palavra proibida é substituída por uma palavra que a sugere. Ou, em vez disso, a notícia é elaborada de forma a ficar patente que se encontra incompleta.

Dou dois exemplos recentes, relativos ao mesmo evento – link 1; link 2.

É evidente que falta, em qualquer destas notícias, um facto fundamental para o leitor compreender o que realmente se passou. Em contrapartida, tudo indica que quem as escreveu quis dar a conhecer esse facto através do fornecimento de outros que claramente o indiciam.

Assim, nesta notícia, escreveu-se que quem destruiu o café foi uma «família» e não, por exemplo, um «grupo de pessoas»; nesta, o grupo de agressores também foi designado como «família» e indica-se, como facto que desencadeou a agressão, um desentendimento entre o «patriarca» dessa família e os responsáveis de um café.

A «palavra proibida» («ciganos», obviamente) nunca foi escrita, mas foram-no palavras que a sugerem de forma evidente. Tal qual acontecia no tempo do Estado Novo, quando a notícia fosse escrita por um jornalista mais atrevido, que quisesse pôr à prova a sagacidade e a atenção de quem, então, desempenhava a odiosa tarefa do policiamento da palavra.

É neste ponto que nos encontramos. Há quem viva muito bem com isto. Há, até, quem afirme que isto fortalece a democracia, parecendo esquecer-se de que esta pressupõe a existência de liberdade de expressão e de liberdade de informação.

Não é o meu caso. Vivo mesmo muito mal com limitações à liberdade de expressão e à liberdade de informar e estou certo de que as mesmas estão a minar a democracia. Amo demasiado a liberdade, o conhecimento e a verdade, para me conformar com este estado de coisas.


2024-12-21

Mãos na parede


Uma certa elite político-mediática caiu em peso nos canais de televisão a que tem livre acesso para expressar a sua indignação pela forma como a PSP executou, no passado dia 19, uma «operação especial de prevenção criminal» na zona do Largo de Martim Moniz, em Lisboa.

Nada oponho a que o faça, claro está. Parafraseando o sobranceiro chanceler alemão ao referir-se, ontem, ao apoio manifestado por Elon Musk ao partido «Alternative fur Deutschland», direi que até aquela elite tem liberdade de expressão, que inclui a de estar errada.

Porém, qual é a razão concreta de tanta indignação?

Pelo que percebi, é uma única foto, na qual, numa rua, são visíveis 4 ou 5 dezenas de pessoas, de costas, com as mãos na parede, vigiadas por alguns polícias, com a evidente finalidade de serem revistadas. Viola o princípio da proporcionalidade, dizem. Até ouvi alguém comparar o que se vê na foto com um cenário de guerra!

Vamos por partes.

Aquilo que se vê na foto em questão constitui uma prática rotineira em operações policiais que tenham finalidade semelhante àquela que foi realizada no Martim Moniz, seja em Portugal, seja em qualquer outro Estado de Direito Democrático. Trata-se de um procedimento normalíssimo. Desagradável para quem a ele for sujeito, como é evidente, mas não mais que isso. Ninguém está livre de ser alvo dessa modalidade de emprego da força pública, ou de outras que estejam previstas na lei, desde uma «operação stop» a uma busca domiciliária. Desde que o emprego da força pública se faça em conformidade com a Constituição e a lei ordinária, quer nos pressupostos, quer na forma de execução, estará garantida a sua conformidade com os princípios do Estado de Direito Democrático.

Assim somos conduzidos à questão da proporcionalidade da realização e da forma de execução da operação da PSP. Os políticos e comentadores que vi e ouvi insistiram na ideia de desproporcionalidade, mas sem explicitarem claramente um dos termos da relação entre meios e fins, que é o que está em causa quando se avalia a proporcionalidade de determinada actuação policial. Disseram e repetiram que os meios foram excessivos, mas foram vagos na identificação dos fins da operação. Sabem que fins foram esses? Conhecem a gravidade da situação que determinou a realização da operação? Conhecem o grau do risco que a realização da operação envolvia para os agentes da PSP e a população da zona? Sobre estas questões, nada, ou quase nada.

Uma das pessoas que ouvi comparava os meios empregues com os resultados obtidos (a montanha teria parido um rato, segundo ela), para fundamentar o seu juízo de desproporcionalidade. Errado! A ponderação a fazer é entre meios e fins, não entre meios e resultados. Uma operação policial desproporcional não é o mesmo que uma operação policial fracassada.

Além de que esta operação policial nem sequer pode ser considerada um fracasso. Entre o mais, foram apreendidos produtos estupefacientes, 7 bastões e 17 envelopes com fotos tipo passe que se suspeita destinarem-se à falsificação de documentos de identificação. Quem considera que a montanha pariu um rato, esperava que a PSP encontrasse o quê? Um tanque de guerra? Um míssil? Um paiol?

Portanto, sobre a alegada desproporcionalidade, ficamos conversados.

No que toca à alegada semelhança da situação captada pela foto com um cenário de guerra, apenas demonstra um duplo desconhecimento: do que seja uma operação policial e do que seja uma guerra.

Houve alguém que até pareceu querer ser engraçado, ao evocar a semelhança da «operação especial de prevenção criminal» com a designação dada pela Federação Russa à sua «operação militar especial» na Ucrânia. Ao contrário do que essa pessoa sugeriu, não se trata de uma designação pomposa inventada pela PSP para a ocasião, mas sim de terminologia legal, que pode ser encontrada, por exemplo, logo no n.º 1 do artigo 1.º da Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23.02).

Enfim, mais uma vez, ficou comprovado o afastamento da elite político-mediática a que me venho referindo em relação ao país real, aos bairros e às ruas onde vivem os cidadãos comuns. Estes senhores nunca se tinham apercebido do que é uma «operação especial de prevenção criminal»? Nunca tinham visto pessoas de mãos nas paredes enquanto agentes de autoridade as revistam?

Se já tinham visto, por que razão só agora ficaram indignados?


2024-12-10

«Anti-racismo» de sentido único


A jornalista Sandra Felgueiras entrevistou Tiago Cacais, o infortunado condutor de um autocarro da Carris a quem um grupo de indivíduos infligiu, segundo ele intencionalmente, graves e irreversíveis queimaduras durante os motins que se verificaram na zona da Grande Lisboa no final de Outubro.

