2005-12-23

Um fiasco chamado videoconferência - 2


Muita gente tem falado sobre a fraca eficácia do sistema de justiça – que me parece evidente –, mas poucos têm procurado apurar, com rigor e sem outra preocupação que não seja a de melhorar o funcionamento da «máquina», o que realmente emperra esta última.

Com plena consciência da minha insignificância – não passo de um juiz de 1.ª instância que, um dia, resolveu fazer um blog –, vou por aqui deixando o que penso acerca das causas da referida pouca eficácia. À falta de outra utilidade, o simples facto de aqui ir escrevendo dá-me prazer e isso basta-me.

Vou escrever mais um pouco sobre a videoconferência.

O sistema de videoconferência foi introduzido nos tribunais há alguns anos, os códigos de processo foram alterados por forma a prever a inquirição de pessoas por esse meio e, desde então, não conheço qualquer actividade de acompanhamento, por parte do Ministério da Justiça ou de alguma entidade por ele mandatada, do seu funcionamento. Pelo menos, esse acompanhamento não existiu nos tribunais onde tenho exercido funções.

Ninguém se preocupou em indagar, junto dos juízes, se o sistema de videoconferência funciona em condições, se as coisas correm bem no dia a dia. Provavelmente, por se pressentir que as respostas seriam pouco agradáveis.

Na parte que me toca – e, por aquilo que por aí vou lendo e ouvindo, o mal é geral –, a experiência tem sido a pior possível.

Na maior parte das vezes, ou não se vê, ou não se ouve, ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Então, lá tem de vir a testemunha ao tribunal onde o julgamento está ser feito, em data posterior, com prejuízo para todos – para a testemunha, porque já perdeu tempo a deslocar-se ao tribunal onde deveria ser ouvida e acabou por não o ser, acabando por perder dois dias em vez de um; para os juízes e advogados, devido ao facto de a audiência de julgamento ter de continuar noutro dia, o que, para quem tem a sua agenda sobrecarregada, constitui um enorme problema.

Noutras vezes, vê-se e ouve-se mal a pessoa que está «do outro lado», mas, apesar de tudo, quem está na sala de audiências lá vai, a custo, percebendo. Porém, coloca-se um problema adicional: a qualidade do som é de tal forma deficiente que a sua gravação – feita de forma artesanal, ou seja, com o microfone do gravador de cassetes encostado à coluna do computador por onde sai um som já dificilmente perceptível – não é possível. Também nestas situações tem de agendar-se uma data posterior para a inquirição presencial.

Na melhor das hipóteses, vê-se e ouve-se mal mas, apesar de tudo, quem está na sala lá vai percebendo e a gravação também é perceptível.

Porém, em qualquer das referidas hipóteses, uma coisa perde-se sempre e em grande quantidade – tempo! Perde-se muito e precioso tempo de trabalho!

Com o estabelecimento do contacto com o outro tribunal (o que, na maior parte das vezes, pressupõe um sem número de tentativas), a constante necessidade de interromper o inquirido para este repetir palavras que não foram perceptíveis, as quebras de comunicação que por vezes ocorrem e o seu restabelecimento, entre outros incidentes, não é exagero dizer-se que um depoimento através de videoconferência demora, no mínimo, o dobro do tempo de um depoimento presencial.

Seria bom que alguém fizesse estas contas, calculasse o tempo de trabalho que já se perdeu em consequência da introdução da videoconferência e publicasse as conclusões.

Mais não fosse para que os cidadãos que não pertencem «ao meio» e muito legitimamente se interrogam acerca das razões por que os tribunais portugueses funcionam mal começassem a obter as respostas a que têm direito.

2005-12-17

Transcrições


No blog VERBO JURÍDICO foi citada uma notícia segundo a qual o Sr. Dr. Rui Pereira, numa conferência inserida no debate público sobre a «A Reforma do Sistema de Recursos em Processo Penal», considerou que as transcrições das audiências são «um problema de morosidade», já que «tudo tem de ser transcrito antes (de o recurso) subir aos tribunais superiores», e que não faz sentido que «tudo tenha que ser transcrito», alertando para o facto de o actual sistema ter criado uma «indústria muito próspera» das transcrições.

Tem toda a razão.

Os efeitos da necessidade de transcrição da prova produzida nas audiências de julgamento, quer em termos de morosidade do processo, quer em termos de custos directos com a realização da transcrição, quer em termos de desperdício de tempo de trabalho, são catastróficos.

Não raro, os processos esperam largos meses, após a prolação da sentença da 1.ª instância, pela transcrição da prova produzida na audiência de julgamento, só depois podendo ser enviados para o tribunal superior. E os custos das transcrições são, frequentemente, astronómicos - basta pensar que há audiências de julgamento com inúmeras sessões, o que significa centenas ou, mesmo, milhares de horas de depoimentos para transcrever.

Em contrapartida, não acredito que a transcrição traga algum benefício, embora reconheça que, sendo eu um juiz de 1.ª instância, não estou na melhor posição para falar acerca dessa matéria. Correndo o risco de errar, parece-me que, se a simples audição de cassetes pelo tribunal superior não fornece uma ideia precisa sobre a credibilidade de um depoimento (daí reclamar-se o registo da imagem), a transcrição desses depoimentos só pode conduzir a que o seu resultado fique ainda mais longe da realidade destes últimos do que a gravação.

Bem se andará, portanto, se se resolver este grave problema, eliminando-se os enormes desperdícios de tempo e dinheiro que actualmente se verificam.

E seria bom que, com o dinheiro que assim se poupará (que não será pouco), se dotasse os tribunais de sistemas de gravação e audição modernos e eficazes, em vez das velharias completamente ultrapassadas que actualmente aí existem.

2005-12-16

Um fiasco chamado videoconferência - 1


Há alguns anos, foi introduzido, nos tribunais, o sistema da videoconferência, destinado, fundamentalmente, a permitir a inquirição de pessoas em tribunal diferente daquele onde decorre a audiência de julgamento.

A publicidade que se fez desta medida, quer através de anúncios que passaram nas televisões inúmeras vezes e durante um largo período, quer nos jornais e em luxuosos cartazes que foram obrigatoriamente afixados nos átrios e corredores dos tribunais, foi enorme e persuasiva.

Até parecia que, com a medida em causa, em conjunto com a contemporânea proibição de marcar audiências de julgamento com uma dilação superior a 3 meses (acerca da qual já falei, aqui e aqui), o governo de então tinha descoberto, finalmente, a fórmula mágica para resolver, de vez, os problemas dos tribunais. Atendendo à forma como tais medidas foram apresentadas, muita gente deve ter tido essa sensação.

Quem não se lembra do anúncio em que uma actriz, fazendo de testemunha, conversava com um actor já grisalho e com uma beca vestida, ambos com um ar muito sereno, através de um sistema de videoconferência de tão elevada qualidade que só no final do anúncio se percebia do que se tratava? Aquilo parecia a melhor coisa do mundo!

Porém, como tantas vezes acontece, a realidade foi abissalmente diferente da publicidade. Para pior, naturalmente.

A apresentação pública do sistema, creio que no Tribunal de Loures, já não correu tão bem como no anúncio. Segundo se noticiou na época e me recordo, o sistema falhou em toda a linha e a cerimónia foi um fiasco.

Porém, nem assim se quis ver o que era óbvio, ou seja, que não estavam criadas as condições mínimas para o sistema de videoconferência funcionar.

Depois de tanta publicidade, ia-se lá desistir ou, sequer, parar para reavaliar a situação!

O que diriam as televisões e os jornais?

Avançou-se para o abismo, como é habitual.

De nada valeram as reservas que muitos dos que trabalham nos tribunais então manifestaram.

Nessa altura, o nome feio que nos chamavam ainda não era o de corporativistas – satisfaziam-se em nos chamarem conservadores.

Lá se instalaram sistemas de videoconferência nos tribunais, de má qualidade e com incompatibilidades entre si, que têm prestado um péssimo serviço e constituído um importante factor de ineficácia do sistema de Justiça.

Voltarei ao tema.

2005-12-15

ASJP - ELEIÇÕES


O Sr. Juiz Desembargador Alexandre Baptista Coelho já anunciou a sua candidatura à Presidência da Direcção Nacional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.

Brevemente, o Movimento Justiça & Democracia apresentará o seu candidato.

2005-12-08

Concentração e desertificação do interior - 2


Uma concentração de tribunais baseada unicamente em estatísticas referentes ao número de processos entrados em cada tribunal (ou, pior ainda, em estatísticas referentes ao número de inquéritos instaurados nos serviços do Ministério Público de cada comarca) contribuiria, inevitavelmente, para a desertificação do interior do país, como anteriormente referi.

No limite, levaria a concentrar tudo em Lisboa e a desertificação já não seria só do interior.

É claro que não é isto que defendo, como salientei no post anterior.

Quer pela razão, quer por sentimento, a última coisa que eu desejo é a desertificação do interior de Portugal, nomeadamente do Alentejo, minha terra adoptiva.

O que eu pretendo é que a maior parte do interior do país (que inclui o litoral alentejano), que tem uma orgânica judiciária própria do século XIX, passe a ter uma orgânica judiciária digna do século XXI – tal como o resto do país, que, apesar de tudo, já conseguiu chegar ao século XX.

E isso só se conseguirá com a especialização de tribunais, que pressupõe, aqui, a extinção de alguns deles.

Manter a estrutura actualmente existente, ou extinguir tribunais apenas para concentrar meios na Grande Lisboa e no Grande Porto, constituirá mais um contributo para a condenação do interior de Portugal a ficar cada vez mais estagnado, mais pobre, mais desertificado.

E, há que dizê-lo, a ficar cada vez mais longe de Lisboa e mais próximo de Espanha.

Concentração e desertificação do interior - 1


Um dos argumentos mais fortes contra a extinção de tribunais é o de que tal medida iria afastar a justiça das populações de zonas já desfavorecidas em vários outros aspectos.

Este argumento será procedente se a extinção de tribunais – que, a existir, se verificará, obviamente, sobretudo no interior de Portugal – se fizer sem contrapartidas ao nível da oferta de meios para a administração da justiça nas áreas afectadas por tal medida. Isto é, se a reorganização da orgânica judiciária se basear exclusivamente no critério estritamente quantitativo que se resume na seguinte fórmula – é no litoral, sobretudo na Grande Lisboa e no Grande Porto, que há mais processos, pelo que importa desafectar meios do interior do país e concentrá-los naquelas zonas.

Aí sim, mal por mal, mais vale deixar tudo como está. A extinção de tribunais do interior do país unicamente para concentrar recursos materiais e humanos no litoral e, fundamentalmente, na Grande Lisboa e no Grande Porto, seria um enorme erro. Seria, afinal, mais um indesejável contributo para a desertificação do interior, que se acentua em cada dia que passa, com evidente – para quem quiser ver, naturalmente – prejuízo para a coesão nacional.

Aquilo que defendo é completamente diferente de uma tal solução. Apesar de reconhecer que, infelizmente, é essa a solução mais provável, tendo em conta o que se tem passado noutros sectores da actividade do Estado, nomeadamente no da saúde – a rápida desertificação do interior do país, em especial do Alentejo, não acontece por acaso.

A única razão que poderá justificar a extinção de tribunais é a de proporcionar, às populações directamente afectadas por tal medida, uma melhor justiça na área respectiva.

Ou seja, devem ser extintos tribunais, mas com a condição de serem criados tribunais de competência especializada e dotados de suficientes meios materiais e humanos com jurisdição na mesma área.

Então sim, aquilo que as populações perdem ao verem extinto um tribunal de competência genérica mais próximo delas será largamente compensado por aquilo que ganham ao verem a sua região dotada de uma organização judiciária moderna e eficaz.

Agregação de comarcas - a dura realidade (conclusão)


Procurei, nos dois posts anteriores, justificar por que entendo que a reforma da organização judiciária que se avizinha deve ser aproveitada para acabar, de vez, com as situações de agregação de comarcas, a todos os títulos indesejáveis.

Das duas, uma: ou um tribunal tem um volume de serviço que requer a afectação de, pelo menos, um juiz em exclusividade e, então, por um lado, justifica-se a sua existência e, por outro, não tem cabimento afectar aquele juiz, em simultâneo, a outra comarca; ou, não tendo um tribunal tal volume de serviço, deve ser extinto, com a consequente fusão dessa comarca com outra.

Manter tribunais com 40%, 50% ou 60% de um juiz é que me parece não fazer qualquer sentido.

Não serve realmente as populações – no fundo, é fingir que ali existe um tribunal, que deveria pressupor, no mínimo, a afectação de um juiz a tempo inteiro – e gera significativas perdas de produtividade dos juízes e desperdício de dinheiro dos contribuintes.

Deveriam ser estas situações as primeiras a gerar a concentração de tribunais, embora não se deva ficar por aí, como resulta do que anteriormente afirmei.

2005-12-04

Agregação de comarcas - a dura realidade (continuação)


Creio que a maior parte dos juízes que têm a seu cargo comarcas agregadas estão no seu primeiro ano de efectivo exercício de funções.

Esta circunstância torna a solução da agregação de comarcas ainda mais perniciosa.

Antigamente, o exercício de funções numa comarca de ingresso constituía o período mais calmo da carreira de cada juiz. E bem. Era um período de aprendizagem, de aquisição serena de experiência profissional, de familiarização com a função, de amadurecimento.

É esse, aliás, o sentido da classificação das comarcas. Começar pelo mais fácil e ir caminhando, à medida que se adquire experiência profissional, para o mais difícil, ou seja, para as comarcas de acesso final.

Depois, veio o aumento exponencial de processos, que determinou, entre outras soluções de recurso (aquelas que seriam as verdadeiras soluções ficaram por tomar, como é habitual), a de agregar comarcas de ingresso, actualmente designadas como primeiro acesso.

Isto é péssimo para a formação e a carreira dos juízes. Onde antes havia a calma necessária ao sereno desenvolvimento da capacidade profissional do juiz em início de carreira, há, actualmente, uma constante correria entre dois tribunais, nunca se conseguindo, em qualquer deles, fazer tudo o que se desejaria e como se desejaria.

Além do mais, ficou adulterado o próprio sentido da classificação de comarcas – duas comarcas de primeiro acesso agregadas continuam a merecer essa classificação, apesar de, na realidade, ser muito mais complicado ser juiz desse conjunto de comarcas do que de uma grande parte dos lugares de acesso final.