Sandra Felgueiras fez-lhe a pergunta que se impunha. Aquela que poucos colegas dela teriam coragem para fazer. Transcrevo essa parte da entrevista:

Condutor: (…) Eu só fazia uma pergunta: Mas porquê eu? Porquê a mim? Porque é que não me deixaram sair do autocarro?

Sandra Felgueiras: E qual é a resposta que dá a si próprio?

Condutor: Não tenho resposta. Ou é por ser branco… porque os meus colegas, no Bairro do Zambujal, foram convidados a sair do autocarro. E eram de cor. E eu era branco.

Independentemente de qual seja a convicção do condutor do autocarro, estamos perante um facto objectivo: no decurso dos motins, vários autocarros foram incendiados por grupos de indivíduos «negros», como retaliação pela morte de Odair Moniz; a todos os condutores desses autocarros foi permitido abandoná-los em segurança, com excepção de Tiago Cacais, que foi, segundo diz, queimado intencionalmente; Tiago Cacais é «branco» e os restantes condutores são «negros».

Decorreram cerca de quinze dias desde a transmissão da entrevista na TVI.

Os profissionais do «anti-racismo» não tomaram posição, nem fizeram qualquer manifestação. Os políticos que costumam cavalgar a onda do «anti-racismo», também não. Em flagrante contraste com o alarido que fizeram aquando da morte de Odair Moniz, ficaram, agora, caladinhos, como nesta ocasião.

Enfim, são as intermitências de que aqui falei.


2024-12-07

Negacionismos (1)


A questão que aqui enunciei era, obviamente, mera retórica. Nunca menosprezo a lata das pessoas que referi.

Como era previsível, mantém-se a narrativa oficial de que Portugal é um país seguro. Um dos mais seguros do mundo, imagine-se.

Entrámos, decididamente, no domínio do negacionismo em matéria de criminalidade. A caminho do abismo, mas sem alarmismo!


2024-11-24

O regresso da censura (3)


Em 2007, o Governo desferiu uma decisiva machadada na liberdade de expressão, na liberdade de informar e no direito a ser informado, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 63-A/2007, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 03.05.2007. Era então primeiro-ministro José Sócrates. O teor do seu ponto 101 era o seguinte:

«Incentivo ao desenvolvimento de mecanismos de auto-regulação dos media, estruturados em função da ética e da deontologia profissional (PCM/ACIDI, I.P./GMCS).

Incentivar, respeitando a autonomia dos media e a ética e deontologia dos jornalistas, o desenvolvimento de mecanismos de auto-regulação que abranjam o domínio das notícias sobre imigração, nomeadamente quanto ao rigor dos factos e ao enquadramento adequado, por forma a conter os efeitos perversos de indução de racismo e xenofobia que os media podem gerar.

Apelar à aplicação universal da regra de não identificação de nacionalidade ou de etnia nas noticias, excepto quando esta for explicativa do conteúdo da notícia, bem como à recusa de utilização de categorias grupais, enquanto sujeito da notícia ou como enquadramento de um determinado comportamento.»

O efeito persuasivo deste «incentivo» foi surpreendente. Estava em causa uma importantíssima limitação à liberdade de informar, um verdadeiro apelo à auto-censura, eufemisticamente designada por «auto-regulação». Seria de esperar uma forte e indignada reacção dos jornalistas, como até então acontecia sempre que aquela liberdade pudesse ser posta em causa.

Mas não! Não me recordo de qualquer resistência digna desse nome por parte da classe jornalística. Na sua esmagadora maioria, os jornalistas comeram e calaram. Ou melhor, comeram, calaram e cumpriram. E continuam a cumprir, quase duas décadas depois. O poder político foi, entretanto, apertando a malha desta nova forma de censura e a generalidade dos jornalistas, em vez de se indignar e resistir, foi-se encolhendo.

As notícias sobre a prática de alguns crimes foram-se, assim, tornando patentemente incompletas. Por vezes, anedoticamente incompletas.

 

Mensagens anteriores sobre este tema:

O regresso da censura (1) – link

O regresso da censura (2) – link  


2024-11-19

O regresso da censura (2)


O que aqui referi é particularmente negativo quando ataca jornalistas. Fazer jornalismo é, entre o mais, prestar toda a informação sobre determinado evento que deva ser considerada relevante à luz do interesse da generalidade do público, sem omissões.

Por exemplo, quando se noticia a ocorrência de um crime, o público não quererá, certamente, conhecer a cor das calças do seu suposto autor, ou se ele tem mau hálito. São factos obviamente irrelevantes.

Todavia, o mesmo não acontece com a identidade, as características pessoais (sexo, idade, nacionalidade, origem) e o enquadramento social do autor do crime (se trabalha, qual a sua profissão, se tem antecedentes criminais e/ou é conhecido pela prática habitual de factos semelhantes, se se encontra em liberdade condicional, se é toxicodependente), bem como o que o terá motivado a actuar daquela maneira e o contexto em que os factos ocorreram. No fundo, os elementos que respondem às perguntas básicas: quem, onde, como e porquê. Trata-se de elementos essenciais de uma notícia, que o público tem o direito de saber e o jornalista o dever de investigar e comunicar, sob pena de não estar a fazer jornalismo, mas outra coisa qualquer.

Em alguns crimes, poderá ser essencial, para a apreensão de todos os traços relevantes da situação, saber, por exemplo, se o autor do crime ocupa determinado cargo público ou privado, se pertence a determinado grupo social ou religioso, se integra determinada associação ou movimento político. Tivemos, recentemente, um exemplo disso.

Desde que Portugal vive em democracia, era com toda a naturalidade que os jornais, ao noticiarem a prática de crimes, forneciam, em toda a medida do que conseguissem apurar, os elementos acima referidos. O mesmo faziam os canais de televisão a partir do momento em que também passaram a noticiar, com frequência cada vez maior, a prática de crimes. Pelo seu lado, o público recebia essas notícias com igual naturalidade, sem que, tanto quanto me recordo, alguma vez tenha havido qualquer problema decorrente de lhe ser proporcionada informação completa.