No fundo, a agregação de comarcas tem-se traduzido em mais uma faceta – particularmente negativa porque afecta, principalmente, juízes em início de carreira – da situação de escravatura a que os juízes têm sido submetidos e que tem constituído o sustentáculo do funcionamento de um sistema de Justiça que, de outra forma, já teria entrado em colapso há muito.

2005-12-03

Agregação de comarcas - a dura realidade


Existem várias situações de agregação de comarcas.

Vou concentrar a minha atenção naquelas que melhor conheço, por integrarem a circunscrição onde exerço funções – Cuba/Portel e Almodôvar/Mértola.

Em qualquer destes dois conjuntos de comarcas, exerce funções um único juiz.

Na melhor das hipóteses, esse juiz está 3 dias por semana naquela que tem mais trabalho (onde reside) e tem de se deslocar 2 dias à outra.

É claro que há semanas em que o juiz tem de efectuar mais deslocações – porque, na comarca onde de momento não se encontre, aparece um processo urgente para despachar, ou um julgamento com processo sumário, ou um primeiro interrogatório judicial de arguido detido, serviço a que tem de acorrer logo que o mesmo surja, pois há prazos muito curtos a cumprir.

Mesmo na referida hipótese mais favorável, o juiz terá de realizar, semanalmente, duas viagens de ida e volta ao tribunal da comarca onde não se encontra sedeado.

O tempo de viagem entre Cuba e Portel ou Almodôvar e Mértola nunca é inferior a 1 hora. Por um lado, porque a deslocação inclui o juiz carregar com os seus próprios códigos e outros instrumentos de trabalho desde o seu gabinete até ao automóvel, a viagem propriamente dita e novo carregamento daqueles instrumentos de trabalho até ao seu outro gabinete. Por outro, porque os caminhos são maus – a estrada entre Almodôvar e Mértola é uma longa sucessão de buracos, o mesmo acontecendo com a estrada entre Cuba e Vidigueira.

É óbvio que o tempo gasto nessas deslocações constitui tempo de serviço – não é para o seu próprio recreio que o juiz as efectua, mas sim porque, sem elas, não conseguirá desempenhar as suas funções; e trata-se de deslocações, não entre a residência do juiz e o seu local de trabalho, mas sim entre dois distintos – e distantes – locais de trabalho.

Logo, qualquer das duas referidas situações de agregação de comarcas implica, no mínimo, a perda de 4 horas de trabalho por semana. Ou seja, 10% daquele que deve ser o período de trabalho do juiz.

Será isto pouco relevante?

Não me parece.

Quando se trata da avaliação da eficácia de uma organização, seja ela uma empresa ou um tribunal, 10% a mais ou a menos é muito.

Reforma da Organização Judiciária - 3


Em posts anteriores, defendi a fusão de algumas das comarcas actualmente existentes, com a consequente extinção de alguns tribunais.

Essa solução teria várias vantagens, entre as quais:

- Eliminação das despesas de funcionamento dos tribunais extintos;

- Nas situações de comarcas agregadas, evitar que o respectivo juiz tenha de efectuar deslocações constantes entre uma e outra, com a consequente diminuição da sua produtividade;

- Eliminação das despesas com essas deslocações;

- Aumento da dimensão de muitos dos tribunais subsistentes, que permitiria avançar no sentido da sua especialização, a qual me parece fundamental para que o sistema de Justiça acerte o passo com a realidade actual.

Foram deixados alguns comentários nas caixas respectivas, que alinham razões que, segundo os seus autores, desaconselham a solução que advogo.

Nos posts seguintes, darei a minha opinião acerca dessas razões.

Não pretendo refutá-las, pois elas são, em si mesmas, válidas.

Parece-me é que, não obstante a sua validade intrínseca, tais razões deverão ceder perante o interesse, que considero preponderante, da modernização da orgânica judiciária e do consequente aumento da eficácia do sistema de Justiça, que pressupõe a concentração de tribunais, desde que acompanhada pela especialização destes até ao limite do possível.

2005-11-28

Reforma da Organização Judiciária - 2


Neste post, manifestei a minha preocupação em que a reforma da Organização Judiciária que se avizinha tenha em consideração a realidade existente no terreno e não se faça exclusivamente com base em estatísticas e olhando para um mapa.

Vou concretizar esta preocupação com dois exemplos, qualquer deles na área do Círculo Judicial de Beja.

Existem, nessa área, duas situações de agregação de comarcas: Cuba/Portel e Almodôvar/Mértola.

O juiz de cada um destes dois conjuntos de comarcas tem de se deslocar sistematicamente entre uma e outra, o que, além de ser cansativo e redundar em perdas de tempo significativas (logo, em perdas de produtividade), sai caro ao Estado, que tem de pagar o custo de tais deslocações.

Por isso, parece-me que seria acertado extinguir uma das comarcas de cada um daqueles conjuntos: aumentar-se-ia a produtividade, acabavam as deslocações do juiz e eliminar-se-iam os custos de funcionamento de dois tribunais.

Ora, olhando apenas para estatísticas, os Tribunais de Cuba e Almodôvar poderão parecer mais importantes que os de Portel e Mértola, respectivamente. Logo, pareceria normal extinguir estes últimos, concentrando os serviços nos primeiros.

É este tipo de actuação que eu temo.

Importa ter em conta o parque judiciário existente.

Os tribunais de Portel e Mértola são edifícios novos, com condições excelentes.

Já o tribunal de Almodôvar, que funciona, há longos anos, em instalações «provisórias», é uma vergonha (não encontro palavra mais adequada e não vou perder tempo a tentar descrever algo que é indescritível).

O Tribunal de Cuba, que acaba de sofrer obras meramente «cosméticas», não oferece, por manifesta inadequação estrutural, condições mínimas para desempenhar o fim a que se destina.

Seria absurdo desperdiçar instalações óptimas e concentrar tribunais nas comarcas onde as instalações são deficientes. Correcto seria, obviamente, o contrário – concentrar tribunais onde as instalações são boas e afectar as restantes a outros fins.

Por isso, insisto:

- Antes de se tomarem decisões, tenha-se em atenção a realidade concreta de cada comarca, nomeadamente o edifício onde o tribunal está instalado; não se olhe apenas para as estatísticas e para o mapa;

- E não se aproveite a reforma da organização judiciária para desafectar, do sector, os imóveis com melhores condições, concentrando serviços nos piores e assim empobrecendo, ainda mais, o nosso já paupérrimo parque judiciário.

2005-11-25

Discurso do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça


Senhor Presidente da República, Excelência,
Senhor Procurador-Geral da República,
Senhor Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses,
Senhores Congressistas,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores

Seja-me permitido começar por dirigir algumas palavras a Sua Excelência o Senhor Presidente da República, na abertura deste VII Congresso dos Juízes Portugueses. Ao manifestar o gosto de integrar este espaço de abertura e a honra de assim o partilhar, aproveito para salientar a importância de tão elevada presença, cuja intervenção se adivinha ser de inestimável valor.

Em já vários fóruns judiciários, o contributo esclarecido de Vossa Excelência, Senhor Presidente da República, tem apontado importantes pontos de reflexão para o sistema judicial. Estou certo, por isso, de que se justifica uma acrescida expectativa sobre o momento que estamos a atravessar.

Como Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, quero manifestar a Vossa Excelência o meu profundo reconhecimento por todas as deferências que gentilmente me tem dispensado.