Até que, um belo dia, o Estado resolveu intrometer-se. Havia demasiada liberdade de informar, não podia ser. Estávamos em 2007, tempo de muito má memória para a democracia em Portugal. Escreverei sobre isso em próxima mensagem.


2024-11-11

As intermitências do «anti-racismo»


Ainda se encontram sob investigação as circunstâncias que levaram um agente da PSP a disparar sobre Odair Moniz. Não obstante, o veredito da associação «SOS Racismo» foi imediato: o agente da PSP é racista e actuou motivado por esse sentimento. O comunicado que emitiu é claro: tratou-se de um «assassinato» (link).

Ou seja, para a «SOS Racismo», as dúvidas que ela própria enuncia naquele comunicado não passam de mera retórica, tudo parecendo já estar mais que esclarecido: o agente da PSP disparou com a intenção de matar Odair Moniz, sem outra justificação que o ódio que ele supostamente tem às pessoas «negras». O que implica que, logo à partida, se considere afastada a hipótese de legítima defesa, ou outra que implique descer do patamar superior, correspondente ao «assassinato».

Salta à vista que isto não faz qualquer sentido. Antes do apuramento das exactas circunstâncias em que Odair Moniz foi baleado, qualquer conclusão sobre a intenção do agente da PSP e a existência, ou não, de uma situação de legítima defesa por parte deste, é precipitada. Ainda mais precipitado é concluir que o agente da PSP é racista e que foi isso que o levou a actuar como actuou. As acusações feitas pela «SOS Racismo» são precipitadas, infundadas, ridículas e ofensivas. Também são oportunistas, pois nada mais visaram que encontrar um pretexto para a sua autora tentar justificar a sua existência e fazer prova de vida, ainda que isso implicasse lançar achas para a fogueira já ateada pela morte de Odair Moniz.

Não obstante, foram muitos aqueles que prontamente surfaram a onda do «anti-racismo» militante. Até se fez uma manifestação, escassos dias depois da morte de Odair Moniz, contra o alegado racismo, não só do agente que sobre aquele disparou, mas de toda a PSP. À qual não faltaram os habituais cartazes vexatórios da PSP e dos seus agentes e os não menos habituais políticos que não perdem oportunidades desta natureza para «aparecerem».

A pressa com que os militantes do «anti-racismo» condenaram o agente da PSP que disparou sobre Odair Moniz e enxovalharam a instituição que ele serve contrasta, porém, com o seu ensurdecedor silêncio noutras ocasiões em que, aí sim, a motivação racista de, pelo menos, alguns dos intervenientes, foi por demais evidente.

Em Julho de 2008, esta situação alarmou Portugal. Confrontos violentos entre «ciganos» e «negros» residentes no Bairro da Quinta da Fonte, na via pública, com uso de armas de fogo. Uma parte desses confrontos foi filmada e as imagens, que podem ser vistas no YouTube, são impressionantes.

Dediquei, então, algumas mensagens a este acontecimento. Nesta, salientei o silêncio daqueles que, então, denominei como «anti-racistas de serviço». Da parte deles, nem uma palavra sobre o assunto. Nem comunicados, nem manifestações, nada! Estrategicamente, calaram-se muito bem caladinhos. Até hoje.

Enfim, são um modelo de credibilidade, estes «anti-racistas» intermitentes.


2024-11-02

As prioridades da República


Há apenas 295 armas de electrochoque, vulgo tasers, para 14.000 agentes da PSP. O custo de cada taser ronda os € 2.000. Equipar todos os agentes da PSP com um taser custaria, pois, menos de € 28.000.000. Provavelmente, com € 10.000.000, ou nem tanto, já se conseguiria acudir satisfatoriamente às necessidades existentes. Uma quantia irrisória, considerando o total das despesas do Estado. Não obstante, a situação actual é a descrita. O número de tasers existentes corresponde a cerca de 2% do de agentes da PSP. Pior, é difícil.

Por aqui se vê, mais uma vez, que as prioridades da República andam, há muito, invertidas. Tem havido dinheiro para tudo o que é inútil: estádios de futebol, subsídios a quem se recusa a trabalhar, apoio financeiro a eventos que não interessam a ninguém e a associações, fundações e outras agremiações sem qualquer finalidade útil, criadas exclusivamente para sacar, através do Estado, dinheiro dos contribuintes, e por aí fora. Para aquilo que constitui o núcleo das funções soberanas do Estado, como é o caso da manutenção da segurança pública, ou não há dinheiro, ou, quando há, todos os cêntimos são contados. Consequência óbvia de se governar para a imagem e para satisfazer clientelas políticas e não em função do interesse nacional.

Que terão os responsáveis políticos que não dotaram a PSP de um número suficiente de tasers em devido tempo a dizer sobre isto? Parece-me que devem explicações à população. Num país decente, haveria jornalistas independentes e com coluna vertebral que lhas pediriam. E esses responsáveis políticos teriam de as dar, em vez de andarem, agora, a fingir que não é nada com eles e a chorar lágrimas de crocodilo pela morte de Odair Moniz, que muito provavelmente estaria vivo se o agente que sobre ele disparou estivesse munido de um taser.


2024-10-28

Armas não letais


A infeliz situação que levou à morte de Odair Moniz já serviu para tudo aquilo que não devia ter servido: motins e muito aproveitamento político. Em vez disso, deveria suscitar uma reflexão séria sobre as formas de minorar o risco de repetição de eventos dessa natureza.

Indo ao essencial e indiscutido: um agente da PSP efectuou um disparo, com a sua arma de serviço, na direcção de um homem que enfrentava, atingindo-o mortalmente. As circunstâncias exactas em que tal ocorreu serão oportunamente apuradas em sede própria.

Facto fundamental: uso de uma arma de fogo por um agente da PSP contra uma pessoa, com o propósito de a neutralizar. Terá de ser assim?

Não.

Existindo uma panóplia de armas não letais, é inexplicável que a única arma de que a generalidade dos agentes de autoridade é portadora seja de fogo. O porte de armas não letais permitiria uma maior eficácia da sua actuação com menos danos, para si próprios e para terceiros.

A arma de fogo é, obviamente, indispensável, para ser usada em situações extremas. Contudo, se também estivessem munidos de uma ou mais armas não letais, os agentes de autoridade estariam mais aptos para enfrentarem situações em que se imponha o uso da força mas o recurso a uma arma de fogo possa ser excessivo. Por exemplo, para enfrentarem indivíduos desarmados que pretendam agredi-los fisicamente, situação que, infelizmente, ocorre amiúde.

No fundo, para que os agentes de autoridade não se vejam perante o dilema do «tudo ou nada», acabando, na generalidade dos casos, por se ficar pelo «nada», deixando de cumprir as suas funções e pondo a sua vida e a sua integridade física em risco. Quando, excepcionalmente, optam pelo «tudo», é a desgraça que se vê.


2024-10-26

Dúvida


Interrogo-me sobre se, após uma semana como aquela que se viveu na zona da Grande Lisboa, os políticos, os comentadores e os meios de comunicação social «mainstream» terão a lata de continuar a tentar convencer-nos de que Portugal é um dos países mais seguros do mundo.

Aguardemos.


2024-10-25

Prisões: o preço a pagar


É claro que isto terá enormes custos, materiais e políticos.

Contará, seguramente, com a oposição daqueles que, por cegueira ideológica ou interesses mais prosaicos, rejeitam sistematicamente qualquer solução que aumente a eficácia do sistema de justiça penal, de que o sistema prisional constitui um elemento fundamental.

Lá virá a habitual «poesia jurídico-penal», linda de recitar mas absolutamente desfasada da realidade, cujo mote preferido é o mais que estafado argumento de que se deve apostar na «ressocialização» e não na prisão, como se a colocação destes dois termos em alternativa fizesse algum sentido.

Lá virá a queixa de que os tribunais portugueses aplicam demasiada prisão, seja a título de pena ou de medida de coacção, com a inerente proposta de alterações legislativas que limitem mais e mais tal possibilidade.

E lá virá, como proposta de «solução» para os problemas do nosso sistema prisional, a continuação destas práticasassim deixando tudo na mesma.

Em suma, a reforma do sistema prisional que se impõe implicará sobrepor decididamente o interesse nacional ao interesse partidário. O que, como se sabe, não é para todos os estômagos políticos.


2024-10-24

2024-10-22

Motins na Amadora e em Oeiras

 

O que foi noticiado:

Na madrugada de 21.10.2024, Odair Moniz conduzia um veículo automóvel na Avenida da República, Amadora. Ao ver um veículo da PSP, pôs-se em fuga, entrando no Bairro da Cova da Moura. Foi perseguido pelo veículo da PSP. Na fuga, embateu em diversos veículos que se encontravam estacionados. Após imobilizar o veículo que conduzia, prosseguiu a fuga a pé, pelas ruas do bairro, tendo sido perseguido pelos agentes da PSP. Estes dispararam para o ar, mas o fugitivo não parou. Os agentes da PSP tentaram detê-lo, mas o fugitivo opôs-se e tentou agredi-los com uma arma branca, após o que foi baleado numa axila e acabou por morrer no hospital para onde foi transportado. O agente da PSP que atingiu Odair Moniz foi constituído arguido.

Quem parece já saber tudo o que se passou:

A associação «SOS Racismo» já emitiu o seu julgamento. A culpa é, obviamente, do agente da PSP que efectuou o disparo. A motivação apontada pela «SOS Racismo» é a previsível: racismo. Está em causa «uma cultura de impunidade» nas polícias, afirma aquela associação. Para se atrever a proferir tão peremptória sentença, certamente a «SOS Racismo» já conseguiu apurar factos que o público e as próprias autoridades, que irão proceder a um inquérito, ainda desconhecem. Bem podia partilhar esse conhecimento.

O que está a acontecer:

Na noite de 21, foram incendiados vários contentores de lixo no Bairro do Zambujal, onde Odair Moniz residia. Várias paragens de autocarro foram destruídas. Quando os bombeiros tentaram entrar no bairro, foram corridos à pedrada.

Na noite de 22, um autocarro que fazia o seu percurso habitual pelo interior do Bairro do Zambujal foi interceptado por um grupo de indivíduos. Estes, após fazerem o condutor e os passageiros saírem, incendiaram o autocarro, que ardeu por completo. Posteriormente, foi incendiado um segundo autocarro, na Portela de Carnaxide. Um veículo da PSP foi atingido por um «cocktail molotov».

Os canais de televisão estão há horas a fazer «directos» dos locais onde os motins ocorrem.

Neste momento, interessa-me apenas registar os factos. A seu tempo, escreverei sobre tudo isto.


2024-10-21

Prisões: por que ponta pegar?


O sistema prisional de um país não passa de um elemento, fundamental é certo, do sistema de justiça penal. Deve, por isso, ser configurado de forma a adequar-se ao cumprimento dos fins que a lei penal aponta à pena de prisão.

Por aquilo que aqui afirmei, o Direito Penal português precisa de ser repensado, se se quiser que ele volte a ser levado a sério. O que, a acontecer, teria de se repercutir sobre a configuração do sistema prisional.

Porém, não podemos estar à espera disso, desde logo porque é altamente improvável que haja lucidez, saber, vontade e coragem para empreender tal tarefa. O estado deplorável a que o poder político deixou o sistema prisional chegar impõe urgência na tomada de medidas «mínimas» que evitem que este entre em ruptura.

Por onde pegar, então, neste imenso problema?

Por aquilo que se mostre necessário em qualquer quadro jurídico-penal. A saber, aumentar a capacidade do sistema prisional, reforçar a segurança das prisões e melhorar substancialmente as condições em que os reclusos cumprem as suas penas. Ou seja, construir novas prisões, adequadas às actuais exigências, e reabilitar as existentes. E com urgência. Para mais quando o encerramento do Estabelecimento Prisional de Lisboa, que é o que alberga o maior número de reclusos em Portugal, está para breve.

Já não existe margem para mascarar o problema com os truques habituais. A evolução da criminalidade no nosso país não se compadece com a reiteração da concessão de medidas de clemência, ou com sucessivas alterações legislativas de pendor laxista, entenda-se, cada uma mais laxista que a anterior. Laxismo sobre laxismo só poderá conduzir à falência do Estado enquanto garante da segurança pública e protector dos mais fracos contra a violência dos mais fortes. Quando o Estado recua no combate ao crime, é este que avança, ocupando o território por aquele deixado livre. Em vez disso, impõe-se reafirmar a autoridade do Estado, com a maior firmeza possível.