Excelências,
Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores


Decorre este congresso em tempos conturbados para a Justiça, tempos de grande crispação e turbulência.

Fazer justiça é um exercício de suprema responsabilidade, mas é na aplicação dela que os cidadãos encontram a afirmação incondicional dos seus direitos, liberdades e garantias fundamentais. Por isso, o esforço conjugado de todos – dos chamados operadores judiciários – deve confluir para a realização de uma Justiça eficiente e exercida em tempo útil, só possível se o poder político não se demitir da função que lhe cabe e fornecer os meios materiais e humanos, bem como proceder a reformas profundas.

Espero que, do debate de opiniões neste Congresso, resultem ideias claras sobre os caminhos a trilhar. Ao debate – e, principalmente, às ideias que o têm alimentado – tem faltado virtuosismo.

O comportamento virtuoso, que resulta da obediência disciplinada aos ditames éticos e deontológicos, implica o empenho na realização material do escopo profissional e social de qualquer profissão ou actividade. Traduz, por isso, uma atitude perseverante no sentido da excelência.

As virtudes são sinal de excelência e, tal como acabo de afirmar, é essa excelência que tem faltado ao debate sobre a nossa Justiça. E a primeira virtude que tem faltado é uma virtude menor (devo reconhecê-lo), mas nem por isso menos virtude: a da delicadeza, ou da correcção.

É menor porque se refere ao cuidado formal de aparência (qualidade que pode revestir mesmo os actos condenáveis ou as decisões injustas). Trata-se todavia, de uma virtude introdutória. Todo o esforço no sentido da excelência se faz por aprendizagem.

O virtuosismo é sempre adquirido. Nenhuma virtude é natural. Pelo contrário, resulta de um esforço de adequação, de aprendizagem. E essa aprendizagem começa pela forma externa: fazendo aquilo que é ensinado (as boas maneiras).

É nessa medida que faz sentido a afirmação de que as boas maneiras precedem e conduzem às boas acções. Já Aristóteles dizia que «é praticando as acções justas que nos tornamos justos, praticando as acções moderadas que nos tornamos moderados e praticando acções corajosas que nos tornamos corajosos».

A aparência resultante da delicadeza, ou da correcção, é o princípio da adequação social (do respeito dos bons costumes) – a virtude ainda enquanto artifício, para se poder tornar num artefacto.

A ausência dessa virtude tem marcado o debate em volta das reformas que se tem pretendido introduzir recentemente na Justiça.

As acusações explícitas ou implícitas que se fizeram aos agentes da Justiça – e, em particular, aos juízes – para se justificar as medidas pretendidas, poderão quiçá justificar-se pela necessidade política de criar na opinião pública uma vontade de mudança. Mas foram incorrectas e indelicadas.

Os termos em que se colocaram as questões, menos do que justificar as acções, criaram bodes expiatórios, assim desautorizando qualquer reacção. O discurso ignorou a identificação dos problemas e o debate das soluções possíveis, para se dirigir aos culpados, àqueles a quem os privilégios retiravam qualquer credibilidade.

A segunda virtude que tem faltado é a da prudência. Venerada historicamente enquanto virtude cardeal, a prudência é hoje pouco valorizada (talvez pela sua base calculista ou pelo seu carácter instrumental ou não-absoluto).

A obrigação moral não parece dever variar segundo juízos de cautela – dir-se-á. Não obstante, conforme salienta Max Weber, essa ética de convicção encerra-nos num absolutismo de princípios que nos cega à humanidade, ao bom-senso ou à compaixão.

Não renunciando aos princípios, cabe a todo o homem – e, em especial, àqueles que assumem funções de liderança – ponderar as consequências previsíveis das suas acções, segundo uma ética de responsabilidade (ou de prudência).

Trata-se, pois, de determinar cautelosamente aquilo que é melhor. Ou seja: trata-se, a partir da verdade, do conhecimento e da razão, de deliberar correctamente e agir em consequência. É o bom-senso ao serviço da boa vontade, a inteligência dedicada à virtude. É a qualidade que garante que as outras virtudes produzem bons resultados – porque não chega amar a paz para ser pacífico, nem amar a Justiça para ser justo.

Noutra perspectiva – mais prática – dir-se-ia que a prudência é a virtude que evita que o inferno se encha das boas intenções (de actos animados pelas outras virtudes, portanto).

Parece desnecessário explicitar quanta imprudência tem caracterizado a apresentação, discussão e implementação das medidas dirigidas ao sector da Justiça.

Por eficiente que possa ter sido o discurso do privilégio, para agradar à opinião pública e captar o seu aplauso em benefício próprio, impunha-se antever que, ao tratar os titulares de um órgão de soberania como funcionários malcomportados (ameaçando-os com os correspondentes castigos ou medidas excepcionais), estava-se a empobrecer o Estado, a desacreditar o Direito e a fragilizar o Estado de Direito.

Faltou a lucidez e razoabilidade que impunha contenção. Não se antecipou. Não se previram os custos decorrentes dessa agressão.

Perdoar-me-ão, certamente, o tom moralista da minha análise. Menos do que a apreciação que faço, gostaria que as constatações servissem para nos inspirar – a nós, juízes – no sentido de evitarmos esses mesmos riscos, no debate que prossegue. Até porque é sabido como a falta de virtuosismo se alimenta dos seus próprios ecos.

Há uma norma que constitui um elemento-chave do regime e que enforma a própria Constituição: refiro-me ao respeito entre os órgãos que compõem a organização do Estado e que é uma via com dois sentidos. E tem de considerar-se que o seja em absoluto, para não pôr em causa o Estado de Direito.

Recusando sistematicamente dialogar de igual para igual – ou até meramente dialogar, porque logo se acrescentava não haver intenção de recuar – fingiu não perceber que até a disponibilidade dos juízes, por si só, era já uma abertura especial: o diálogo entre órgãos de soberania tem de fazer-se de igual para igual, sem dúvida, mas os seus titulares ocupam espaços bem distintos.

Note-se, por exemplo, que o poder político não se exerce por progressão em carreira profissional, como acontece no poder judicial; o poder político decide quanto paga e em que condições tem de exercer-se o poder judicial e não o inverso; o poder político arroga-se planear o faseamento com que tenciona dar resposta à crise, mas determina que o poder judicial responda com rapidez e a qualquer preço, sem lhe dar meios e condições para o fazer.

Pois bem: se ando a fazer a leitura correcta do nosso entendimento colectivo (e, como sempre, é muito mais o que nos une do que o que nos divide), os juízes já estão pouco interessados em discutir o problema das férias. Quando lá chegarmos, confrontados com os turnos e a impossibilidade de todos terem férias na mesma altura, verificaremos que quase tudo ficará como dantes. O que nós, juízes, exigimos é ser tratados como aquilo que somos e representamos. E que fique isto muito claro: não é um desejo negociável, mas uma exigência incontornável.

A partir deste ponto, a única discussão que nos interessa é sobre o que fazer a esta situação insustentável em que todos nos encontramos. E esperar que o poder executivo faça algo, ou que dê ao menos um sinal que estanque a desmotivação para trabalharmos muito para lá do que é exigível. Sem essa motivação, a pendência processual agrava-se.

Em rigor, a obrigação do poder político face ao poder judicial (também já o disse publicamente) é (foi sempre) a seguinte: prestigiá-lo e dar-lhe os meios. A sua obrigação é esta e coloca-se por esta mesma ordem. Porque, se a imensa falta de meios custa a sanar, convenhamos que pugnar pelo prestígio não custa dinheiro.