2024-10-20

Eloquentes omissões


Se há omissões plenas de significado, são aquelas que se verificam perante situações de evidente emergência. Se quem tem o dever de zelar pelo bom funcionamento de determinada realidade nada fizer no sentido de resolver situações dessa natureza que nesta ocorram, estará a demonstrar que não reconhece a sua existência ou, ao menos, a sua importância. A menos que seja tão louco ou incompetente que, reconhecendo embora tais existência e importância, confie que o problema se resolverá por si próprio. Ou tão destituído de escrúpulos que, por ocupar o cargo que lhe impõe aquele dever de zelo de forma meramente temporária, funde a sua inércia na expectativa de que, quando a coisa estoirar, já estará noutras paragens.

Pois bem, há cerca de 50 anos que o poder político omite ostensivamente o seu dever de cuidar do sistema prisional português, não obstante a magnitude dos problemas que este vem apresentando. Como aqui e aqui afirmei, o poder político tem-se limitado a ir gerindo a crise, empurrando os problemas com a barriga. Quando, por efeito dessa omissão das medidas que se impõem, a pressão dentro do sistema é de tal ordem que o perigo de explosão se torna iminente, o poder político inventa um pretexto para conceder uma amnistia e um perdão de penas, assumidos ou encapotados. Uma vez aliviada a pressão por meio destes expedientes, o poder político não volta a pensar no assunto até que a pressão volte a subir a níveis demasiadamente perigosos, o que, em princípio, só ocorrerá dali a alguns anos, quando a batata quente já estiver nas mãos de outros. Nunca o poder político conseguiu fazer melhor que isto.

Esta omissão é inadmissível, vergonhosa e imperdoável.

Se, diante de um incêndio, um corpo de bombeiros, em vez de procurar extingui-lo, cruzasse os braços e deixasse arder, seria crucificado. O mesmo aconteceria a um nadador-salvador que, diante de um banhista em risco de afogamento, nada fizesse.

Já os políticos que, no último meio século, deixaram os problemas do sistema prisional avolumar-se diante dos seus olhos sem esboçarem qualquer tentativa séria e consistente de os resolver e, muitas vezes, ainda se atrevendo a debitar discursos completamente desfasados da realidade para tentarem esconder a sua incompetência e o seu desleixo, como o de que a causa dos problemas do sistema prisional é os juízes decretarem demasiadas prisões preventivas, proferirem demasiadas condenações em penas de prisão efectiva e estenderem estas por tempo excessivo, nunca foram chamados a responder (politicamente, claro) pelos seus erros e omissões. Seria justo e, seguramente, pedagógico que o fossem, mas é claro que isso nunca irá acontecer. Este tipo de escrutínio não faz parte dos nossos hábitos.

Da descrita omissão, que se traduziu num verdadeiro «deixa arder», ou «deixa afogar», aquilo que resulta, com toda a clareza, é uma absoluta incapacidade e falta de vontade política para resolver os problemas do sistema prisional por parte de quem governou o nosso país no último meio século. Trata-se, pois, de uma omissão verdadeiramente eloquente.


2024-10-13

Tomada de posse do novo Procurador-Geral da República


O novo Procurador-Geral da República, Amadeu Guerra, tomou ontem posse.

Congratulei-me aqui com a sua escolha.

Registo agora a sua tomada de posse, neste blog que também é um caderno de memórias sobre os factos que considero mais relevantes no sector da justiça.

O que desejo que o novo PGR faça?

Não propriamente que «ponha ordem na casa», pois não há razão para concluir que a sua antecessora, Lucília Gago, não tenha mantido a casa na devida ordem. Pelo contrário, mesmo nos períodos mais complicados do seu mandato, Lucília Gago nunca vacilou. Aguentou firme todas as pressões e, quando entendeu que era a hora de prestar contas ao país, fê-lo de forma que considero irrepreensível. Saiu com a dignidade de quem cumpriu o seu dever.

Aquilo que espero do novo PGR é, sim, o que geralmente se espera de quem vem de novo. Energia renovada e um novo olhar sobre velhos problemas que conviria resolver.

O maior desses problemas é o dos «monstros processuais penais» que o Ministério Público cria devido a más práticas que nele se enquistaram. «Monstros processuais penais» esses que se arrastam na fase de inquérito durante anos a fio e que, em consequência disso, uma vez deduzida a acusação, têm como destino quase certo a prescrição do procedimento criminal, pelo menos em relação a uma parte dos crimes imputados, pois o prazo que resta não chega para a eventual instrução, o julgamento e os inúmeros recursos cuja interposição é mais que certa. Ficando a justiça do caso concreto por fazer e a credibilidade do sistema de justiça pelas ruas da amargura.

Aqui, no meu recôndito Monte, fico a torcer por que o novo PGR tenha o maior sucesso.

 

2024-10-07

3 pelo preço de 1


Este triplo homicídio chocou, naturalmente, os portugueses. Mesmo num contexto, como o actual, em que a criminalidade violenta se agrava de dia para dia no nosso país, a brutalidade deste evento sobressai.

Não me pronuncio sobre este caso concreto, por duas razões. Desde logo porque, acerca dele, apenas conheço o que tem sido divulgado nos meios de comunicação social, ou seja, quase nada. Depois, porque estou impedido (e bem), por dever de ofício, de me pronunciar sobre processos judiciais que não me estejam atribuídos. E, mesmo em relação aos que o estejam, apenas posso fazê-lo (e bem também) em cumprimento dos meus deveres funcionais e na sede própria, ou seja, no processo.

Pronunciar-me-ei, sim, a propósito da referida situação concreta, sobre uma das questões jurídico-penais que situações dessa natureza suscitam: a persistência do limite de 25 anos de prisão na hipótese de cúmulo jurídico de várias penas (artigos 41.º, n.ºs 2 e 3, e 77.º, n.º 2, do Código Penal), coincidente com o limite máximo da moldura penal aplicável a um único crime de homicídio qualificado (artigo 132.º, n.º 1, do mesmo código).

Os artigos 41.º, n.ºs 2 e 3, e 77.º, n.º 2, constituem, porventura, as normas mais irracionais, iníquas e aberrantes do nosso Código Penal. Atento o seu papel estruturante do nosso sistema punitivo, elas constituem, só por si, uma das razões fundamentais por que aqui afirmei que o nosso sistema jurídico-penal não é para levar a sério.

Graças a elas, quem matar mais de uma pessoa numa mesma ocasião tem direito a bónus: o essencial da sua punição será pela prática de apenas um dos crimes, que, se o homicídio for qualificado, poderá esgotar imediatamente o «plafond» dos 25 anos de prisão. Os restantes crimes pouco ou nada acrescentarão a essa pena, pois, dos 25 anos de prisão, não pode, em caso algum, passar-se.

Portanto, cometido o primeiro homicídio, o assassino pouco ou nada terá a perder se matar mais pessoas. O que constituirá um forte incentivo para ele aproveitar a ocasião e fazer o gosto ao dedo: mais homicídio, menos homicídio, pouca ou nenhuma diferença fará. De uma pena de 25 anos de prisão (que nem por sombras equivale a 25 anos de efectiva reclusão, diga-se) não passará.

Pior, o referido bónus da impunidade dos homicídios subsequentes não abrange apenas aqueles que forem cometidos na mesma ocasião. Por força dos artigos 41.º, n.ºs 2 e 3, e 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, o assassino poderá continuar a matar até ser preso sem qualquer problema, pois todas as penas parcelares daí resultantes serão englobadas no cúmulo jurídico de penas a efectuar, que não poderá exceder os referidos 25 anos de prisão. Mate ele mais uma, dez, cem ou mil pessoas. O que, além do mais, constitui um acrescido factor de risco para os elementos das forças de segurança que tiverem de o enfrentar tendo em vista a sua captura.

Este regime é absurdo. Por todas as razões e em toda a medida do possível, quem comete um crime, por mais grave que seja, tem de sentir que ainda terá algo substancial a perder se cometer mais crimes antes de ser condenado. Isso só se consegue se a lei estabelecer uma diferença significativa entre o limite máximo da moldura penal aplicável ao crime mais grave previsto na lei penal e o limite máximo da pena de prisão na hipótese de o agente cometer mais de um crime.

Concretamente, sendo de 25 anos de prisão o limite máximo da moldura penal aplicável ao crime de homicídio qualificado, o limite máximo da pena de prisão na hipótese de o agente cometer mais de um crime não deveria ser inferior a 35 ou a 40 anos de prisão.

Isto, claro, enquanto não houver coragem para alterar a Constituição e, subsequentemente, o Código Penal, no sentido da consagração da pena de prisão perpétua, à semelhança de numerosos países que, embora com regimes democráticos e respeitadores dos direitos humanos, não confundem democracia com laxismo em matéria de combate ao crime e, em matéria de direitos humanos, demonstram mais respeito pelos das vítimas de crimes que Portugal.


2024-09-28

Ainda a propósito dos objectivos do «Manifesto dos 50»


Entre os subscritores do manifesto dos agora «50x3», deve haver de tudo. Desde quem pretende «partir a espinha» ao Ministério Público, tentando, mais uma vez, acabar com o risco de este incomodar certas pessoas, até àqueles que apenas pretendem contribuir genuinamente para o bem comum por meio daquilo que o manifesto denomina como «sobressalto cívico». Alguns dos subscritores nem sequer devem ter uma ideia precisa sobre o que está realmente em causa relativamente a cada uma das questões suscitadas.

Não obstante, uma coisa é o que motiva cada um dos subscritores do manifesto e outra é aquilo em que o movimento assim gerado objectivamente se tornou na cena política nacional. Como aqui notei, os «50x3» deixaram de se apresentar como um mero conjunto de subscritores de um documento e passaram ao patamar seguinte: procuraram interferir, directamente e às claras, na escolha do novo PGR. Assim esclareceram, finalmente, ao que vinham.

Felizmente, os «50x3» não atingiram este seu objectivo. Ainda não se pronunciaram sobre a escolha de Amadeu Guerra para suceder a Lucília Gago, pelo menos que eu tenha dado por isso (o seu site continua sem actualização). Contudo, é óbvio que o perfil do novo PGR corresponde, pelas melhores razões, exactamente àquilo que eles não queriam. Está de parabéns quem o escolheu.

Direi também que, ainda que fosse outra a minha profissão, eu nunca, mas nunca, assinaria um manifesto sobre a justiça que também o tivesse sido por alguns dos subscritores deste, que claramente incluo no grupo daqueles que pretendem «partir a espinha» ao Ministério Público. E, se pudessem, também partiriam a da Magistratura Judicial. Tenho memória do que essas «personalidades» fizeram e disseram em tempos que já lá vão. O facto de elas subscreverem o manifesto apenas o descredibiliza.

Finalmente, já que estou a escrever sobre intenções e objectivos, noto que, no final do ponto 7 do manifesto, quem o redigiu não resistiu a dar uma bicada ao actual primeiro-ministro. Alguma dúvida que pudesse existir acerca da localização do epicentro da redacção do manifesto ficou, assim, desfeita. Contudo, sobre matérias dessa natureza, não opino.


2024-09-26

Sobre os objectivos do «Manifesto dos 50»


Logo que o manifesto surgiu, gerou-se polémica sobre qual fosse a real intenção dos seus subscritores. Prestar um genuíno contributo cívico para o bem comum na área da justiça, alertando para disfuncionalidades que nesta se verificam (como os representantes do movimento insistentemente afirmaram), ou, simplesmente, atacar e procurar condicionar o Ministério Público no exercício da acção penal, escolhendo, para o efeito, um momento estrategicamente vantajoso como o actual, com a Procuradora-Geral da República (PGR) em final de mandato e no rescaldo da queda do Governo da República e do Governo Regional da Madeira na sequência de intervenções do Ministério Público no âmbito de processos de inquérito?

A leitura dos nomes dos primeiros 50 subscritores do manifesto não me deixou dúvidas a este respeito. Era mais que evidente que a razão estava do lado de quem sustentava a segunda tese.