Só que a opção foi inversa: o actual poder executivo passou a dizer que os tribunais fecham três meses por ano, o que não é verdade; passou a declarar que os juízes precisam de trabalhar mais para ter a Justiça em dia, o que é inverdade; passou a afirmar que os juízes querem estar acima de tudo e de todos, o que não é verdade. Talvez outros o queiram…

Mais: como ouvimos há dias no Porto, com estupefacção geral, o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa não chegou ainda a conclusão alguma sobre a contingentação processual; e (pasme-se!) está a trabalhar com dados estatísticos de 2001/2002.


Caros Colegas,
Minhas Senhoras e meus Senhores


A estratégia é elementar e o resultado é óbvio: o cidadão comum, o que está afastado dos princípios de Montesquieu e Beccaria e dos detalhes sobre a organização do Estado, foi escutando o poder executivo e acreditou. Mas tem sido intencionalmente enganado e é tempo de repor a verdade com todas as letras.

Venham pretensos opinadores e ouçam isto de vez: os juízes, como todos os cidadãos, não estão nem querem estar acima da lei; mas os juízes, como todos os titulares dos órgãos de soberania, não aceitam estar sem ser de igual para igual com os restantes órgãos de soberania.

Assiste-nos uma legitimidade constitucional de que nunca abdicaremos, porque ela garante a independência dos tribunais e, portanto, a qualidade da nossa Justiça. Esta poderá continuar morosa, com a falta de meios que o poder político não lhe atribui e a falta de reforma das leis processuais; poderá continuar defeituosa, porque ainda ninguém conseguiu acabar com uma justiça para ricos e outra justiça para pobres; e poderá continuar incerta, ao sabor da disposição dos políticos.

Mas que ninguém volte a dizer, de boa-fé, que os juízes não fazem uma justiça de qualidade. Ela é de grande, de muito grande qualidade. Os maus juízes, como todos os maus profissionais de todos os sectores, constituem uma reduzida minoria e são sancionados.

Já agora, que ninguém volte a dizer que os juízes nunca se preocuparam com mais e melhor Justiça para os cidadãos. Na recta final da minha carreira, nada encontrei tão cansativo e gasto como o poder judicial a perorar até à exaustão, junto do poder político, por mais e melhores meios, humanos e materiais, para obviar a injustiça que é não fazer justiça em tempo útil.

Haverá alguém, em seu perfeito juízo, que considere que todos os profissionais da mesma carreira têm toneladas de serviço em atraso por uma questão de gosto? Será razoável admitir que são todos desleixados ou mal-intencionados? Haverá nisto um prazer mórbido, endémico e generalizado que ainda não tenha sido alvo de um estudo psiquiátrico ou de um ensaio sociológico?

Sejamos sérios. Os juízes, como sempre fizeram, continuarão a pugnar por mais e melhor Justiça e, ao contrário do que alguns querem fazer crer, concordam com algumas das medidas que este poder político tem apresentado avulsas. Para corrigir o que está mal, ampliar o que parece bem e acrescentar o que se tem por desejável, bastará que queiram sentar-se connosco à mesma mesa e fazer reformas profundas, de modo a simplificar a tramitação processual e a agilizar o exercício de justiça.

São necessárias profundas reformas dos Códigos de Processo Civil e Penal, mas com efectiva participação dos magistrados e advogados, porque são os que, no seu trabalho diário, se confrontam com as mazelas do sistema e podem dar opiniões para as afastar ou, pelo menos, minorar.

Atrevo-me a garantir que todos teremos a ganhar, quando for possível aliar a capacidade política decisória à experiência judicial adquirida. Sobretudo, os cidadãos que mais precisam de um Estado de Direito que funcione.

Antes de culminar a minha carreira, gostaria de poder dizer que o actual poder político também acabou por perceber que, afinal, «a independência do poder judicial não é um favor concedido à classe dos juízes, é uma garantia dada à sociedade». Enquanto não se quiser aceitar esta afirmação tão simples e linear – que prestigia o poder judicial, prestigia todos os órgãos de soberania, prestigia o Estado e as instituições, prestigia o nosso país e a nossa cidadania – enquanto se puser em causa este princípio essencial que foi tão caro a José da Silva Carvalho, a Justiça afunda-se em processos e o País afunda-se sem justiça.

Excelências,
Caros Colegas

O tema oportuno deste Congresso e a agenda aliciante dos subtemas das intervenções hão-de garantir as melhores conclusões. Resta-me desejar que estes três dias correspondam ao sucesso que auguro para este evento e que resultem numa aproximação decisiva às justas expectativas que hoje se nos apresentam.

Tenho dito.

VII Congresso dos Juízes Portugueses, 24 de Novembro de 2005.

José Moura Nunes da Cruz
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça

2005-11-24

Concentração


Um factor que, por si só ou, melhor ainda, conjugado com a especialização – e sem o qual esta última não poderá atingir o nível necessário –, contribuiria para um melhor funcionamento do sistema de justiça, é a concentração de tribunais, com a consequente extinção de alguns dos que existem actualmente.

Aqui, defrontamo-nos, em primeiro lugar, com resistências por parte do poder autárquico, que não vê com bons olhos a extinção do tribunal da sua terra.

É compreensível essa resistência, mas o interesse público na máxima rentabilidade do sistema de justiça terá de prevalecer, sem cedências.

Ou, na hipótese contrária, assuma-se, com clareza, a superioridade do interesse de não ofender o poder local sobre o da eficácia do sistema de justiça – tratar-se-á de uma opção política, que responsabilizará quem a tomar.

Defrontamo-nos, em segundo lugar, com o princípio de que a justiça deve estar próxima das populações, cuja bondade não se põe em causa, mas cuja concretização deve, em cada momento, ter em conta a realidade do nosso país, coisa que, neste momento, não acontece.

A extinção de alguns dos tribunais actualmente existentes não prejudicaria o apontado princípio, tendo em conta que a mobilidade das pessoas é muito maior do que há uma ou duas décadas.

Não me parece que o princípio de que a justiça deve estar próxima das populações imponha a dispersão de tribunais que actualmente existe, com evidente sacrifício para os juízes – que, logo no ingresso, são sobrecarregados com penosas acumulações, ainda que sob as vestes de agregações –, inevitável prejuízo para a produtividade dos mesmos e desperdício de dinheiros públicos.

Aliás, parece-me que a proximidade da justiça em relação aos cidadãos nem sequer passa tanto pelo aspecto geográfico, mas antes pelo reconhecimento, por parte dos segundos, de que a primeira funciona bem – não acredito que um cidadão que tenha um processo pendente num tribunal durante anos a fio sinta que tem a justiça próxima de si, mesmo que viva ao lado desse tribunal.

2005-11-21

Segredo de justiça


Mais uma vez, está na ordem do dia o problema do segredo de justiça e das suas alegadas violações.

Os argumentos em confronto são conhecidos.

As recriminações por alegadas fugas também não são novas.

O Sr. Ministro da Justiça já veio dizer que está em preparação uma alteração legislativa nesta matéria.

Eu não vou meter-me na discussão.

Só quero deixar, aqui, uma observação, própria de quem conhece o sistema por dentro e, em consequência disso, está atento a pormenores aparentemente «pequeninos», mas que, na prática, podem ser importantes.