Não menos evidente era que o futuro iria confirmá-lo. Tantas e tão proeminentes «personalidades», como os subscritores do manifesto se auto-proclamam, não iriam dar-se ao trabalho de congregarem esforços nos termos em que o fizeram unicamente para verterem, num documento, algumas genéricas considerações acerca de meia dúzia de temas relacionados com o sector da justiça. A coisa trazia, obviamente, água no bico. Sendo assim, o melhor era deixá-los poisar.

Pois bem, passadas as férias de verão, os 50, que já são 50+50+50 (ainda não tive acesso à lista dos terceiros 50, que não consta do site que este grupo criou), fizeram circular, pelos meios de comunicação social, um documento (que também ainda não consta do referido site) em que traçam o perfil que consideram desejável para o futuro PGR. Deixaram, assim, de esvoaçar sobre a meia dúzia de temas referidos no manifesto e foram, agora, direitinhos ao objectivo que os une: condicionar a escolha do novo PGR. Ou seja, finalmente, poisaram.


2024-09-23

Bipolaridade jurídico-penal


No rescaldo de mais uma trágica vaga de incêndios florestais, são muitas as vozes que reclamam a imediata aplicação de prisão preventiva a tudo o que for suspeito de ser incendiário e a sua ulterior condenação em pesadas penas de prisão efectiva, manifestando indignação por uma alegada brandura dos tribunais nesta matéria, nomeadamente por suspenderem a execução das penas de prisão numa percentagem excessiva de casos.

Há até quem sustente que, no início de cada época de incêndios, se deveria prender os «incendiários habituais» antes de estes entrarem em acção. Tanto quanto consegui perceber, tratar-se-ia de uma espécie de «prisão ultra-preventiva», que anteciparia, não apenas o trânsito em julgado de uma decisão condenatória, mas a própria prática do crime.

Pela minha parte, concordo com a condenação dos incendiários em penas severas, desde que justas, e com a aplicação de prisão preventiva quando os respectivos pressupostos legais se verificarem, nunca esquecendo, porém, que um deles é a existência de fortes indícios da prática do crime, coisa que, no calor do momento, tende a ser menosprezada por quem clama por «justiça firme e pronta». Já a «prisão ultra-preventiva» apenas poderá terá lugar num «anedotário jurídico-penal».

Registo, porém, que muitos daqueles que agora reclamam, dos tribunais, «mão pesada» em relação aos incendiários, são os mesmos que, uma vez apagados os incêndios, clamam que há presos a mais em Portugal, que os tribunais aplicam demasiada prisão preventiva e demasiadas penas de prisão efectiva e que estas são excessivamente longas.

São também os mesmos que, fora da época de incêndios, se dizem contra a pena de prisão porquanto há que apostar é na ressocialização, como se se tratasse de realidades antinómicas.

Aguardemos, pois, que, com a entrada do Outono, os hoje fogosos adeptos da «mão pesada» percam o gás. Não tarda, voltarão à habitual conversa mole dos «presos a mais» e da «ressocialização em vez de prisão». Também a este filme, já assisti vezes demais.


2024-09-22

Sobre a oportunidade do «Manifesto dos 50»


Tem inteiro fundamento a observação, lida algures, de que ímpetos reformistas da legislação penal e processual penal como aquele que o «Manifesto dos 50» corporiza tendem a coincidir com fases críticas de processos penais em que são envolvidas «pessoas públicas», mormente políticos proeminentes. Tais ímpetos não surgem do nada, nem por causa de processos que visem exclusivamente o «cidadão anónimo», que são a absolutamente esmagadora maioria.

Assim foi no rescaldo do «Processo Casa-Pia», que determinou a «Reforma Penal de 2007» (falei disso, nomeadamente, aqui), e assim volta a ser no da queda do Governo da República e do Governo Regional da Madeira na sequência de diligências praticadas em inquéritos criminais em curso. Assim se cumpre, mais uma vez, a nossa desgraçada tradição.


2024-09-20

O «Manifesto dos 50»

 

Um grupo de 50 cidadãos subscreveu um manifesto com a sua visão sobre o estado do nosso sistema de justiça, finalizando-o com algumas ideias, demasiadamente genéricas para poderem ser consideradas propostas, apelando à «resolução dos estrangulamentos e das disfunções que desde há muito minam a sua eficácia e a sua legitimação pública».

Os temas que o manifesto considera que merecem preocupação e justificam o «sobressalto cívico» que o mesmo encerra são os seguintes:

- Morosidade processual;

- Quebra do segredo de justiça;

- Mediatização de intervenções do Ministério Público contra agentes políticos;

- Colocação cirúrgica de notícias sobre investigações em curso;

- Graves abusos, em sede de investigação criminal, na utilização de medidas fortemente restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, nomeadamente:

- Proliferação de escutas telefónicas prolongadas;

- Buscas domiciliárias injustificadas;

- «Detenções preventivas» precipitadas e de duvidosa legalidade.

Salta à vista que, com excepção da genérica questão da morosidade processual, esta distinta lista de temas pouco tem a ver com as preocupações do cidadão comum em relação à criminalidade e ao sistema de justiça, mormente da justiça penal. Tem, sim, tudo a ver com factos ocorridos com alguns dos subscritores do manifesto e/ou pessoas que lhes são próximas.

O que, diga-se, nada tem de mal. É natural que cada um se queixe daquilo que o incomoda, ou que incomoda os seus. Porém, quem se queixa de dores próprias, ou de outrem porque lhe é próximo, deve assumi-lo, em vez de se arvorar em representante ou porta-voz do «Povo» (mencionado, em letra maiúscula, logo no 2.º parágrafo) ou da «sociedade portuguesa» (invocada no ponto 7). O manifesto pouco ou nada tem a ver com o povo, seguramente mais preocupado com temáticas criminais menos sofisticadas, como a de saber se, quando sai de casa, será assaltado ou, quando a ela regressar, a verá assaltada. Ou se os seus filhos serão agredidos ou assaltados na escola ou no caminho entre esta e a sua casa. Ou se o automóvel que anda a pagar em dolorosas prestações é furtado ou vandalizado.

Não surpreende, assim, a omissão de referência, no manifesto, à insegurança nas ruas e nos transportes públicos, ou à necessidade de um mais intenso e eficaz combate à criminalidade, cada vez mais violenta e organizada. Enfim, aos problemas relacionados com a criminalidade que, estou certo, são os que preocupam a generalidade da população residente no nosso país, em particular aquela que habita e/ou trabalha em zonas menos selectas.


2024-09-11

A execução de penas segundo Carlos Rato

 

Um efeito colateral da fuga de Vale de Judeus tem sido a passagem, pelos canais de televisão, de pessoas que, mal abrem a boca, revelam a sua ignorância sobre aquilo de que falam. Por vezes, uma arrogante ignorância.

Foi o caso de Carlos Rato, Director da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso, em entrevista à SIC.

Transcrevo um curto excerto:

«Nas prisões, um dos grandes problemas que existem são os juízes de execução de penas. Temos aqui um problema gravíssimo. Temos na execução de penas pessoas que estão lá porque ficaram no final da classificação, são os últimos da lista de juízes. Quem não consegue entrar para mais lado nenhum, vai para juiz de execução de penas. Quando as pessoas que são juízes de execução de penas não estão preparadas ou vocacionadas para fazer isso, claro que depois temos as penas maiores da Europa em execução. Temos as cadeias cheias de gente que não tem carta de condução.»

É notável conseguir-se errar tanto com tão poucas palavras.

1.º - É rotundamente falso que os juízes de execução de penas o sejam por se encontrarem no final da «lista de juízes» (Carlos Rato tem certamente em vista a lista de antiguidade dos magistrados judiciais, que pode ser consultada no site do Conselho Superior da Magistratura). Numa rápida consulta à lista mais recente, respeitante ao ano de 2023, contei 4 juízes de execução de penas entre os 100 primeiros juízes de direito, nomeadamente a minha colega que, segundo tem sido noticiado, proferiu a decisão que terá determinado a transferência de um dos fugitivos do Estabelecimento Prisional de Monsanto para o de Vale de Judeus. Já entre os 100 juízes de direito constantes do final daquela lista, não vi qualquer juiz de execução de penas. Resta esclarecer que constam da lista 1398 juízes de direito.

2.º - Não são os juízes de execução de penas que condenam os reclusos nas penas que estes cumprem. Os juízes de execução de penas limitam-se a proferir decisões respeitantes à fase de execução das penas de prisão em que outros juízes, colocados noutros tribunais, condenaram os reclusos. Nada têm a ver com a natureza e a medida das penas em que os reclusos foram condenados, nomeadamente com a duração das penas de prisão.

Portanto, Carlos Rato errou em toda a linha. Nem os juízes de execução de penas são «os últimos da lista», nem, ainda que o fossem, isso poderia ter qualquer influência na duração das penas que os reclusos cumprem. Ou seja, tratou-se de mais um episódio de poluição jurídica.

Sobre a alegação de que «temos as penas maiores da Europa em execução» e de que «temos as cadeias cheias de gente que não tem carta de condução», que também ouvi, por estes dias, a Vítor Ilharco, secretário-geral da APAR, escreverei um dia destes.


2024-09-10

Como mascarar os problemas do sistema prisional


Escrevi aqui que, ao longo dos últimos 50 anos, o poder político se tem limitado a «gerir a crise» e a empurrar com a barriga os problemas do nosso sistema prisional, em vez de os resolver. Pior, especializou-se em mascará-los.

O expediente para o efeito mais utilizado tem sido a concessão de amnistias e perdões de penas quando a pressão resultante da sobrelotação das prisões se torna insuportável, colocando-se em liberdade, de um dia para o outro, algumas centenas de reclusos. As visitas papais a Portugal são o pretexto preferido, mas até a Covid-19 serviu para conceder um perdão de penas encapotado.

Noutras ocasiões, a máquina político-mediática é posta em marcha no sentido de espalhar a ideia de que há demasiados presos em Portugal. Uma vez preparado, dessa forma, o terreno, sai uma alteração da legislação penal que tem por efeito a imediata libertação de mais algumas centenas de reclusos. A «Reforma Penal de 2007» foi um flagrante exemplo disso. Embora não assumido (obviamente…), um dos objectivos centrais dessa reforma foi esvaziar prisões, fosse a que preço fosse, como em devido tempo salientei:

- Objectivo: esvaziar prisões (1) – link

- Objectivo: esvaziar prisões (2) – link

- Objectivo: esvaziar prisões (3) – link

A enfrentar os reais problemas do sistema prisional, reformando-o de alto a baixo, é que todos têm fugido. É complicado, é demorado, requer investimentos significativos e, ainda por cima, não dá votos.


2024-09-08

A propósito da fuga de Vale de Judeus

 

Ontem de manhã, evadiram-se do Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus, classificado como de alta segurança, 5 reclusos, 4 dos quais considerados muito perigosos. Saltaram o muro e foram às vidas deles, sem oposição e sem serem, sequer, detectados por quem os guardava.

A comunicação social não fala de outra coisa desde que a fuga foi conhecida. Subitamente, toda a gente acordou para o facto de as prisões, à semelhança da generalidade dos restantes sectores do Estado Português, se encontrarem numa situação de ruptura. Sobrelotadas, em péssimas condições, com um número insuficiente de guardas prisionais e com graves falhas de segurança.

Os problemas do sistema prisional não são de hoje, nem do último ano, nem sequer dos últimos 10 anos. Nos últimos 50 anos, o sistema prisional tem sido, pura e simplesmente, desprezado pelos sucessivos governos. O país vive de costas voltadas para as suas prisões, fingindo que elas não existem, e só se lembra delas quando ocorre uma evasão mais aparatosa, como a de ontem, ou quando algum cidadão mais ilustre é preso. O mesmo tem feito o poder político, que, em vez de enfrentar os inúmeros problemas existentes, se limita a «gerir a crise», empurrando os problemas com a barriga. É assim há 50 anos, repito.

Enfim, pode ser que seja desta que o país acorde para a gravíssima situação das nossas prisões. Plagiando o «Manifesto dos 50», que obviamente se concentra em questões mais selectas que a do sistema prisional, pode ser que se verifique um «sobressalto cívico» que leve o Estado Português a, 50 anos depois, voltar a cuidar das suas prisões.