De forma muito simplificada, qualquer violação do segredo de justiça tem, na sua origem, uma de duas situações:

1.ª – Alguém que tem conhecimento lícito do processo divulga ilicitamente o seu conteúdo;

2.º - Alguém consegue ter acesso ilícito ao processo e divulga, também ilicitamente (como é óbvio), o seu conteúdo.

Ao contrário do que possa pensar-se, o acesso ao processo nos termos referidos em 2 está longe de ser difícil.

Dada a falta de condições de trabalho que se verifica em grande parte dos edifícios que constituem o parque judiciário português, é frequente haver processos amontoados nos locais mais inusitados, por falta de espaço: em cima de armários, nos parapeitos das janelas, no chão (subindo pelas paredes acima – o tecto é o limite), em cima de cadeiras, ou, nos casos mais graves, em corredores, casas de banho, compartimentos «inominados», etc.

Mesmo os processos que cabem nos armários não estão a salvo da curiosidade de estranhos: muitos dos armários não têm portas, ou as portas não têm fechadura.

Nestas condições, é facílimo, a um número excessivo de pessoas, ter acesso a qualquer processo – qualquer pessoa que trabalhe num tribunal, desde os magistrados às empregadas da limpeza, passando pelos funcionários judiciais e pelos porteiros, não terá qualquer dificuldade; se houver obras no tribunal, incluem-se nesse número quem as realiza, desde que trabalhe fora das horas de expediente daquele.

Portanto, também nesta matéria, não basta fazer leis, por muito boas que elas sejam.

Importa, também, criar condições materiais para que as coisas funcionem bem, nomeadamente para que os processos estejam a salvo de acessos ilícitos.

Se isso for feito, não só se diminuirá o número de fugas, como também se restringirá o leque de suspeitos da prática daquelas que se verificarem, o que, aliás, constituirá um forte desincentivo à prática de actos como os acima referidos sob o n.º 1.

Por outras palavras: alterem a lei, se nisso virem vantagem, mas não se esqueçam do «pequeno pormenor», obviamente sem qualquer interesse para a elevadíssima discussão em curso sobre o segredo de justiça, mas com bastante interesse prático na minha modesta perspectiva, da necessidade de melhorar as condições materiais de funcionamento da Justiça, nomeadamente de arranjar mais espaço nos tribunais e nos locais onde funcionem serviços do Ministério Público, bem como armários em número suficiente e com boas fechaduras.

Caso contrário, não há leis que nos valham, nem segredo de justiça que perdure.

2005-11-20

Independência judicial mitigada?


Este post é da autoria do Dr. João Gomes de Sousa, Juiz do Círculo Judicial de Évora.

Qualquer estudante de direito sabe que para uma dada situação jurídica ou legislação a adoptar existem duas teorias. A A e a B. Em Portugal, em regra, escolhemos a terceira. Aquela a que chamamos “mitigada”, raras vezes por ser a mais correcta, regra geral por receio de soluções completas e adequadas que exigem coragem política, bem raro.

Vem isto a propósito de independência judicial.

A independência é um lindo conceito. Mas é também uma questão do dia a dia. E o nosso quotidiano demonstra-nos que o lindo conceito é frágil e está “mitigado”.

Convém não esquecer que pertencemos à família continental europeia, pátria dos princípios napoleónicos, prussianos, estalinistas, fascistas, pelo menos (sem esquecer o centralismo e a "raison d État" francesa que, pelo menos até há pouco tempo atrás, via os juízes de instrução criminal nomeados pelo ministro, caso a caso).

E que a nossa classe política (e intelectual também, incluindo jornalisas e comentadores) - na sua maioria - não foi formada em Oxford (são os modernos “afrancesados”). É tributária de centralismos vários e das várias utopias de sociedades conduzidas por aparelhos e elites "esclarecidas" que nunca gostaram de poderes independentes nem de teorias dos equilíbrios. Parafraseando o rei, o equilíbrio são eles.

Daí a suma importância de um órgão de gestão da magistratura transparente e bem constituído, quer em termos de equilíbrio político e institucional, quer em termos de qualidade dos seus membros para que as ditas independência e equilíbrio existam.

Mas deixemos a elevação dos grandes princípios e baixemos ao quotidiano.

Entendo porque o CSM não tem autonomia financeira e Orçamento próprio, aprovado pela Assembleia da República que permita ser este órgão a pagar aos juízes!

É o que ocorre em qualquer país civilizado (são poucos, é certo). Mas também ocorre com o nosso Trib. Constitucional! Coincidência? Talvez não!

Vontade política de manter os juízes sujeitos à tutela do Ministério da Justiça?

Vontade política de manter a dependência económica dos juízes relativamente ao governo?

Eu, pessoalmente, não tenho qualquer dúvida sobre as respostas e, hoje, identifico esta dependência do governo como um dos graves problemas da judicatura. Um arremedo da separação de poderes.

Acentua-se a dependência dos juízes, dando a imagem da sua funcionalização e permitindo-se que funcionários do MJ (alguns com um ódio patológico aos juízes) determinem a vida quotidiana dos juízes em vários aspectos económicos e funcionais.

Só não percebo porque razão os Prof. Catedráticos de Direito Constitucional nada dizem a este respeito. Acharão natural?

Se sim não têm legitimidade para se pronunciarem sobre o descontentamento dos juízes nem, sequer, para falar em separação de poderes.

E um orçamento próprio no CSM que permitisse a este órgão gerir, razoavelmente, os vencimentos dos juízes não teria evitado a crispação dos últimos meses?

Certo é que os Tribunais são o único órgão de soberania que não são, nesta sede, independentes e soberanos. Dependem do governo.

Ou será que a sanha anti judicial dos últimos meses não permitirá a comentadores avulso e juristas de mérito, com serenidade, constatar esta evidência?

E a maioria dos juízes? Acha natural o actual estado de coisas?

2005-11-19

Especialização


Duas das exigências fundamentais que se colocam ao sistema de Justiça são a qualidade e a produtividade.

Uma e outra não são possíveis se não se avançar, decididamente, no sentido da especialização de tribunais, quer no sentido de estender as especializações já existentes a novas áreas geográficas, quer no de criar novas especializações.

Neste, como em vários outros domínios, existe resistência à mudança, que tem determinado que a inevitável especialização tenha vindo a ser feita com uma incompreensível timidez e a um ritmo muitíssimo inferior ao da evolução da sociedade.

Continua, com efeito, a haver quem entenda que cada juiz tem de ser «polivalente» ao ponto de conhecer profundamente todos os ramos do Direito, ou quase, como se isso fosse possível no actual contexto de alteração legislativa constante, cada vez maior complexidade da vida social e, em consequência, da Ordem Jurídica, e de quantidades de trabalho a cargo de cada juiz exageradíssimas e, muitas vezes, insuportáveis.

Com o natural respeito por quem assim pensa, parece-me que não pode continuar a remar-se contra a maré.

A especialização dos tribunais até ao limite do possível (e estamos bem longe desse limite) constitui uma exigência da vida moderna.

Se não houver um esforço sério no sentido da recuperação do tempo perdido e da rápida adaptação da organização judiciária ao Portugal actual, teremos de nos resignar à triste realidade de o sistema de Justiça continuar a constituir um entrave à vida das pessoas, ao desenvolvimento económico e, genericamente, ao progresso do País.

2005-11-17

O contributo dos Juízes


Os juízes sempre apresentaram sugestões para que o sistema de Justiça funcione melhor. Trata-se de um facto indiscutível, como também o é o de que quem faz as leis por que o poder judicial se rege, ou seja, o poder político, ignora sistematicamente tais sugestões.

Legisla-se abundantemente, mas, muitas vezes, passando completamente ao lado dos reais problemas do sistema e criando novos problemas.

Isso poderia ser evitado se o legislador ouvisse quem está no terreno, nomeadamente os juízes.

Não temos, nem reivindicamos, um saber superior aos dos outros. Mas reconheça-se que o desempenho da nossa profissão nos proporciona uma experiência prática que não deveria ser desprezada no momento de legislar.

Também não temos, nem reivindicamos, legitimidade para fazer leis, a qual, como é óbvio, pertence, exclusivamente, ao poder legislativo.

Porém, o País só tem a ganhar se o legislador não for autista, isto é, se não partir do princípio de que é o exclusivo detentor da verdade e da virtude, catalogando todos os outros como meros representantes de interesses corporativos, e, em vez disso, antes de decidir, OIÇA quem pode dar contributos válidos para a resolução dos problemas.

Ao contrário daquilo que muitos têm afirmado no âmbito da campanha em curso no sentido de desacreditar o poder judicial e quem o exerce, os juízes não são um bando de malfeitores e irresponsáveis que apenas pretendem prosseguir interesses de classe.

Porque somos juízes, mas também porque somos cidadãos empenhados e responsáveis, aquilo que pretendemos é o bem comum, traduzido, no sector onde exercemos a nossa função, no bom funcionamento do sistema de Justiça.

Não tenho a ilusão de que, de um dia para o outro, o poder político irá mudar de atitude em relação às sugestões que fazemos.

Contudo, considero que isso não deverá fazer-nos desistir de apontar os reais problemas do sistema e as formas de resolução que consideramos adequadas.

Tal tarefa terá, pelo menos, a seguinte utilidade:

- Permitir que discutamos as questões entre nós (e quem mais pretender entrar na discussão, desde que de forma construtiva);

- Contribuir para a elevação do nível da discussão em torno dos problemas da Justiça: a abordagem concreta de cada um desses problemas sob uma perspectiva técnica é a melhor forma de desmascarar aqueles que, não saindo do plano das generalidades – refúgio tradicional dos ignorantes –, nos têm brindado, sobretudo nos últimos meses, com os mais incríveis disparates sobre este tema;

- Publicitar as soluções que nos parecem melhores;

- Afastar a falsa ideia – propalada por quem tem colaborado na acima referida campanha de intoxicação da opinião pública contra o poder judicial e quem o exerce – de que apenas pretendemos manter o sistema tal como ele é actualmente, como se um sistema que funciona mal nos trouxesse algum benefício, como juízes e como cidadãos;

- Deixar claro que muitas das medidas tomadas pelo legislador com o pretexto de resolverem os problemas da Justiça são profundamente erradas.

Se, para além de tudo isto, algumas das sugestões que fizermos encontrarem algum eco em futuras leis, óptimo. Tenho a certeza de que o sistema de Justiça só terá a ganhar com isso.

2005-11-13

Restrição da intervenção de tribunal colectivo


Actualmente, a intervenção de tribunal colectivo em matéria cível é raríssima.

Apesar das habituais resistências a tudo o que constitua efectiva inovação em matéria de Justiça, em boa hora o legislador restringiu drasticamente tal intervenção.

A generalidade das acções cíveis que anteriormente eram da competência de tribunal colectivo passou a ser julgada por tribunal singular, constituído pelo juiz que presidiria ao colectivo caso este tivesse lugar, nos termos do art. 646.º/n.º 5 do Código de Processo Civil – assim se cuidou de reservar esse julgamento para juízes mais experientes (juízes de círculo ou equiparados).

Esta evolução não provocou qualquer hecatombe. Há recursos de sentenças, como sempre houve e há-de haver, e o sistema funciona.

Porém, em processo penal, evolução paralela está por fazer.

Aqui, a intervenção de tribunal colectivo está nitidamente inflacionada.

Basta que estejam em julgamento crimes cujas penas máximas somem mais de 5 anos de prisão, o que é facílimo acontecer – por exemplo, dois crimes de furto simples, ou de abuso de confiança fiscal, ou de ofensa à integridade física simples; ou três crimes de condução de veículo automóvel sem habilitação legal…

As hipóteses de intervenção de tribunal colectivo para o julgamento de bagatelas penais são inúmeras – na prática, em casos desses, as penas concretas acabam por ser, normalmente, muito inferiores a 5 anos de prisão e, com frequência, com suspensão da sua execução.

Em tais hipóteses, bem que o julgamento poderia ser efectuado por tribunal singular… mas lá estão dois juízes em excesso, perdendo tempo que poderia ter sido muito melhor aproveitado a fazer outros julgamentos e sentenças.

Parece-me, pois, que uma medida legislativa urgente é a de restringir drasticamente a intervenção de tribunal colectivo em processo penal, estabelecendo-se um regime tripartido: para os crimes mais graves (de acordo com um elenco taxativo), tribunal colectivo; para hipóteses intermédias, tribunal singular constituído por juiz de círculo ou equiparado; para os crimes menos graves, tribunal singular constituído por juiz de comarca.

Os ganhos de produtividade que uma solução deste tipo permitiria seriam imediatos e enormes.

E não me parece que, num sistema em que a prova é, normalmente, gravada (se se entender que a gravação audio é insuficiente, introduza-se a de imagem), houvesse qualquer prejuízo para as garantias de defesa.

2005-11-11

Eficiência


Uma das críticas mais frequentemente feitas ao sistema de Justiça em Portugal é a da sua fraca eficiência.

Este argumento tem sido utilizado, amiúde, para, de forma, no mínimo, leviana, concluir que os juízes, os magistrados do Ministério Público e os funcionários judiciais trabalham pouco e mal.

Quando esta «brilhante» conclusão foi veiculada, há tempos, por pessoas que a si próprias se apresentam como «especialistas» em assuntos relacionados com a Justiça (mas que estão tão a par da realidade dos tribunais portugueses como eu estou da dos tribunais da Mongólia), através de alguns órgãos de comunicação social de âmbito nacional, houve quem, prontamente, desmontasse os pressupostos em que a mesma buscava sustentação e demonstrasse os erros em que laborava – embora, a estes, não tivesse sido dada, nem de longe, a publicidade que se dera aos referidos «especialistas», como, aliás, é hábito.

Também procurei, AQUI, distinguir o funcionamento dos tribunais do desempenho profissional de quem aí trabalha, distinção essa que me parece claríssima. Uma organização, seja ela de que natureza for, pode estar dotada dos melhores profissionais do mundo – se ela for, em si mesma, deficiente, os seus resultados serão, forçosamente, maus.

Portanto, não vale a pena perder mais tempo a refutar a conclusão acima enunciada. Quem quiser continuar a navegar nas águas da demagogia e do erro, por conta própria ou ao serviço de outrem, continue – será sinal, ou de ignorância, ou de falta de inteligência, ou de má fé.

Interessa-me, sim, abordar a questão da eficiência do sistema de Justiça de forma séria e construtiva.


Não sei até que ponto a tese de que o sistema de Justiça é pouco eficiente, tendo em conta os meios que lhe são atribuídos, é acertada.

Tenho, porém, como certo que o sistema de Justiça poderia ser muitíssimo mais eficaz – na dupla vertente de menor custo e de melhor resultado – se fossem adoptadas algumas medidas relativamente simples.

Nem todas as melhorias do sistema dependem de «grandes reformas», que muitas vezes nada de substancial alteram, limitando-se a «baralhar e dar de novo».

Através da alteração de umas quantas normas legais, que bloqueiam efectivamente o sistema, conseguir-se-iam, a curto prazo, muito significativos ganhos de produtividade, por vezes com diminuição de custos e sem qualquer prejuízo real para os valores fundamentais da função jurisdicional.

Assim houvesse vontade de o fazer.

Em futuros posts, enumerarei algumas medidas legislativas que me parece que, por si sós, permitiriam alcançar os referidos objectivos.

Refira-se, aliás, que nada do que direi constitui novidade.

Só que, como as medidas em causa continuam a não ser tomadas e os problemas, com o passar do tempo, agudizam-se, lá temos de voltar ao assunto de vez em quando.

2005-11-06

O meu comentário ao post anterior


Conheço bem o Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, onde fiz parte do meu estágio, há 12 anos.

Nessa época, com menos um juízo do que actualmente (só havia 2 cíveis e 2 criminais), a falta de espaço já era aflitiva.

Tudo o que era corredor, vão de escada e compartimento, por mais minúsculo e esconso que fosse, já tinha sido transformado em «gabinete» ou «secção de processos» (a necessidade de aspas é óbvia).

Hoje, não sei o que será aí trabalhar, nas condições referidas no artigo.

É por estas e por outras que não posso deixar de me indignar de cada vez que oiço dizer que a culpa pelo mau funcionamento da Justiça é dos Juízes, ou do Ministério Público, ou dos Funcionários Judiciais, ou de todos eles.

Gostaria de ver algumas das pessoas que, no conforto dos seus gabinetes e rodeadas de mordomias, produzem afirmações dessa natureza, trabalhar num tribunal como o de Vila Franca de Xira (e não só neste).

Já que essas pessoas não têm capacidade para resolver os problemas dos Tribunais, ao menos tenham respeito pelos que, nestes, têm de suportar, na pele, todos os dias e em cada minuto de cada dia, as consequências dessa incapacidade.

A Justiça continua a não ser uma prioridade


NOVO TRIBUNAL DE VILA FRANCA DE XIRA DEVE CONTINUAR ADIADO

O Ministério da Justiça vai investir, no próximo ano, na melhoria das instalações eléctricas e na reformulação dos equipamentos informáticos do Palácio da Justiça de Vila Franca de Xira, mas a construção de um novo edifício para os serviços judiciais da comarca, prevista há mais de uma década, deverá continuar adiada (…)

O novo edifício (…) esteve inscrito no PIDDAC durante os últimos anos, mas o processo nunca avançou e nem sequer está feito o projecto. Já no orçamento do Estado de 2005, o novo tribunal tinha apenas 5000 euros e da proposta para 2006 nem sequer consta.

Ao mesmo tempo, magistrados e funcionários vão perdendo a esperança de virem a trabalhar num edifício mais adequado.

SECÇÕES COM 7 FUNCIONÁRIOS INSTALADAS EM 24 METROS QUADRADOS

Construído em 1964, o Palácio da Justiça de Vila Franca de Xira não tem hoje as mínimas condições para acolher as cerca de 100 pessoas que ali trabalham.

As limitações revelam-se mais na secretaria judicial, onde 4 secções, com 7 funcionários cada uma, partilham cerca de 100 metros quadrados, o que significa pouco mais de 24 metros quadrados para cada secção e 3,5 metros para cada funcionário.

Os processos amontoam-se em armários, na secretaria, nos parapeitos das janelas e no balcão.

São cerca de 20.000 processos pendentes distribuídos por 3 juízos cíveis e 2 juízos criminais.

Quase não há espaço para os computadores e qualquer funcionário que se levante tem que pedir licença aos colegas para se movimentar.

No mesmo edifício trabalham ainda o Ministério Público e o Tribunal de Instrução Criminal (entenda-se: a Juiz afecta à instrução criminal e o ou os respectivos funcionários judiciais, pois Vila Franca de Xira não possui Tribunal de Instrução Criminal).

Já em 2001, o Ministério da Justiça inscreveu verbas no PIDDAC para a construção do novo edifício. Se tudo tivesse corrido de acordo com o programado, a obra deveria ter ficado pronta em 2004, num investimento de 1,8 milhões de euros. Quatro anos passados, nada avançou.

(Excertos de um artigo, da autoria de Jorge Talixa, publicado no jornal «Vida Ribatejana» de 02.11.2005; o texto em itálico, bem como o título do post, são da minha autoria)

2005-11-04

Independente


Este texto é da autoria da Dra. Maria da Graça Santos Silva, Juiz de Direito:

A propósito das notícias das duas últimas semanas do «Independente» e da indignação que alguns incomodados manifestaram, referindo que a sua proveniência vem dos meios jurídicos, designadamente de «Juízes e advogados e gente de bem», 17 anos depois de uma ingénua conversa, por que não responder?

Juízes e Advogados de gente de bem, temem, neste país ainda auto-intitulado de democrático, que a «pequena estorieta» do nosso actual M.J. se repita.

Ou melhor, se multiplique.

Porque quem faz um cesto faz um cento.

E quantos mais faz, melhor sabe fazer.

A experiência é, normalmente, parceira da facilidade de execução, que por sua vez diminui o senso da ilicitude. É isto que está em causa na figura jurídica do crime continuado.

E tendo o dito Senhor Ministro remetido, pelo menos oficialmente (veja-se o site do M.J.), para os passos perdidos da sua memória esta pequena passagem da sua vida política por Macau, passando simultaneamente de Director dos Assuntos da Justiça da Região Administrativa Especial de Macau a Ministro da Justiça, não se afigura que tenha aprendido alguma coisa de relevo para o exercício das actuais tão mais extensas funções.

E assim sendo, tanto se lhe fará que se tenham passado 17 anos como 17 dias.

Situação que só não é perigosa se da dita democracia já não restarem senão uns compostos cacos.

Caso contrário é isso mesmo que está em causa, a confiança no funcionamento das instituições de um estado de direito democrático.

Não vale a pena ter medo da vingança de quem nunca demonstrou exercê-la - os juízes.

Até porque, ao que se diz publicamente, o que está em causa nestes novos pacotes da justiça é a «vingança» dos políticos. Ou a prevenção da sua «necessidade».

Seja quem quer que tenha sido o autor da ressurreição desta questão, isso só por si não traz motivo para incómodos.

Afinal faz parte da história das nossas instituições, independentemente dos anos que tem.

Foi vertida num Acórdão Judicial que foi proferido por quem de direito, no exercício desse direito. E dele há rasto. Escrito.

Publique-o pois, quem achar que o deve fazer. E se for advogado, juiz ou pessoa de bem? A capacidade de exercício dos direitos de cidadania dessa gente (de bem) afere-se pela certidão de nascimento e não pela profissão que exercem.

Mas há mais quem tenha recentemente tentado rememorar questões relacionadas com os últimos anos da nossa soberania em Macau, que, ao que parece, ficaram mal contados.